10/10/2018

Uma louca (Conto), de Guy de Maupassant



Uma louca

Para as dementes o impossível não existe, o inverossímil desaparece, o fantástico é coisa corrente, o sobrenatural converte-se em familiar. Essa velha carreira, a lógica; essa velha muralha, a razão; esse velho parapeito das ideias, o bom senso, rompem-se, abatem-se, desmoronam-se diante da sua imaginação libertina, que vagueia pelo país ilimitado da fantasia.

Para os loucos tudo sucede e pode suceder. Não fazem esforço algum para vencer os acontecimentos, domar as resistências, remover os obstáculos.

Basta-lhes um capricho da sua vontade ilusória para que sejam príncipes, imperadores ou deuses, para que possuam todas as riquezas do mundo, todas as coisas saborosas da vida, para que sejam fortes, sempre formosos, sempre jovens, sempre queridos. Só eles podem ser ditosos na terra, porque para eles não existe realidade.

Eu gosto de abeirar-me do seu espírito vagabundo, como a gente se debruça sobre um abismo, no fundo do qual ferve uma torrente que vem e vai de sítios para sítios ignotos.

Um dia em que visitava hospital de alienados, o médico que me acompanhava disse-me:

— Voa mostrar-lhe uma louca interessante.

E mandou abrir uma cena onde uma mulher, dos seus quarenta anos, ainda bela, sentada na sua grande poltrona, contemplava obstinadamente o seu rosto num pequeno espelho de mão.

Quando nos viu, levantou-se, correu ao fundo da habitação em procura dum véu que tinha sobre uma cadeira, envolveu nele a cara com grande cuidado e voltou depois, respondendo com uma inclinação de cabeça aos nossos cumprimentos.

— Como vamos esta manhã? — perguntou-lhe o doutor.

Ela deu um profundo suspiro.

— Oh, mal, muito mal. Os sinais da varíola são cada dia maiores.

— Nada vejo — replicou o doutor. — Asseguro-lhe que se engana.

Aproximou-se a louca para segredar quase ao ouvido.

Não, estou certa. Contei dez buracos esta manhã: três na face direita, quatro na esquerda e outros três na fronte. É horrível! horrível! Já não poderei ver ninguém, nem meu filho, nem meu filho principalmente. Estou perdida, desfigurada para sempre.

E caiu sobre a poltrona, começando a soluçar.

O médico pegou numa cadeira, sentou-se ao seu lado, e disse-lhe com uma voz doce e consoladora:

— Vejamos isso. Digo-lhe que não é nada. Com uma ligeira cauterização farei desaparecer tudo.

Ela respondeu, acenando com a cabeça e com voz desfalecida que "não". O médico quis levantar-lhe o véu, mas a demente agarrou-o com as duas mãos com tanta força, que o rasgou onde pôs os dados.

— A si mostrarei a minha cara; porém a esse cavalheiro que o acompanha...

— É também médico — apressou-se a responder o doutor.

Então descobriu o rosto; todavia o modo, a emoção, a vergonha de ser vista tornou-a corada em extremo até ao pescoço, que se fundia no seu vestido de luto.

Baixou os olhos, voltou o rosto para a direita, para a esquerda, para evitar os nossos olhares, e balbuciou:

Oh! sofro horrivelmente quando sou vista sem véu na cara.

Eu contemplei-a, bastante surpreendido, pois não tinha sinal algum, nem mancha, nem cicatriz.

Voltou-se para mim com os olhos sempre baixos e disse-me:

— Cuidando de meu filho pegou-se-me esta espantosa enfermidade. Salvei-o, porém perdi a minha beleza. Depois de tudo cumpri o meu dever; a minha consciência está tranquila.

Levantou-se o médico, e, saudando-a, saímos do seu quarto.

— Agora escute-me — disse. — Vou contar-lhe a história atroz desta desgraça.

É viúva. Foi muito bela, muito atraente, muito amada.

Era uma destas mulheres para quem a sua beleza e o desejo de agradar constituem a aspiração da vida.

Tinha um filho que um dia adoeceu com a varíola. Apenas o soube, começou para aquela mulher, consagrada exclusivamente ao cuidado da sua formosura, uma batalha espantosa.

De muito longe perguntava à mulher, que de seu filho, sobre a sua saúde.

A mulher respondeu-lhe uma vez:

— Muito mal. Quer vê-lo?

E saiu fugindo.

— Oh! não, isso não.

Tomou todo o gênero de precauções. Foi à casa dum farmacêutico e sortiu-se desinfetantes.


Um dia, por fim, o médico disse-lhe:

— Seu filho morre. Quer vê-lo? Ainda que seja pela janela? Entre os dois haverá uma porta de vidro.

Consentiu nisso a mãe, cobriu a cabeça, tomou um frasco de sais, deu três passos para a janela, e ocultando a nas mãos, gemeu.

— Não... não... não atreverei a vê-lo jamais... morro de medo...

O moribundo esperou longo tempo com os olhos voltados para a janela para ver o rosto sagrado de sua mãe, pela última vez.

Porém, aguardou em vão. Veio a noite e então, voltando-se para a parede, não pronunciou uma palavra a mais.

Quando amanheceu, estava morto.

No dia seguinte a mãe enlouquecia.

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Tradutor desconhecido. 
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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