O lundum
A moldura é uma
casa de sítio.
Paredes de
barro, esteios amarrados com cipó, teto de palha.
Na frente da
casa um mastro, coberto de folhas, ornado com frutos: ananases, bananas e
outros.
No topo do
mastro uma bandeira.
Na bandeira,
pintada por um Pedro Américo campestre, uma pomba.
É o Espírito Santo.
***
É dia de festa.
A festa do
Divino ou do Senhor Divino Espírito Santo, como chamam.
É uma festa
muito popular na Amazônia.
Durante muitos
dias andam as canoas, cheias de devotos, a tirar, esmolas pelos sítios.
Estes pedintes
aceitam tudo. Frutas, doces, vinhos, cachaça carneiros, vitelas, tudo lhes
serve.
Preferem
dinheiro.
O dia da festa
chega.
Então, ao menos
em aparência, o Senhor Divino Espírito Santo é substituído por Baco.
***
Na sala da casa
estão reunidos todos.
Há redes atadas
aos cantos.
O resto da
mobília compõe-se de baús de matupá pintados de verde, um ou dois bancos e
peitos de jacaré.
Em uma das redes
o dono da casa fuma tranquilamente no seu cachimbo.
É um velho tapuio
de cara alegre e cabelos grisalhos. Veste a sua melhor calça de pano americano
riscado e camisa branca.
Em uma rede a
dona da casa, sentada de um lado, conversa com uma comadre que senta-se no
outro. Na cabeça de ambas dois formidáveis pentes erguem-se como os montes do
Almeirim.
Em outra, três
moças — que eu chamaria as três Graças, não fosse tão cediça a comparação —
duas de um lado e outra do outro, reclinando-se a meio, deixando ostensivamente
ver os pés nus meio calçados em chinelas encarnadas, e um trecho das pernas bem-feitas,
aos namorados que olham-nas cobiçosos, sentados nos baús ou nos bancos.
Nos outros
assentos amontoavam-se homens, e mulheres, moços, velhos e crianças.
Vestidos
encarnados, camisas de rendas, grandes brincos de ouro velho, cabeças cheias de
flores, lábios cheios de risos, seios cheios de desejos, olhos cheios de amor —
tudo há aí.
Os moços fumam o
perfumado tabaco do Rio Preto em seus longos cigarros de taquari, e os velhos
nos cachimbos de barro, por longos e enfeitados taquaris.
Em uma mesa,
coberta com uma colcha de chita, está a coroa do Divino Espírito Santo, cheia
de fitas e flores.
Dos lados da
mesa ficam encostadas à parede as bandeiras.
Em dois castiçais
de prata de forma antiga — pedidos para esse fim ao vizinho rico — ardem duas
velas de cera.
Aos pés da coroa
amontoam-se maços de velas, dadas de esmola ou em cumprimento de promessas.
Há poucos
momentos distribuiu-se o caxiri.
A alegria reina.
***
Há uma orquestra.
Uma flauta e uma
viola.
A flauta toca, a
viola acompanha.
De vez em quando
a viola briga com a flauta. Há então um desconcerto.
Mas os
"dilettanti" são nimiamente condescendentes. Não havia pateada. De ora
em quando davam palmas.
Era quando a
viola e a flauta tocavam os limites do sublime.
Isso não era
raro.
Os músicos são
cantores, acompanham-se. Têm o defeito de não serem originais. Cantam o
"Não te esqueças meu anjo, de mim" — música e letra velhas, que
tornavam novas com uns requebros langorosos de olhos para as eleitas de seu
coração, que faziam ás vezes, um mau modo e diziam:
— Axi!...
Este — axi!...
era um chumbo. Cortava as asas ao sabiá que errava a última nota e caia
estatelado no chão da sua desdita.
Os ouvidos dos circunstantes
lucravam.
***
Lembraram-se de
aproveitar a música para dançar.
Dançaram.
Eram polcas,
quadrilhas, valsas, lanceiros — todo o cortejo das insípidas danças
civilizadas.
Depois pararam.
Um então gritou:
— O lundum,
venha o lundum!...
A viola e a
flauta puseram-se de acordo e tocaram o lundum.
Nápoles tem a
tarantela; o Aragão tem a jota; a França tem o cancã; a Espanha tem o bolero;
Portugal tem o fado; Montevidéu tem o fandango; o Brasil tem o lundum.
O lundum, creio,
nos veio pela Bahia. Tem o seu tanto de africano. Depois espalhou-se no Brasil.
O "cateretê", a "chula" e outras danças são suas filhas.
O lundum é uma
dança que admite todas as outras.
As castanholas
da jota, a morbideza da tarantela, os passos sedutores do bolero, os passos insípidos
da quadrilha, as voltas rápidas da valsa, o sapateado do cateretê, o requebro lascivo
do fandango, a arrogância do fado.
E a flauta e a
viola tocaram um lundum. E dançaram o lundum.
A flauta e a
viola gritaram.
— Ninguém mais
vem!...
Passaram-se
alguns minutos.
Alguém apareceu
na arena.
***
Fez-se profundo
silêncio.
Todos os olhos
se fitaram "nela".
"Ela"
deu os primeiros passos e as primeiras voltas.
Um cheiro ativo
de periperioca espalhou-se na sala, de mistura com o perfume do jasmim e do
molongó.
"Ela"
começou por passinhos curtos: um pé para diante, outro para traz. Os dedos afilados
batiam com preguiça as castanholas. Nos lábios de um vermelho arroxado brincava
um sorriso provocador...
Deu assim três
voltas: ninguém lhe saiu ao encontro.
Temiam todos.
Então dos lábios
purpurinos, no meio de um frouxo de riso zombeteiro, saiu-lhe esta admiração e
esta pergunta.
— Iá!!...
Ninguém?...
Os homens,
principalmente os rapazes, entreolharam-se e abaixaram os olhos envergonhados.
Passaram-se alguns momentos.
"Ela"
esperava no meio da sala com um sorriso de mofa nos lábios.
Alguém saltou.
***
Era um rapaz
desse belo tipo mameluco, alto, esbelto, vaqueiro, de calça branca, camisa
branca bordada, botões de moedas de ouro nos punhos e no peito, lenço beira de
chita no pescoço cobrindo o colarinho. Apesar de todo o seu garbo, via-se-lhe
receio no semblante.
A música
começou.
Ele deu princípio
à dança.
O corpo esbelto
requebrou-se e torceu-se, os pés giraram no chão.
"Ela" compreendeu
que ele era digno de si.
Começou.
Os pesinhos, a
meio mentidos nas chinelas encamadas, correram ligeiros no chão, os dedos
bateram as castanholas com força.
A luta
principiou.
"Ela"
deixava-o, aproximar-se e fugia rápida quando ia tocá-la, ou então procurava-o
e quando ele pensava que ela ia render-se-lhe, enganava-o fugindo.
Depois, nas mil voltas
que davam, ele procurando-a, "ela" esquivando-se, quando ele estendia
os braços, "ela" passava-lhes por baixo soltando uma grande
gargalhada.
O rapaz suava,
"ela" estava calma.
Corriam,
gritavam, fugiam, iam, vinham, tornavam, chegavam quase a abraçar-se e estavam
apartados, dir-se-ia que iam beijar-se e afastavam-se.
"Ela"
mostrava-lhe os lábios rubros, apertando-os para não rir, ele lançava-lhe
olhares amorosos no meio de sorrisos.
Ele procurava-a,
"ela" fugia; ele suplicava, "ela" ria-se.
A dança era um
duelo.
***
As outras
mulheres estavam arrufada, ninguém mais as olhava, seus namorados mesmo tinham
os olhos fixos "nela".
Se pudessem
teriam gritado: — fora!...
Os homens,
esses, estavam contentes. O mais corajoso de entre eles ia ser vencido. Não
gritavam — Bravo! porque a comoção embargava-lhes a voz.
Contradição
lógica.
O velho, pai “dela",
sentou-se melhor na rede, deitou de manso o cachimbo no chão, fincou os cotovelos
nos joelhos, encostou as faces nas mãos e olhou-a muito atento.
Por seus lábios
passou um sorriso de ufania.
A mãe deixou a
conversa da comadre, que não gostou nada, pois via uma sua filha ficar para o
canto, e pôs-se a mirá-las.
A comadre disse
suspirando:
— Ah! meu
tempo...
O marido da
comadre olhou-a com ironia.
Esse olhar era
um desmentido formal aquela lembrança do seu tempo.
O lundum
continuava.
A viola e a
flauta compreenderam agora a sua elevada missão e, de mãos dadas, redobraram de
esforços e de notas desafinadas.
***
De súbito
"ela" parou.
A alegria reapareceu
no campo feminino.
Foi um momento.
Quando um
sorriso de triunfo assomou os lábios do vaqueiro — "ela" recomeçou.
O que se passou
então eu não posso pintar.
Os pés correram
mais velozes, os dedos bateram as castanholas com mais força, os requebros
foram mais gentis, nos olhos mortos pelo cansaço houve mais langor, no sorriso
mais zombaria, os seios tremeram mais fortes, o coração bateu mais precipite.
Ora dançava com
uma rapidez vertiginosa, ora os pés corriam lentos.
Depois dava ao
corpo, flexível como o junco, mil jeitos cheios dessa coisa que os italianos
chamam "morbideza" e dessa, outra coisa que nós chamamos
"denguice".
Em uma das
voltas os seus cabelos desprenderam-se e caíram longos, espreguiçando-se sobre
as espáduas e impregnando o ar com o aroma rescendente da baunilha.
As flores que
estavam enlaçadas neles caíram; "ela" pisou-as.
Só uma rosa
ficou. O vaqueiro foi apanhá-la; como a veada das campinas "ela"
abaixou-se e levantou-a.
Ele ficou de
joelhos, palpitante, suplicando, com as lágrimas quase nos olhos, um pedido quase
na boca.
"Ela"
girava.
Parou,
estendeu-lhe os braços, o vaqueiro apoiou-se-lhe nas suas lindas mãos e
ergueu-se.
"Ela"
retirou as mãos e a dança continuou.
***
Os negros cabelos
voavam-lhe nos ares, tremiam-lhe as narinas, o colo arfava, os seios túmidos
pulavam sob a fina cambraia do vestido, o peito ofegava, o coração parecia
querer saltar-lhe.
Nos olhos negros
havia um mar de volúpia, nos lábios roxos ondas de desejos.
Os cabelos
soltos volitavam-lhe ao redor da cabeça e ombros, enroscavam-se-lhe no colo
airoso, introduzindo-se-lhe no seio.
A boca semiaberta, úmida, mostrava os dentes brancos e afiados, que pareciam querer morder.
As faces estavam
vermelhas como a tinta, do urutu.
E "ela"
girava.
O furor da dança
se apossara “dela".
Não podia parar.
Na sala, além da
música, só se ouvia o sapateado de suas chinelas encarnadas.
***
A viola e a
flauta cansaram.
Cansar é uma
fatalidade.
A cara dos
tocadores metia dó.
Rubros, suados,
com os cabelos espetados úmidos, olhos e bocas abertas, estavam grotescos.
Pararam.
Último som e
nota, como diz o poeta.
O lundum cessou.
Houve uma chuva
de bravos.
Os homens à mulher,
as mulheres ao homem.
***
"Ela'' foi
cair exausta em uma das redes.
Dizem que foi
aquele o seu último lundum.
Depois de mulher
do vaqueiro, teve de cuidar dos filhos e ninguém mais a viu nas festas do
Divino.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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