A vovozinha
(Conto de Natal)
Vinha longe o Natal e o Gilberto na expansiva garrulice dos cinco anos de idade, fantasiava alvissareiramente com aquela noite festiva em que o “menino Jesus” às brancuras da madrugada, anda, cautelosamente, pelas alcovas dos pequenitos, espalhando brinquedos e bombons.
Na escola, os companheiros
ricos, acolchetados em roupas vistosas e de alto custo, segredavam-lhe
pressentimentos de que naquele ano ganhariam presentes invejáveis, para o que
buscavam aplicar-se nos estudos e obedecer meigamente, em casa, a seus papás.
O pobrezinho Gilberto, escutava, maravilhado, aquelas
fascinantes esperanças infantis, e, por seu turno no remanso escasso da
choupana que habitava com a avozinha alquebrada — desde que lhe faltaram os pais
num estúpido acidente—, adormecia a fantasiar a posse de uma espingarda de
brinquedo — coisa com que constituía o presente de seus maiores desejos.
De dia cansava a “vovó”
indagando se o papai do céu satisfaria sua vontade, para o que, cuidadosamente,
esforçava-se em decorar o A B C, cativando os carinhos do mestre.
E a velha mulher procurava um
meio com que pudesse premiar aquela dedicação...
***
Chegara afinal a noite de
Jesus... Pelo arraial tremulavam galhardetes e bandeirolas; atopetando o pé das
estradas profusão de folhas de canela, saturando o ambiente daquele perfume suave
e delicioso que lembra noivados cariciosos; pelas portas das alegres vivendas e
dos casebres modestos, em arregaços: pendendo de fios de arame, balõezinhos
multicores...
Por todos os cantos a azáfama característica
dos pródromos de uma dessas festas populares que assinalam acontecimentos locais.
À noitinha começaram a
estrugir as girândolas e as bombas; bandos de moçoilas e rapazes, seguidos de
matronas e anciões, arrumavam o pátio da matriz, cujos sinos no pináculo da
torre bimbalhavam sem parar, tangidos por dois garotos das redondezas.
Em derredor do templo,
barraquinhas, enfestonadas, mercadejavam guloseimas e brinquedos, cercadas por
curiosos e fregueses, elegantemente enfronhados em roupas domingueiras.
Num coreto tosco e
avelhantado, uma charanga enchia as cercanias com os acordes vibrantes de um
dobrado.
O povoado fartamente iluminado,
tremeluzindo os clarões dos balõezinhos estendidos por todas as artérias, exibia
um aspecto gracioso e empolgante...
***
Quando a “missa do galo”
findou, a vovozinha de Gilberto regressou pausadamente aos penates. O neto
adormecera, já, aconchegando ao pé da cama as chinelinhas gastas.
O semblante inocente sorria
radiantemente, como que prelibando o despertar ditoso, para receber a dádiva
querida do “menino Deus”. O coração amantíssimo da velha, ajeitou o que quer
que fosse que trouxera, aos sapatos da criança, e quando, vagarosamente buscou também
repouso, lágrimas furtivas deslizavam-lhe dos olhos vacilantes...
Filtrada pela claraboia, a
noite enluarada enchia o quarto silencioso e pobre: — de fora escutavam-se serenatas harmoniosas, enquanto
o matraqueado dos “sambas” abafavam os estouros dos derradeiros foguetes.
Manhã quase... a avó chorava e
o pequeno, adormecido, sorria ainda embevecidamente...
***
Ardósias de sol a pino... Dia
de Natal... Os “sambas” continuavam retumbantemente... Pelas estradas passavam
grupos de foliões. A fanfarra desfilava entre aclamações.
No pátio externo da morada, brincava
Gilberto, orgulhoso com a espingardinha ao ombro, imitando as praças do
destacamento. De súbito, corre, alvoroçadamente, aos braços da avó, beijando-a
efusivamente. Depois, atentando no rosto querido e amigo interpela:
— “Vovozinha, os teus brinquinhos
de ouro ?”
— “Perdi-os, filhinho,
perdi-os...”
E para ocultar o pranto a
explodir, entrou a afagar pateticamente o neto adorado, espraiando sobre a cabecinha
loira da criança as madeixas cintilantes dos seus cabelos cor de neve...
Mário Sette.
Recife, 1911.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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