O sineiro
de Canudos
Salvador Mocambo tinha na cabeça, a
palmos, o sertão de Canudos, onde tanta gente suou sangue na revolta de Antônio
Conselheiro. Nascera na caatinga, quase dela se não afastara. Vaqueiro fora o
pai de Salvador Mocambo, o filho seguiu-lhe a profissão. Na mocidade
destemperara vazante. Serenando na dança, ralhara na viola cantigas sem fim; pusera
às tontas, com artifícios e denguices, muita cabocla bonita, tornando-se figura
obrigatória de quanta encarniçada havia.
Destro, forçudo, valente, um galalão,
não se repassava de sol ou chuva. Sabia das manhas das boiadas, conhecia pelo
volume da barriga a segurança das éguas, conservando sem falha de memória os
ferros de gado do patrão e os marcos das fazendas vizinhas. O vaqueiro
Salvador, tal a melhor joia da fazenda do capitão Jonas Lebre, ignorante às
posses próprias, pois vivia à larga na capital baiana. Solteirão, impertinente,
gastava dinheiro com as mulheres damas, só de cor duvidosa. No fim do inverno o
capitão Jonas recebia o produto da venda do gado, honestissimamente vendido
pela jagunçada. O boiame do capitão progredia de ano em ano; as epizootias do rengue e do mal triste não pareciam feitas para os seus touros ou garrotes.
Salvador Mocambo constituíra-se o
vigilante-mor da bicharada do capitão Jonas cuja única obrigação era, consoante
o hábito sertanejo, conceder ao vaqueiro o quarto dos produtos da fazenda.
Salvador não desejava riquezas. Bastava-lhe o sertão, os seus tesouros quando
respeitados pelo vento da seca. Era dono dos juazeiros, de folhas muito verdes
e flores amarelas, como vestidos de esmeralda e ouro; sem empecilhos possuía os
mundurucus isolados e muito altos no centro da vegetação rasteira, torres de
catedral sobre cidade pequena; os chiques-chiques, abrindo a neve em perfumes
de folhas alvinitentes, defendidas pela ponta de agudos espinhos, os saxáteis
cabeça de frade, os canudos de pito, que, quando juntos, pelas flores em
espigas e penachos, lembram um exército só de oficiais.
Salvador Mocambo adorava os sertões,
amor forte, singelo, bom. Desgracioso como todo tabaréu, nervos afogados em
preguiça, Salvador era o homem de luta que são todos os matutos nortistas
quando um obstáculo qualquer lhes fustiga a alma adormecida, os músculos
afrouxados, de nativo ócio, moles como a fruta sorva, ou inquebráveis qual
ferro resistente. "Eu só tenho medo do sol" — dizia Salvador rindo;
realmente o sol é o tirano do sertão e o carrasco do sertanejo. Quando os céus
choram apenas em outubro as chuvas do caju, será de lágrimas o verão sertanejo.
Até as aves emigram na rápida trajetória da fuga.
Um dia Salvador teve a vida povoada pela
paixão. Amou e sofreu. Quis casar e a noiva acabou raptada por um moço da
cidade. O tabaréu sentiu a raiva, o ciúme, a afronta bater-lhe às portas do
coração pedindo agasalho eterno. Travou-lhe a boca o gosto do sangue; na mente
enterrou-se-lhe, à moda de prego, a terrível justiça da vingança. Montou a cavalo,
atirou-se pela caatinga como no encalço da boiada em disparo. Alcançou o par
fugitivo num sítio onde os mulungus e as quixabeiras vicejavam luxuriantes à beira
das cacimbas. Matou o rival, pôs nua a mulher e tocou para traz. Deixou a
antiga noiva com o cadáver do amante e raptor junto dos mulungus e quixabeiras,
aqueles de flores vermelhas, o sangue do assassinado, estes de frutos negros,
como o luto da miséria desamparada.
Correram vozes pelo sertão acerca do
crime. As autoridades não se moveram, nem os matutos culparam o autor do desagravo
pundonoroso. Salvador Mocambo tornou-se, porém, insociável, taciturno, gelado
em silêncio torvo. Já nem escrevia ao capitão Jonas, deixando a um jagunçote a
tarefa de comunicar-se com o senhor da fazenda. O capitão Jonas mostrava-se
cada vez mais amigo das crioulas de baraugandau. Contribuía, com o áspero labor
dos vaqueiros, para a compra daqueles vistosos ornamentos de prata que, sobre
as camisas de bicão, as crioulas colocam à cinta nos dias de festança do Bonfim.
As Vênus de chamusco davam-lhe em troca a gama variada de suas ambrosias e dos
seus néctares, o vatapá, o caruru; o acaçá de leite, o agurá laranjiforme de
arroz fermentado, moído em pedra e água adoçada, sem esquecer a misturada do
bobó, com os seus ingredientes vários: o feijão mendubi, água, sal e banana da
terra. O velhão do Jonas preferia tais comedorias aos umbigos-de-freira, biscoitos
que as mãos das sinhazinhas lhe ofereciam à hora do chá nalguma casa de cabedais,
dotes e heranças. A pesca do marido à moda do tarraxo, atraindo o peixe coma
luz, era infrutífera com o ricaço do Jonas, cujo estômago amoroso só admitia
jabá de gado preto. Para este pândego negreiro suavam a mais não poder o
Salvador Mocambo e os companheiros no sertão, agachados à beira das cacimbas ou
correndo atrás das boiadas soltas, enquanto a jia do capitão Jonas, aliás bem
branco, se enlodava no charco dos amores africanos, alguns cheirosos à maritacaca.
Salvador deixara de escrever ao patrão
depois do assassinato cometido por ele, receoso como desconfiado matuto, que o
viessem incomodar. Chegada a época do verde,
a feliz quadra chuvosa, Salvador sentia-se rei na caatinga onde a bicharada fervia, desde as seriemas
chorosas até as suçuaranas ferozes de garras prontas a pôr qualquer vivente em
um bolo de carnes. Salvador conhecia igualmente os dias de aragem, as horas da
medonha seca quando só o ouricuri fornece a padaria sinistra dos pães de bró,
pondo os ventres em forma de tambor sem saciar a fome. Salvador não arredara
pé, quase morrera, ao grunhir do vento da seca, o flagelante nordeste.
Não tinha mais um boi, nem mais um cavalo
para açoitar a manguá de couro! Alimentava-se com um nada, sem o recurso da
caça. Lá se armasse mundéus para muçununga. Ah! se ainda houvesse uma castanha
de muturi nos cajueiros! Pretendê-lo era querer a pititinga miúda, que nada em
águas fartas, a rastejar pelo solo ressequido... Uma porcelana cheia d'água
valeria um tesouro. Salvador rapou rente as crinas do cavalo, pôs-lhe àás ancas
esqueléticas o sino, outrora cheio de provisões e demandou a serra longínqua
onde a mulher do compadre João Mindo sevava mandioca no tijupá hospitaleiro. O cavalo
custou a subir o tombador íngreme, mas afinal sempre atingiu o suspirado sítio
do Mindo.
Dissipada por completo a medonha catástrofe
da seca, Salvador regressou ao sertão, voltando por pequenas jornadas, saudando
uma por uma, com indizível emoção, as plantas surgindo aos olhos saudosos: as
baranas oferecendo ao viajante o presente das suas flores em cacho, os juás
apertados em moitas e os marpeiros disseminadíssimos, o roxo dolente da casca
das mubusanas, um mundo de ramos a ocultar uma fauna das mais ricas. O canto da
primeira saracura trouxe lágrimas aos olhos rudes de Salvador. Sentiu, pela
primeira vez na vida, uma sensação indefinível, agridoce, a saudade, o divino
travo-gozo.
Dispunha-se Salvador a voltar de novo às
antigas lidas de vaqueiro, quando vozes de amigos entraram a contar-lhe as
proezas do famoso asceta sertanejo, Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio
Conselheiro, que, mercê da dor, pregava pelos sertões afora a redenção dos
homens. No ânimo do vaqueiro havia ainda restos do temor pelo crime de morte
praticado no desafogo do ódio e do ciúme, o grande espinho dos corações
humanos. Começou a ruminar a ideia de limpar pelo perdão a escorralha sanguínea
de sua vida. Hora a hora cresceu-lhe o desejo de juntar-se ao Antônio
Conselheiro, cujos devotos alcançavam o céu.
Um dia entendeu partir para Canudos, a
implorar os favores do Alto pela sua salvação. Partiu. Achou em caminho gente
de todos os pontos e laias, gente de Alagoinhas, Feira de Santana Jeremoabo,
Bom Conselho, Simão Dias. Era mescla de tudo a peregrinação e os peregrinos.
Salvador passava de contínuo por patrícios simplórios e bons. Acotovelava nas estradas
as mais despejadas solteiras,
vestidas de vícios, mas despidas de vergonha, e os mais terríveis
clavinoteiros, réus de muitas mortes.
Chegado a Canudos, quedou assombrado
ante a beleza da igreja nova, mole assombrosa, protesto formidável contra a arquitetura
e a estética, à margem do Vaza-barris.
Salvador foi acolhido em Canudos com
satisfação e aplauso. Não tardou em ser querido na grei de Conselheiro e de
seus temerosos asseclas: Chico Ema Quinquim de Coiqui, João Abade, Pajeú, Lalau,
José Gamo e tantos outros. Privou logo com Antônio Bentinho, mulato que era
osso e ronha, trazendo o Conselheiro a par de quanto se dizia e pensava em
Canudos; não faltou a um só beija, cerimônia
na qual os santos, verônicas e cruzes eram osculados, de boca em boca, pela
multidão dos jagunços fanatizados, desencardindo a consciência de crimes no
beatério histero-iluminado da religião do Conselheiro.
Salvador admirava o Conselheiro com
todas as forças d'alma. Acompanhara-o de longe, respeitoso, na sombra; quando o
Conselheiro, por indicação de Antônio Beatinho, dirigiu-lhe a palavra, Salvador
sentiu uma zonzeira na cabeça, quase perdeu os sentidos...
O Conselheiro falou-lhe, duas ou três
palavras apenas, e afastou-se caxingando um pouco, vestido de azulão, a cabeça
nua, as mãos grosseiras sustendo um cajado, os ombros varridos pela grenha
hirsuta, o peito invadido pelas barbas grisalhas tirante a brancas, os olhos
pretos nas covas das órbitas em o rosto macerado, o rosto comprido, pálido, a palidez
dos desenterrados.
Salvador nem teve tempo de
responder-lhe, confessar-lhe o seu antigo crime, expor-lhe o sangue oxidado da
velha culpa. Salvador raro o via a não ser nas cerimônias do santuário, nem havia muito quem visse o
Conselheiro no arraial dos bequinhos e das casas de taipa.
Depois chegaram os dias aziagos de
Canudos. Cresciam as desgraças à maneira de fértil língua de vaca, que todos têm e ninguém cultiva. A paisagem triste
entrou a só ter ecos para tiros e lutas; Antônio Conselheiro queimara em 1893,
no Bom Conselho, as tábuas que na
localidade recebiam os editais para a cobrança dos impostos decretados pelas
câmaras recém-autônomas da Bahia. Em Maceté, Uaná, no Cambaio, em mil
encontros, cada vez mais renhidos, a jagunçada habituou-se a derrotar a fraqueza do governo, isto é, as forças comandadas
por chefes cuja hierarquia vencida ia mostrando a importância das derrotas legais,
o tenente Pires Ferreira, o major Febrônio, o coronel Moreira César, o general
Artur Oscar. Salvador prestou relevantes serviços na caatinga. A princípio a
voz do canhão o intimidou bastante, mas dissipou-se célere a pávida impressão.
Nas gargantas do Cambaio obrara proezas contra as forças do major Febrônio,
atirando enormes lascas de pedra "que passavam como balas rasas
monstruosas sobre as tropas apavoradas."
Quando Salvador voltava a Canudos não
era mais o herói, mas o candidato a salvação, jejuava, rezava à semelhança da
beata mais débil e histérica...
Por fim a batalha foi apenas em torno de
Canudos bloqueado. Salvador Mocambo assumiu então as funções de sineiro efetivo
da igreja velha, funções desempenhadas com uma pontualidade fervorosa. Canudos
tinha diante de si um exército de quase 6.000 homens, recebendo diariamente a
visita incômoda das balas de um Withorth 32, a matadeira dos jagunços. Desde a madrugada pelo correr do dia, o
duelo de morte se travava, enchendo de ecos sinistros os ermos onde as árvores
eram a exceção da regra triste de uma esterilidade infinita, a esterilidade das
maldições bíblicas. Quando a balaria da fraqueza
do governo se tornava mais densa, Salvador ia para a torre da igreja velha.
O sino badalava furioso, com impaciências e cóleras, vibrante, falando de ódios
surdos pôr todas as moléculas vibrantes do metal. Assistira Salvador ao encontro
da jagunçada contra as tropas de Moreira César, sempre de corda na mão, sempre
puxando o velho sino para o clamor da vingança, o berreiro da revide. A casaria
de Canudos fora invadida pela gente de Moreira César, o Coronel Corta-Cabeças, e o combate se travara imenso,
disperso, brutal, implacável, até as tropas legais ficarem em pavoroso
desbarato.
No meio das sangreiras vinham caindo os
crepúsculos, véu de pudor sobre os mistérios da morte. Salvador trepava à torre,
diluía-se no espaço o som da Ave Maria,
o sino entrava a tocar umas notas doces, plangentes, pacíficas. Os jagunços
cessavam o fogo.
Assim foi sempre, até nos dias de
completo cerco do arraial. O toque da Ave
Maria era infalível. Contraste singular, os canhões da Favela pareciam
esperar aquele momento para despejar sobre Canudos a mais dura cólera. As
pausas da Ave Maria marcavam-se a
estouro de granadas e shrapnels.
Na descaída da noite serena o sineiro
punha a faceirice trágica de não perder uma só nota da voz religiosa do bronze
até transformar a mística Ave Maria num
sinal de alarme, feroz, contínuo, animando a fuzilaria dos jagunços nas
crinalhas das igrejas.
Toda a alma de Canudos vivia no sino e
no sineiro da igreja velha. A jagunçada, rija de bronze, rezava e matava,
matava quando lhe cortavam o caminho do céu alcançado nas preces e jejuns. A igreja
velha, ao peso de tanta bala, mostrava enorme ventre aberto. Aluído o madeiramento,
o campanário a cair, Salvador nele subia para o toque vespertino.
Um dia, porém, monstruoso shrapnel alargou ainda mais o
escancarado ventre de ruínas do templo. O teto saltou em estilhas, a torre
desceu numa queda violenta. O sino, o sino de Salvador, voou pelos ares,
badalando ainda, chegando ao solo a tinir de raiva.
Salvador Mocambo compreendeu o fim da
missão própria. Contemplou longamente o instrumento, o fiel companheiro, inerte
na terra, rezou um Padre Nosso e dirigiu-se a desaparecer.
De tarde, na linha de fogo, à hora da
Ave Maria, um tiro de Mauser
varou-lhe os intestinos. Salvador veio se arrastando gemendo até alcançar o
sino da igreja velha. Apalpou-o, cingiu-o, agonizou e morreu, abraçando sempre
o velho sino, posto ao chão, entregado ao rigor de todos os silêncios.
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Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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