Literatura Brasileira: Período de formação (1500 -1750)
Enquanto reinou em Portugal D.
Manuel, cuja felicidade não emparelhou com a sabedoria e a prudência, nada se
fez em benefício do Brasil. Nas novas terras da América portuguesa, entregues à
sua mesquinha sorte, nem um sinal havia de cultura. O aproveitamento das índias
era a única preocupação dos dirigentes da Metrópole, a riqueza das índias, a
magnificência das índias, o sonho mirifico das índias era o único sonho da
corte manuelina. Todas as maravilhas estavam na Ásia, todas as dificuldades na América.
Não é de admirar, pois, que os estadistas portugueses do primeiro quartel do
século XVI não enxergassem o Brasil, tanto os olhos tinham voltados para o
deslumbrante Império das índias.
Somente em 1525, depois de
haver D. João III subido ao trono de Portugal, mudaram de direção os ventos que
habitualmente sopravam nos quadrantes da política lusitana de ultramar. Nesse ano,
armou-se uma expedição, chefiada pelo capitão-mor Cristovam Jacques, o qual,
após uma longa viagem, aqui aportou, nas costas da Baía, em 1526, lançando as
bases do futuro país com a fundação de uma feitoria, perto de Itamaracá, e
seguindo depois para Pernambuco, onde deixou outra povoação para "servir
de assento da administração da colônia", segundo afirma o Sr. Rocha Pombo.
Um lustro mais tarde, em 1530,
Martim Afonso de Souza prosseguia a obra de colonização, organizando novamente
a feitoria de Pernambuco, destruída pelos piratas franceses em dezembro de
1529, e estabelecendo as diretrizes de um governo mais ou menos apreciável. Daí
por diante, começaram a afluir, com regularidade, as correntes migratórias que
iriam constituir a primitiva sociedade brasileira. Para aqui vieram homens de
todas as castas e condições, fidalgos e cortezões, padres e mecânicos,
militares de terra e mar, aventureiros de toda espécie.
Como disse Oliveira Martins,
"o Brasil era além disso asilo, couto
e homizio garantido a todos os
criminosos que aí quisessem ir morar, com a exceção única dos réus de heresia,
traição, sodomia e moeda falsa".
A abundância das riquezas
naturais, a exuberância da terra, já encarecida por tantos modos pelo bom Pero
Vaz, na sua célebre carta, as facilidades próprias de uma vida mal policiada,
onde a concorrência era escassa e onde tudo estava por fazer, insuflaram não pouco
a extrema cobiça dos reinóis. Composta de elementos tão diversos, na educação e
na cultura, na inteligência e no trato, que era lícito esperar, quanto ao seu
grau intelectual, de semelhante sociedade? De um lado, índios boçais e africanos
escravizados e broncos; de outro, audaciosos capitães mores, indivíduos sem rei
nem lei, bandidos vulgares e nobres matreiros, alguns, até, de origem duvidosa!
Os mais velhos cronistas, como Cardim e o autor desconhecido do "Dialogo das
Grandezas", deixaram claros testemunhos de tal descompostura de costumes e
desordem social.
A Metrópole, com o
deslumbramento e o fausto das suas cidades civilizadas, ocupava constantemente
o pensamento dos colonos exilados. O Brasil era para tal gente apenas um ponto
de referência passageiro, nunca um assentamento permanente. As bolsas estavam
aqui, mas as ideias, os planos de família, os desejos de felicidade e os projetos
de fortuna estavam em Portugal. Esse era o aspecto geral da sociedade no século
XVI.
Vozes houve, entretanto, que
se fizeram escutar, vozes desinteressadas de alguns homens, para os quais a
terra tinha outros atrativos que não o reles cuidado de riqueza e abastança.
Foram os jesuítas um grande elemento na formação da nacionalidade brasileira, aqueles
que prepararam o gênio e educaram os colonos para as futuras lutas contra os
piratas de toda procedência, holandeses de Nassau, ingleses de Lencaster e franceses
de Villegaignon. O Brasil, pode-se afirmar sem erro, foi em grande parte, um
produto da vontade pertinaz e do sacrifício continuo e superior dos discípulos da
Companhia de Jesus. Aproximando o gentio do cristianismo, submetendo-o pela
doçura ou pela força às disciplinas da sua religião, evitando o seu
escravizamento aos "maganos de Portugal", obraram os jesuítas com
refinado saber, concorrendo para o fortalecimento político e econômico da
incipiente família brasileira.
Nada mais justo, pois, do que
incluir não só em nossa história geral mas ainda na literária, o nome de um
sacerdote como José de Anchieta, credor por muitos motivos de estima e
admiração de todos quantos habitamos este pedaço de solo americano, que ele regou
com as suas lágrimas e ilustrou com os seus exemplos de cordura e destemor.
Como acentua Sílvio Romero,
não assiste aos que o têm excluído da nossa literatura a menor razão. Ele é
realmente "o mais antigo vulto da nossa história intelectual".
Nascido em 1530, na ilha de Tenerife, de pães nobres e ricos, segundo querem
alguns biógrafos, dali se partiu para Coimbra, em 1546, afim de desenvolver e
polir as qualidades de um engenho que logo mostrou ser de alto quilate. Devido
à delicadeza do seu estado de saúde, tornou à Lisboa, depois de completados os
estudos preparatórios, seguindo mais tarde para a Baía, em companhia do
governador-geral Duarte da Costa, em 1553.
Tanto que aqui chegou, na
verdura dos vinte e três anos, logo se afez às gentes e ao lugar, começando os
trabalhos do seu longo apostolado, só interrompidos pelas moléstias, e
ultimados pela morte. Assim, nem o naufrágio de Abrolhos, nem as lutas que
travou com os selvagens revoltados de Piratininga, nem as provações que sofreu
durante o curso das suas viagens, mais perigosas que divertidas, puderam
refrear-lhe o gosto pela catequese dos selvícolas bravios, e o amor pelas agruras
do seu sagrado mister.
Temperamento combativo,
Anchieta procurava dificuldades, e sabia resolvê-las, como, por exemplo quando
se entregou aos indígenas, por ocasião das rebeliões de Piratininga.
Humanista, como os que mais o
eram na sua época, sabia compor em prosa e verso, tanto em tupi e latim, quanto
em português e espanhol, autos e canções, diálogos e orações, onde, se as belezas
de um grande artista rareiam, reponta, não obstante, a frescura de uma alma
feita para comungar com os humildes e os pequenos. Filólogo notável, em pouco
tempo entrou nos segredos do idioma brasileiro, servindo-lhe de muito esses
conhecimentos para o trato e a domesticação dos selvagens. Historiador
conceituoso, posto deselegante, escreveu a Brasilica
Societatis Historia et vita clarorum Patrum qui in Brasília vixerunt, onde
estão as biografias de alguns missionários do seu colégio; comentador
agradável, deixou muitos e valiosos juízos e informações em várias
"Cartas", sobre as maravilhas da terra.
Se é certo que o padre
Anchieta não era um admirável escritor, possuía, entretanto, aquelas virtudes indispensáveis
para vir a sê-lo. A vida que aqui levou, as dificuldades que teve de enfrentar
e vencer, o acanhamento do meio e, principalmente, a natureza das suas ocupações
desviaram, talvez, do seu rumo natural o grande poeta, ou o magnífico historiador
que ele poderia ter sido, no convívio dos intelectuais da Metrópole. O estilo
das suas poesias, sem relevo, mas puríssimo, dará bem a medida da sua
imaginação viva e colorida. Vejamos, por exemplo, a oração.
AO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO
Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia!
Filho da Virgem Maria,
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte,
E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.
Esta divina fogaça
E manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Esforçados.
Deleite de namorados
Que, com gosto deste pão,
Deixaram a deleitação
Transitória.
................................................
................................................
Quem nos fez tão namorado?
De quem tanto vos ofende?
Quem vos ata? quem vos prende?
Com tais nós?
Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino,
Sem o vosso Ser divino
Se mudar.
Para vosso Amor plantar
Dentro em nosso coração,
Achaste tal invenção
De manjar,
No qual vosso paladar
Acha gostos diferentes,
Debaixo dos acidentes
Escondidos.
................................................
Com o sangue que derramastes
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes
Padecer,
Morra eu, porque viver
Vós possais dentro de mi,
Ganhai-me, pois me perdi
Em amar-me,
Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo
Com tão divino modo
Me mudais.
Quando na minh'alma entrais
E dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.
A poesia religiosa tem nestes
versos um dos mais belos espécimes do gênero. Serão rudes, porventura, mas
quanto fervor, quanta deliciosa imagem nos oferecem! Dir-se-ia até que o
sensível Musset fora buscar nesta quadra
Quando na minh'alma entrais,
E dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.
inspiração para dizer à Ninon
que:
La nuit, quand de si loin le monde nous
separe
.................................................................................
J'ouvre oome un trésor, mon coeur tout plen de vous.
A figura poética é quase a
mesma. As épocas e os deuses é que variaram. Para o austero e solene Anchieta era
o amor de Jesus um grito de angustiosa sinceridade; para o romântico Musset era
o amor de Ninon uma forma espiritual de matar perigosamente o tempo...
Depois de assim ter vivido e
sofrido entre os pobres índios, longe dos salões da Metrópole, onde seu espírito
tantos admiradores fáceis poderia conquistar, já velho e trôpego, mas sempre iluminado
por um divino desprezo pelas misérias que o cercavam, faleceu Anchieta em 9 de
junho de 1597, em seu retiro voluntário da aldeia de Reritgbá, na capitania do
Espírito Santo.
***
Nos últimos quartéis do século
XVI coube à capitania de Pernambuco, então governada por Jorge de Albuquerque
Coelho, descendente dos Albuquerque, Coelho, Pereira e Bulhões, fidalgo de alta
linhagem e fartos haveres, dirigir econômica e intelectualmente os destinos da América
lusitana. Segundo os mais acreditados depoimentos do tempo, como os que nos legou
Fernão Cardim, havia por essa época em Olinda uma sociedade florescente, ávida
de diversões, de bailaricos e funções, de bródios ruidosos e espetáculos de
toda casta. "Trajavam os homens veludo, damasco e sedas, e despendiam
briosamente com cavalos de preço, com selas e guiãos, das mesmas sedas da roupa.
As senhoras também ostentavam luxo e gostavam mais de festas que de
devoções".
As fortunas prosperavam
rapidamente; a exportação do pau-brasil rendia vinte mil cruzados por ano, levas
crescentes de escravos de Guiné concorriam para o desenvolvimento das herdades
e das granjas, poupando aos colonos portugueses o trabalho penoso, mas enormemente
lucrativo, dos engenhos, e proporcionando-lhes assim uma existência forra de
cuidados e labores.
Cada qual, portando, se
estremava em parecer mais opulento, gastando o que possuía, e, às vezes, mesmo além
do que permitiam as suas rendas, acumulando dividas, mas aumentando a reputação
pelo brilho e aparato das instalações e das vestimentas custosas. "Em
Pernambuco, diz Cardim, encontra-se mais vaidade que em Lisboa".
Era tal a febre do luxo e tão
longe andava essa gente da sábia e prudente economia, que só com vinhos se
desperdiçavam milhares de cruzados, anualmente. Olinda era uma réplica, ainda
que em ponto menor, da longínqua e fascinante corte. Aí, como na capital do Reino,
predominavam as mesmas paixões, jogavam-se os mesmos jogos, havia idênticos
folguedos. Sendo o século XVI o mais radioso na evolução da cultura em Portugal,
não é descabido supor que a sociedade pernambucana procurasse, no seu afã de em
tudo emparelhar com a lusitana, imitá-la, também, no entranhado amor às boas
letras.
Jorge de Albuquerque devia
ser, como todo gentil-homem de raça e espírito, amigo dos bons versos, dos autos
irônicos, das comédias mordazes e brejeiras. Entretanto, de todos aqueles que o
rodeavam nem um se notabilizou, senão Bento Teixeira Pinto, o primeiro nome,
como alguns o querem, da literatura nacional. Sua biografia é parca e sem interesse.
Cabe ao abade Diogo Barbosa Machado a gloria de o haver descoberto, escrevendo
sobre ele, na sua "Biblioteca Lusitana" o seguinte:
"Bento Teixeira Pinto,
natural de Pernambuco, igualmente perito na poética que na história, de que são
argumentos as seguintes obras: "Prosopopeia dirigida a Jorge de
Albuquerque Coelho, Capitão e Governador de Pernambuco, nova Lusitânia. —
Lisboa — por Antônio Álvares — 1601, in-4°. São oitavas juntamente com a
"Relação do naufrágio que fez o mesmo Jorge Coelho vindo de Pernambuco a
não Santo Antônio em o ano de 1565" Saiu duas vezes impressa na História
Trágico-Marítima, Tomo 2°, desde a página 1 até 59. "Dialogo das Grandezas
do Brasil em que são interlocutores Brandônio e Alviano. O manuscrito consta de
106 folhas. Trata de muitas curiosidades pertencentes à Corografia e História
Natural daquelas Capitanias. Conserva-se na livraria do Conde de Vimieiro.
Desta obra e do autor faz memória o moderno adicionador da Bibl. Georg., de
Antônio Leão. Tomo 3. Tít. único, col. 1.164".
Mais tarde, o padre Lourenço
do Couto, no "Novo Orbe Seráfico"; Pereira da Silva, no
"Plutarco Brasileiro"; Joaquim Norberto de Souza Silva, na Revista do
Instituto Histórico, vol. XIII (ano de 1850); Varnhagen, nas "Reflexões Críticas
a Gabriel Soares" e na "História Geral do Brasil", assim como
Capistrano de Abreu, na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano, (1904), voltaram a tratar do assunto demoradamente. Devemos,
todavia, a Varnhagen as melhores e mais cuidadosas informações a respeito de
Bento Teixeira Pinto; foi ele quem desfez as fantasistas afirmações de Barbosa
Machado sobre a autoria das duas obras em prosa, que se acreditava pertencerem
ao poeta da Prosopopeia.
Varnhagen, a princípio, negou
formalmente que Bento Teixeira houvesse escrito o "Dialogo das
Grandezas", como se conclui da polêmica travada com J . N. de Souza Silva,
em 1850, na Revista do Instituto Histórico. Julgava ele, então, ser o seu
verdadeiro autor "um tal Brandão", cujo nome transparecia no de Brandônio,
uma das personagens do referido "Dialogo"; e, refutando Barbosa
Machado, acrescentava: "Barbosa guiou-se naturalmente para o seu artigo bibliográfico
por uma declaração de diferente letra e época, que se encontra no manuscrito
que era de seu irmão, e é o mesmo que está na Biblioteca de Lisboa: dessa
declaração consta ser aquela a obra de Bento Teixeira. — Mas quem a escreveu? —
Merece ela algum crédito, à vista de outros fatos contraditórios? — É o que o
incansável abade eruditíssimo, de pouca crítica, deixou por decidir; é o que
nos indispõe o espírito a ter fé nele neste ponto; e o que a crítica deve
elucidar, "não começando por agredir os que apontem o caminho".
Até 1877, Varnhagen sustentou
o seu parecer; neste mesmo ano, porém, depois de haver a Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano
publicado o mencionado manuscrito, já se não mostrou ele tão categórico em suas
asserções, parecendo-lhe que o "Dialogo das Grandezas" pertencia, de fato,
ao misterioso e tão discutido poeta.
Não estão acordes, também os
nossos historiadores, com referência ao verdadeiro autor da Relação do Naufrágio que passou Jorge de
Albuquerque Coelho, vindo do Brasil no ano de 1565. Souza Silva está, nisso
como no mais, de acordo com Barbosa Machado. Varnhagen pensa, ao contrário, que
a Relação foi escrita pelo piloto Afonso
Luiz e corrigida por Antônio de Castro, mestre de D. Duarte de Bragança.
O que é certo, entretanto, é
que, na Relação do Naufrágio, nem uma
só vez aparece o nome de Bento Teixeira, não se sabendo, portanto, se ele
estava a bordo da Nau de Santo Antônio, como querem alguns.
Quanto à Prosopopeia (dirigida a Jorge de Albuquerque Coelho, capitão e
governador de Pernambuco, nova Lusitânia) não padece dúvida sobre a sua
autoria. Pertence a Bento Teixeira Pinto. É um poema de medíocre feitio,
composto em verso hendecassílabo, em louvor dos feitos e das virtudes do
terceiro donatário de Pernambuco. Nas suas noventa e quatro estrofes, em oitava
rima, não se percebe um grande sopro de inspiração, nem, ao menos, qualquer
relevo de estilo. É uma fraca imitação dos processos camonianos, sem o brilho e
sem a elevação dos Lusíadas. Há frequentes indecisões na expressão, muita
mesquinhez de estro e de linguagem, e raras partes de boa poesia. Em todo caso,
atendendo-se ao acanhamento do meio, não se deve desprezar esse primeiro fruto
enfezado e insípido da literatura brasileira. Nos trechos abaixo transcritos facilmente
se verificará tudo quanto acabamos de dizer.
Cantem poetas o poder romano,
Submetendo nações ao jugo duro,
O mantuano pinte o rei troiano,
Descendo à confusão do reino escuro.
Que eu canto o Albuquerque soberano
Da fé, da cara pátria firme muro,
Cujo valor, e ser, que o céu lhe inspira,
Pode estancar a Lacia, e Grega lira.
As Délficas irmãs chamar não quero,
Que tal invocação é vão estudo,
Aquele chamo só, de quem espero,
A vida que se espera enfim de tudo.
Ele fará meu verso tão sincero,
Quanto fora sem ele, tosco e rude,
Que per razão negar, não deve menos
Quem deu o mais, a míseros terrenos.
E vós sublime Jorge, em quem se esmalta
A estirpe D’albuquerques excelente,
Em cujo eco da fama corre e salta,
Do carro glacial à zona ardente,
Suspendei por agora a mente alta,
Dos casos vários de Olíndessa gente
E vereis vosso irmão, e vós supremo,
No valor abater Querino e Remo.
A descrição do Recife de Pernambuco, onde se pretendeu
encontrar uma das primeiras manifestações desse carinho pelas formosuras da
terra, tão comum em nossa, como aliás em qualquer literatura, não é superior às
demais passagens do poemeto. Foi, apenas, um efeito novo que o poeta procurou
para realçar com alguns exotismos a vulgaridade da sua imaginação, para quebrar
com algumas tintas imprevistas a monotonia dos seus versos.
O mesmo não se dá com o Dialogo das Grandezas do Brasil e a Relação
do Naufrágio. Se, realmente, fossem de Bento Teixeira estes dois trabalhos,
merecer-nos-ia o prosador valioso maior estima que o poeta secundário. O
"Dialogo das Grandezas", principalmente, é obra de muito preço pelas inúmeras
informações que contem, relativamente ao estado do Brasil no século XVII. O
estilo é simples e fluente, os comentários proveitosíssimos e o assunto é
geralmente explanado com clareza, precisão e método.
A Relação do Naufrágio, publicada pela segunda vez em 1601, e
reimpressa, em 1753, na História Trágico-Marítima
(em que se escreveram cronologicamente os naufrágios que tiveram as naus de
Portugal) é uma narrativa colorida e movimentada, cheia de lances dramáticos e
peripécias várias, que atravessaram Jorge de Albuquerque Coelho e os
passageiros embarcados na não Santo Antônio, "de que era mestre André Rodrigues
e piloto Álvaro Marinho, homens destros na arte de navegar" É uma página
admirável na singeleza da sua linguagem, onde se patenteiam as excelências da
raça portuguesa da idade heroica, o seu poder de combatividade e a sua fé
inabalável na Igreja Romana. Na breve passagem, adiante reproduzida, ter-se-á
ligeira noção da sua intensidade:
"Ordenamos então um bolso
de vela para derredor dos castelos de proa, a ver se com isso queria a nau governar,
e tendo-o feito nos sobreveio uma coisa espantosa e nunca vista; porque sendo
às dez horas do dia se escureceu o tempo de maneira que parecia ser noite, e o
mar com os grandes encontros que umas ondas davam nas outras parecia que dava
claridade por encher tudo de escumas. O mar e o vento faziam tamanho estrondo,
que quase nos não ouvíamos nem entendíamos uns aos outros.
"Neste comenos se
levantou um mar muito mais alto que o primeiro, e se veio direito à nau, tão
negro e escuro por baixo e tão alvo por cima que muito bem entenderam os que
viram que seria causa de um muito breve espaço vermos todos o fim de nossas
vidas, o qual dando pela proa com um borbotão de vento, caiu sobre a nau, de
maneira que levou consigo o mastro do traquete com a vela e verga e enxarcia: e
assim levou o mastro de cevadeira e o beque, e os castelos de proa, e cinco
homens que estavam dentro deles, e três âncoras que estavam arriçadas nos ditos
castelos, duas de uma parte e uma da outra; e juntamente com isto abateu a
ponte e a desfez de maneira que matou um marinheiro que estava debaixo delia, e
fez o batei em quatro ou cinco pedaços, e abateu todas as pipas da água, e
assim todo o mais mantimento que ainda aí havia, e destroçou este mar a nau de
proa até o mastro grande, de maneira que a nau rasa com a água, e por espaço de
meia hora esteve debaixo do mar sem nela haver quem soubesse onde estava".
Somente o sombrio pincel de
Géricault poderia executar, com tantos pormenores, a pintura de uma cena tão
grandiosa como a que se desenrola por mares tenebrosos e céus ameaçadores,
através da perturbadora narrativa do piloto Afonso Luiz. Sua parelha está no celebre
"Radeau de Ia Méduse", onde se mostram as mesmas fisionomias
torturadas, as mesmas ondas violentas e empoladas e o mesmo terror do
desconhecido.
Além do padre Anchieta e de
Bento Teixeira Pinto, são dignos de registo, também, alguns escritores portugueses
que viveram ou passaram pelo Brasil no século XVI. São eles Pero de Magalhães
Gandavo, Gabriel Soares de Souza, Fernão Cardim e Pero Lopes de Souza.
Pero de Magalhães Gandavo, natural de Braga, foi o primeiro homem
que se ocupou das nossas coisas. Escreveu: Uma "História da Província de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil", impressa em Lisboa, na oficina
de Antônio Gonçalves, em 1756, com a notável particularidade de ser precedida
de uma carta em verso, de Luiz de Camões, dedicada a D. Leonis Pereira, a quem
era o livro oferecido; e um "Tratado das Terras do Brasil, no qual se
contem informações das coisas que há nestas partes", publicado somente no século
XIX, em 1826, na "Coleção de notícias para a história das Nações
Ultramarinas".
Seus escritos, cheios de
observações interessantes sobre a vida dos colonos e dos indígenas, apesar de
se não recomendarem muito especialmente, pelas graças do estilo, são sem dúvida,
realmente importantes como fonte de informação.
Gabriel Soares de Souza, nascido em Lisboa, por meados do século
XVI, aqui viveu longos anos, falecendo na cidade da Baía, em 1591.
Pertencem-lhe, incontestavelmente, as melhores páginas escritas no seu tempo
sobre o Brasil. O "Tratado descritivo do Brasil em 1587", dado à luz
em 1851 pelo infatigável e benemérito Varnhagen, é obra solidamente elaborada, feita
por um comentador fiel e atento, erudito e amigo da terra que estudava.
"Seja embora rude,
primitivo e pouco castigado o estilo de Gabriel Soares, pondera o seu editor,
confessamos que ainda hoje nos encanta o seu modo de dizer; e ao comparar as descrições
com a realidade quase nos abismamos ante a profunda observação que não cansava,
nem se distraía variando de assunto.
"Como corógrafo, o mesmo
é seguir o roteiro de Soares que o de Pimentel ou de Roussin; em topografia ninguém
melhor do que ele se ocupou da Baía; como fitólogo faltam-lhe naturalmente os
princípios da ciência botânica; mas Dioscórides ou Plínio não explicam melhor
as plantas do velho mundo que Soares as do novo, que desejava fazer conhecidas.
A obra contemporânea que o jesuíta José de Acosta publicou em Sevilha em 1590,
com o título de "História Natural e Moral das índias", e que tanta
celebridade chegou a adquirir, bem que pela fôrma e assuntos se possa comparar
à de Soares, é-lhe muito inferior quanto à originalidade e cópia de doutrina. O
mesmo dizemos das de Francisco Lopez de Gomara e de Gonçalo Fernandez de
Oviedo. O grande Azara, com o talento natural que todos lhe reconhecem, não
tratou instintivamente, no fim do século passado da zoologia austro-americana melhor
que o seu predecessor português; e, numa etnografia geral dos povos bárbaros,
nenhumas páginas poderão ter mais cabida pelo que respeita ao Brasil, que as
que nos legou o senhor de engenho das vizinhanças do Jequiriçá. Causa pasmo
como a atenção de um só homem pôde ocupar-se em tantas coisas "que juntas
se vêm raramente" como as que se contêm na sua obra, que trata a um tempo,
em relação ao Brasil, de geografia, de história, de topografia, de hidrografia,
de agricultura entretrópica, de horticultura brasileira, de matéria medica
indígena, das madeiras de construção e de marcenaria, de zoologia em todos os
seus ramos, de economia administrativa e até de mineralogia!"
O padre jesuíta Fernão Cardim nasceu na cidade de Viana,
em 1540; passou-se para o Brasil em 1582, em companhia do governador Teles
Barreto, permanecendo aqui até 1599. Em 1600 partiu para Roma, voltando mais tarde
à América, onde se demorou alguns anos como reitor do Colégio da Baía. Morreu
na vila de Abrantes, nome pombalino da aldeia do Espírito Santo, a poucas léguas
da cidade do Salvador, em 1625.
Varnhagen publicou, em 1847,
na Imprensa Nacional de Lisboa, um manuscrito de Cardim, datado de 1583,
pondo-lhe o título seguinte: Narrativa
epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Baía, Ilhéus, Porto Seguro,
Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, etc., "por constar
verdadeiramente de duas cartas que dirigiu ao provincial da Companhia em
Portugal".
Esta é obra seguramente
inferior à de Gabriel Soares, porém de preciosa leitura, tanta é a penetração
que revela o autor nos seus juízos espontâneos e justos sobre a sociedade da
sua época.
Ferreira de Araújo, em 1881,
fez imprimir na tipografia da Gazeta de Notícias,
um outro manuscrito, já traduzido para o inglês, em 1625, na coleção Purchas,
denominado "Do Princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes,
adoração e cerimônias", considerado como do punho de Fernão Cardim.
"Diz Purchas que o manuscrito
foi tomado em 1601 por Francisco Cook a um jesuíta que ia para o Brasil. Ora, exatamente
neste ano, como se pôde ver na Synopsis
de Franco, o padre Fernão Cardim, que voltava para o Brasil da viagem a Roma,
foi aprisionado por corsários ingleses e conduzido para Inglaterra".
Este trabalho, onde a fantasia
corre de par com a observação, é também interessante para o historiador.
Pero Lopes de Souza, guerreiro e fidalgo ilustre, irmão de Martim Afonso
de Souza, nascido em fins do século XV, ou princípios do XVI, veio para o
Brasil em 1530. Escreveu um Diário da
Navegação da armada que foi à terra do Brasil em 1530, cabendo, ainda, a Varnhagen
as honras de o haver dado à estampa, em Lisboa, no ano de 1839. Como escritor,
não se avantaja aos demais; seu estilo é antes desgracioso, posto lhe seja correta
a língua. Como historiador tem, para nós, a natural importância de todos aqueles
que se interessam pelas coisas pouco sabidas do Brasil no século XVI.
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