Cristo
Luís era filho de pães anônimos,
filho da multidão, filho de ninguém!
Marieta, sua mãe, concebera-o
por descuido, uma noite de aventura e galanteria, quando tinha aproximadamente
uns 20 anos.
Na idade em que todas as
mocinhas flertam e namoram inocentemente, ela, sozinha na vida, já tinha uma
noção acabada da ferocidade dos homens, com todo o complemento das suas
animalidades, manifestadas sob todos os vícios: e conhecia também o cinismo dos
proxenetas e das inculcadeiras das casas de tolerância.
Luís entrou na vida a golpes
de "fórceps", graças à perícia de um ginecologista.
***
Impossibilitada por diversos
motivos, de seguir essa mesma vida que seguiu Maria Madalena, antes de conhecer
o Rabi, concentrou toda a sua atenção sobre o seu filho e procurou trabalho. Desnorteada
na rotunda da vida e assediada por todas as dificuldades, ia à busca de ocupações,
mas o seu aspecto de ex-rameira pouco a recomendava, embora ela apelasse por
todos os disfarces possíveis. Através da sua modéstia, analisando-a bem,
gritava sempre a mulher que desdenhara a boa conduta: faltava-lhe o hábito da
honestidade.
Mas, à custa de bater em todas
as portas, que se lhe fechavam, como a querer condená-la de fome, abriu-se-lhe
um dia a de uma fábrica de tecidos, onde havia trabalhado quando menina.
Alugou um pequeno quarto no
Belenzinho e durante o dia, o seu filho ficava em casa, entregue aos cuidados
de uma velha napolitana, doente e hemiplégica, que fora penteadeira, quando
forte e menos usada pelo tempo e manuseada pelos homens, de Marieta e outras
rascoas, desabaladas que escondiam o nome de família sob o manto de Zazás,
Fifis e Frufus!
***
Luís crescia à solta, por
entre uma aluvião de outros guris peraltas e safadinhos. Era ágil, arguto, vivo,
como são todas essas crianças que vivem em liberdade, entregues aos seus
próprios instintos, nos meios populosos em que a ladinice e a malícia se
respiram no ar...
Ausente do carinho materno,
desabrochava robusto como um broto germinado no flanco de uma árvore pletórica
de seiva. Confirmava-se nele a sentença popular: filho de ninguém traz os gérmens
de todas as qualidades!
Bem perto de onde morava,
havia uma bela casa, de aspecto feliz, residência de uma família abastada,
possuidora de muitos filhos.
Todos os dias, ali pelas 6
horas da tarde, o pai entrava, e ao chegar ao portão do jardim, era recebido
pelos filhos que lhe saltavam ao redor, alegres e satisfeitos, chamando-o
ternamente de papai: e Luís assistia a este espetáculo de ternura e não sabia
explicar porque é que todos os meninos tinham pai e ele não tinha! Começava a
surgir no fundo de sua infantilidade, o primeiro vislumbre da razão. E ficava
triste, com vontade de chorar...
A mãe, sempre mourejando na fábrica,
parecia ter tomado a vida a sério, e trabalhava sem tréguas, como se quisesse
refazer e limpar, com um presente de sacrifícios e extenuações, todo um passado
de ignomínias e ociosidades. Assim que pilhava um tempinho fora da fábrica,
costurava vestidinhos do seu filho e dos filhos de outras mulheres suas vizinhas
e companheiras de serviço.
Aproximavam-se as festas do
Natal, e ela toda entregue à confecção de umas calcinhas para o seu pequeno,
feitas dum vestido seu, que conservava no fundo da mala, de ótima casimira,
vestígios ainda da sua loucura."
Costurava e quando a roupa que
cosia lhe evocava o passado, se levantava lentamente e ia beijar a cabeça de
seu filho adormecido. Uma noite, faltando poucos dias para o Natal, o pequeno
acorda sobressaltado e chorando, chama pela mãe e depois pelo pai instintivamente.
A mãe aflita não sabia como consolar o filho. E acaricia-o ternamente: — papai?
sim, ele vem... Dorme, meu filho, ele está viajando. Na, noite de Natal virá
com sapatinho branco cheio de doces. Dorme, meu coração! Dorme!...
Luís adormece novamente. Ela,
para espairecer um pouco, abre a janela que dava para um quintalório cheio de
latas e roupas estendidas no coradouro. Olhava para todos os lados; tudo em silêncio.
Levantou a cabeça para o céu e
com os olhos umedecidos contemplava a lua solitária que espalhava um brilho
monótono e suave, como se fosse o olho de "alguém" que estivesse
espiando lá do alto esta dolorosa cena...
***
No dia seguinte, o menino,
quando brincava com os outros, ouvia de espaço a espaço, contar que na noite de
Natal nascia o Menino-Deus, e que por isso iam com papai e mamãe à missa do galo
ver o presepe.
Luís, filho espúrio, era a
personificação desse fenômeno inexplicável que põe os fisiologistas que nutrem
veleidades de nobreza e desmentem que há no fundo genésico da plebe qualidades geniais,
em constante alarme.
Produto dessa força que
plasma, no seio do anonimato, os tipos excepcionais e de eleição, o pequeno
tinha todos os sentidos, para compreender a vida, mais abertos e evoluídos que
os outros de sua idade.
Além de não ter pai, arrastava
a fatalidade da precocidade! E a, ideia de ver o seu, pai crescia em seu
cérebro tenro com toda a força de sua inocência, agravada tenazmente, pela
potência maldita de ser uni menino precoce!
***
25 de dezembro. Céu loucamente estrelado. Meia noite... Natal!
Os sinos batem nas torres de todas as igrejas. Belenzinho em peso se movimenta
para ir assistir à missa do galo. Há ruídos de malas que se abrem para tirar
frescas camisas e vestidos engomados de mulher. Balbúrdia em todas as esquinas,
onde magotes de espadaúdos rapagões, filhos de italianos quase todos, estacionam
para ver passar as Rosinhas, as Conchetas e as Pimpinellas que vão à igreja. Flirt não há! A plebe não perde tempo
com coisas inocentes e inúteis.
Grupos dispersos namoram muito
agarradinhos, nessa distância fatal em que os lábios dizem palavras que são projetis
atirados ao coração.
O babaréu cresce na proporção
direta em que as ruas vão enchendo de povo. Luís, que a essa hora dormia,
acorda, e como a sua mãe lhe havia prometido que o seu pai viria na noite de
Natal, interroga-a:
— Mamãe, não estamos na noite de Natal?
— Sim, meu filho, daqui a
pouco nasce o Menino-Jesus!
— E papai, por que é que não
veio?
— Papai ainda não chegou da
viagem. Sossega, qualquer dia ele aparece.
— É muito longe lá onde foi
papai?
Enquanto Luís passava por um
curto silêncio a mãe procurou um pequeno retrato que tinha guardado,
encaixilhado numa moldura ordinária, estrelada e pintalgada de manchas
cinzentas. E levando-o aos lábios da criança, diz fervorosamente: — beija-o,
meu filho, é o retrato de seu pai!
Luís afaga-o ternamente contra
o peito e apoia a cabeça contra o travesseiro, balbuciando: — papai... papai...
papai... e adormece religiosamente com o retrato de Cristo sobre o peito.
A mãe soluça de joelhos aos
pés da cama, murmurando: — Cristo! pai de todas as crianças que não têm pai...
sê na noite de Natal o pai de meu filho...
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Sylvio Floreal
A Novella Semanal, julho de 1921.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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