11/14/2018

A vovozinha (Conto natalino), de Mário Sette


A vovozinha

(Conto de Natal)

Vinha longe o Natal e o Gilberto na expansiva garrulice dos cinco anos de idade, fantasiava alvissareiramente com aquela noite festiva em que o “menino Jesus” às brancuras da madrugada, anda, cautelosamente, pelas alcovas dos pequenitos, espalhando brinquedos e bombons.

Na escola, os companheiros ricos, acolchetados em roupas vistosas e de alto custo, segredavam-lhe pressentimentos de que naquele ano ganhariam presentes invejáveis, para o que buscavam aplicar-se nos estudos e obedecer meigamente, em casa, a seus papás.

 O pobrezinho Gilberto, escutava, maravilhado, aquelas fascinantes esperanças infantis, e, por seu turno no remanso escasso da choupana que habitava com a avozinha alquebrada — desde que lhe faltaram os pais num estúpido acidente—, adormecia a fantasiar a posse de uma espingarda de brinquedo — coisa com que constituía o presente de seus maiores desejos.

De dia cansava a “vovó” indagando se o papai do céu satisfaria sua vontade, para o que, cuidadosamente, esforçava-se em decorar o A B C, cativando os carinhos do mestre.

E a velha mulher procurava um meio com que pudesse premiar aquela dedicação...

***

Chegara afinal a noite de Jesus... Pelo arraial tremulavam galhardetes e bandeirolas; atopetando o pé das estradas profusão de folhas de canela, saturando o ambiente daquele perfume suave e delicioso que lembra noivados cariciosos; pelas portas das alegres vivendas e dos casebres modestos, em arregaços: pendendo de fios de arame, balõezinhos multicores...

Por todos os cantos a azáfama característica dos pródromos de uma dessas festas populares que assinalam acontecimentos locais.

À noitinha começaram a estrugir as girândolas e as bombas; bandos de moçoilas e rapazes, seguidos de matronas e anciões, arrumavam o pátio da matriz, cujos sinos no pináculo da torre bimbalhavam sem parar, tangidos por dois garotos das redondezas.

Em derredor do templo, barraquinhas, enfestonadas, mercadejavam guloseimas e brinquedos, cercadas por curiosos e fregueses, elegantemente enfronhados em roupas domingueiras.

Num coreto tosco e avelhantado, uma charanga enchia as cercanias com os acordes vibrantes de um dobrado.

O povoado fartamente iluminado, tremeluzindo os clarões dos balõezinhos estendidos por todas as artérias, exibia um aspecto gracioso e empolgante...

***

Quando a “missa do galo” findou, a vovozinha de Gilberto regressou pausadamente aos penates. O neto adormecera, já, aconchegando ao pé da cama as chinelinhas gastas.

O semblante inocente sorria radiantemente, como que prelibando o despertar ditoso, para receber a dádiva querida do “menino Deus”. O coração amantíssimo da velha, ajeitou o que quer que fosse que trouxera, aos sapatos da criança, e quando, vagarosamente buscou também repouso, lágrimas furtivas deslizavam-lhe dos olhos vacilantes...

Filtrada pela claraboia, a noite enluarada enchia o quarto silencioso e pobre: — de  fora escutavam-se serenatas harmoniosas, enquanto o matraqueado dos “sambas” abafavam os estouros dos derradeiros foguetes.

Manhã quase... a avó chorava e o pequeno, adormecido, sorria ainda embevecidamente...

***

Ardósias de sol a pino... Dia de Natal... Os “sambas” continuavam retumbantemente... Pelas estradas passavam grupos de foliões. A fanfarra desfilava entre aclamações.

No pátio externo da morada, brincava Gilberto, orgulhoso com a espingardinha ao ombro, imitando as praças do destacamento. De súbito, corre, alvoroçadamente, aos braços da avó, beijando-a efusivamente. Depois, atentando no rosto querido e amigo interpela:

— “Vovozinha, os teus brinquinhos de ouro ?”

— “Perdi-os, filhinho, perdi-os...”

E para ocultar o pranto a explodir, entrou a afagar pateticamente o neto adorado, espraiando sobre a cabecinha loira da criança as madeixas cintilantes dos seus cabelos cor de neve...


Mário Sette.
Recife, 1911.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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