11/29/2018

O Tio Milon (Conto), de Guy Maupassant


O Tio Milon

Foi durante a guerra de 1870. Os prussianos ocupavam todo país. O general Faidherbe, do exército do Norte, os tinha sob o seu comando.

O Estado Maior prussiano se havia instalado na granja do tio Milon. Este havia recebido e instalado os oficiais inimigos o melhor que lhe era possível.

Fazia um mês que a vanguarda extrema dos alemães permanecia no povoado observando os movimentos do inimigo. Os franceses estavam acampados, imóveis, a dez léguas dali e, não obstante isto, não se passava noite em que não desaparecesse algum soldado.

Nenhum dos soldados de sentinela, ou das patrulhas de ronda, voltava a seus postos.

Pela manhã os encontravam mortos no campo, à beira dos caminhos, estendidos nas valas marginais. Até os cavalos apareciam mortos também, degolados por tremenda punhalada no pescoço.

Todas as mortes pareciam ter sido cometidas pelos mesmos homens que não apareciam em parte alguma.

Houve pânico em todo o país. Os prussianos fuzilavam os homens por uma simples denúncia, encarceravam as mulheres e procuravam obter por meio do terror as declarações das crianças. Não se pôde averiguar nada.

Mas, eis que uma manhã, encontraram tio Milon estendido no terreno da granja com um talho na cara.

A três quilômetros dali haviam encontrado também dois soldados mortos. Um deles tinha ainda na mão seu sabre ensanguentado. Havia se defendido certamente.

Imediatamente se constituiu o conselho de guerra em campo aberto, em frente à granja,  e perante ele levado o tio Milon.

Era um homem de sessenta e oito anos, pequeno, desajeitado, com as mãos grandes e compridas como antenas. Seus cabelos escassos e sem brilho, deixavam ver por todas as partes o couro do crânio. No pescoço sob a pele vermelha e curtida, viam-se veias grossas, que se fundiam nos maxilares para aparecerem outra vez nos frontais. No povoado tinha fama de avarento e de muito exigente nos tratos e negócios.

Os alemães, colocaram-no em pé entre quatro soldados, ante a mesa do tribunal. Cinco oficiais e o coronel iam julgá-lo.

O coronel tomou a palavra, em francês:

— Tio Milon: desde que estamos aqui só temos que lhe fazer elogios. Você sempre se tem mostrado complacente e até afetuoso conosco, porém, hoje pesa sobre a sua pessoa uma terrível acusação, e é necessário que se saiba a verdade. Como foi produzida esta ferida que você tem na cara?

O velho não respondeu.

Esse silêncio o condena tio Milon. Quero que você me responda explicitamente. Você sabe quem matou dois praças que foram encontrados esta manhã perto do Calvário?

O acusado respondeu sem vacilar:

— Fui eu.

O coronel calou-se um momento, olhando muito surpreendido e com firmeza o prisioneiro.

O tio Milon permanecia impassível, com cara inexpressiva de homem do campo e com o olhar no chão, como se se estivesse confessando ante um sacerdote. Só uma coisa podia revelar sua emoção anterior: era que se via ele fazer grandes esforços para tragar a saliva, como se lhe apertassem o pescoço para estrangulá-lo.

Sua família, o filho, a nora e os netos olhavam-no cheios de espanto e consternação.

O coronel prosseguiu perguntando:

— Você sabe também quem matou todos os  soldados do nosso exército que têm aparecido mortos no campo quase que diariamente, desde o mês passado?

— Eu.

— Você matou todos, todos eles?

— Sim.

— Você sozinho?

— Eu só.

—Diga-me como o fez.

O velho fez um gesto de desgosto. Indubitavelmente contrariava lhe a necessidade de falar durante muito tempo. E respondeu com má vontade:

— Que sei eu! Agia segundo se apresentava a ocasião.

— Advirto-lhe que é necessária que você me conte tudo. E, ainda mais. É preciso que relate imediatamente. Como foi que você começou?

O tio Milon lançou um olhar inquieto a sua família que o escutava angustiosa às suas costas. Vacilou um momento, porém, logo decidiu-se e, resolutamente, disse:

— Vinha eu para casa uma noite, cerca de dez horas do dia seguinte à chegada dos alemães. Os senhores e os soldados me haviam roubado quase cinquenta escudos em moeda, além de uma vaca e de dois carneiros. Eu disse a mim mesmo: tantas vezes quantas me roubem num valor de vinte escudos, tantas vezes eu me vingarei. Sem contar que havia outras coisas que me repudiam o sangue e que as direi depois. Vi, ao chegar, um soldado que estava fumando cachimbo detrás da minha granja. Fui buscar uma foice e voltei, caladinho e tão vagaroso, que não fiz o menor ruído. Cortei-lhe a cabeça de um só golpe, de um só, como se fora uma espiga, e sem dar tempo a que ele exclamasse, ao menos — “ai!”. Se querem encontrá-lo não têm mais que ir à chácara e o acharão metido em um saco de carvão, com uma pedra dentro... Eu tinha um plano. Juntei todos os seus objetos, desde os sapatos até o quepe, e os escondi onde ninguém pudesse encontrá-los.

Calou o ancião. Os oficiais entreolhavam-se assombrados. Seguiu-se o interrogatório e eis aqui o que ouviram:

Desde então o tio Milon viveu com uma única ideia fixa: a de matar os prussianos.

Odiava-os com um rancor solapado e profundo de campônio rústico e patriota. Tinha seu plano, como ele dizia, e esperou alguns dias.

Deixavam-no entrar e sair livremente porque mostrava-se humilde e complacente com os vencedores. Assim, pois, cada noite via sair as patrulhas. Com uma delas saiu ele também, depois de ter ouvido o nome do povoado ao qual os soldados deviam dirigir-se, pois com o trato continuado com tropa havia aprendido algumas palavras do alemão. Saiu pela quadra, foi ao forno de gesso, penetrou no seu interior, e, bem no fundo, encontrando no chão o uniforme do morto vestiu-se com ele.

Depois dirigiu-se ao campo, ocultando-se nas saliências do terreno, escutando atento os menores ruídos, inquieto como um pássaro. Quando julgou chegado o momento oportuno, aproximou-se de uma velha carroça e ocultou-se entre os fardos de capim nela empilhados. Ainda esperou ali um momento. Por fim, já quase à meia-noite, ouviu-se o galope sobre a terra dura do caminho. O tio Milon escutou com atenção, para assegurar-se de que era só um soldado que se aproximava, e preparou-se.

O cavalariano vinha correndo, a galope, trazendo um memorando. Quando estava próximo, o tio Milon deixou-se cair no meio da carroça, contorcendo-se, gemendo.

— Hilfe! Hilfe! Socorro! Socorro!

O ginete deteve-se. Viu um alemão, julgou-o ferido; apeou-se do cavalo e aproximou-se confiante. Quando inclinava para socorrer o desconhecido a lâmina do sabre atravessou-lhe o ventre. Caiu sem agonia, retorcendo-se em um estremecimento supremo.

Então o velho levantou-se radiante de alegria, e pelo prazer de uma carnificina, cortou a cabeça do cadáver. Arrastou-o, depois, até um fosso e atirou-o dentro dele.

O cavalo esperava tranquilo o seu dono. O tio Milon montou-o e fê-lo correr a galope, pela planície.

Ao cabo de uma hora viu outros dois soldados que, caminhando juntos, voltavam ao quartel. Correu em direção a eles gritando: "Hilfe! Hilfe!”, e os prussianos, conhecendo o uniforme, deixaram-no aproximar-se sem a menor desconfiança. E o tio Milon passou entre os dois como uma bala rasa, matando-os um com o sabre e o outro com um tiro de revólver.

Degolou depois os cavalos, os dois cavalos alemães, e dirigiu-se cautelosamente para o forno de gesso onde escondeu o cavalo que havia tomado ao primeiro soldado. Despiu o uniforme, vestiu novamente o seu traje de paisano e foi deitar-se, dormindo tranquilamente em seu leito até a manhã seguinte.

Durante quatro dias não saiu, esperando o resultado das investigações empreendidas. Mas, no quinto, tornou a fazer a mesma operação, matando outros dois soldados. Desde então não se deteve em sua obra. Cada noite prosseguia na aventura a que se propusera, matando prussianos já em um sítio, já em outro.

Ao meio-dia ia completamente tranquilo levar a ração a seu cavalo, escondido no forno.

Chegou, por fim, uma noite em que uma de suas vítimas, apercebendo-se, pôde defender-se e feriu-o no rosto antes de morrer.

Pôde, mesmo assim, o tio Milon chegar ao forno, esconder o cavalo e mudar o traje. Mas, ao chegar à quadra da granja perdeu os sentidos e caiu no chão.

Encontraram-no ensanguentado em um monte de palha.

***
Quando concluiu o seu relato, levantou com altivez a cabeça e ficou, impassível, olhando cara a cara os oficiais prussianos.

O coronel, torcendo o bigode, perguntou-lhe:

— Você não tem mais nada a acrescentar?

— Nada mais. A conta está certa. Metei dezesseis. Nem um a mais, nem um menos.

— E você não sabe que vai morrer?

— Eu não pedi clemência aos senhores.

— Você já foi soldado?

— Sim. Em moço estive na guerra...

Ao demais, vocês mataram meu pai, que era soldado do primeiro império. Vocês mataram meu filho menor. Francisco no mês passado, perto de Evreux. Tinha uma dívida a saldar e ela está paga. Estamos em paz.

Os oficiais não cessavam de entreolharem-se.

O velho continuou:

— Oito por meu pai, oito por meu filho. Estamos em paz. Eu não fui buscar os senhores para a querela. Eu não os conhecia, nem de vista. Mas os senhores meteram-se na minha casa e mandam aqui, como se estivessem em suas propriedades. Vinguei-me nos outros. Não me arrependo de o ter feito.

Os prussianos falaram entre eles voz baixa. Um capitão, que também havia perdido um filho no mês anterior, defendia aquele velho indomável.

O coronel pôs-se de pé, aproximando-se do tio Milon, disse-lhe, baixando a voz:

— Escuta. Talvez haja um meio de salvar-lhe a vida...

Mas o ancião não o ouvia, fazia-se alheio. Olhando altivo o oficial vencedor, fez um gesto horrível, que contraiu sua face cruzada de parte a parte pela ferida e, inflando o peito, cuspiu com todas as suas forças em pleno rosto do coronel prussiano.

O coronel, louco de raiva, levantou a mão e o velho tornou a cuspir-lhe outra vez.

Todos oficiais levantaram-se e deram ordens a um mesmo tempo.

Em menos de um minuto foi o velho, sempre impassível, encostado na parede e fuzilado, enquanto olhava, pela última vez, e sorrindo, o seu filho João, a sua nora e os netinhos que presenciavam a cena loucos de espanto.


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Guy de Maupassant
O Diário Carioca, 13 de março de 1938
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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