12/28/2018

O Natal de Voltaire (Conto), de Eduardo Prado



O Natal de Voltaire

Há cento e vinte anos, Paris inteiro, os poetas e os filósofos, os sábios e os financeiros, os duques e a princesa, faziam a Voltaire a mais estrondosa das ovações.

As memórias do tempo contam, com minúcia que, por uma clara quinta-feira de abril, M. de Voltaire, pela primeira vez, desde a sua chegada a Paris, deixando os vagos e amplos roupões favoráveis às exigências da doença e da estatuária, vestiu-se e fez o que se chamava toilette inteira — grande casaca vermelha, forrada de arminho, imensa cabeleira à Luiz XIV, negra, não empoada, e tão basta que o rosto magro, amarelo, enrugado, ficava nela tão enterrado, que só se lhe viam os dois olhos brilhantes como carbúnculos; à mão, uma leve bengala, de recurvo castão de ouro, e, sobre a pirâmide da cabeleira, no alto e coroando-a, um chapéu de veludo vermelho, quadrado e franjado, de plumas também vermelhas. E entrou na sua formosa carruagem, pintada de azul celeste, ponteado de estrelas douradas, que era chamada — carro do Empíreo. Nela foi à Academia Francesa, onde se cumpriram, em honra daquele espectro, todos os ritos da adoração acadêmica. Ouviu o elogio de Boileau, por D'Alembert e o abade Delille leu fragmentos do seu poema, que ensinava “a arte de gozar, pintar e ornar a natureza”.

Da Academia seguiu para a Comédia Francesa, onde, ao saltar da sua carruagem estrelada, foi aclamado pelos fidalgos e pelas damas que o esperavam. E, durante a representação, os aplausos dados à tragédia, que era de Voltaire, retumbaram em explosões de adoração àquele deus monstruoso, para quem sorriam, beatas, as mulheres mais formosas, como as egípcias, resplendentes filhas de Faraós, diante de um terrível Anúbis cinocéfalo. E o deus foi para casa levando, pousada sobre a crina encaracolada da negra cabeleira, a coroa de louros que lhe deitou o príncipe de Beauveau; e, de todo o deslumbramento, levou dentro da cabeça, dizem ainda as memórias do tempo, a resolução de comprar casa em Paris e de escrever tragédias, muitas tragédias! As tragédias não as escreveu e, mesmo, aquela última casa que a todos aguarda, ele não a teve logo em Paris, porque o levaram, daí a dias, para ser enterrado nas vizinhanças de Troyes. E, quanto às tragédias, eram outras as que a fidalguia, dentro em breve, ia ela própria representar, contra a sua vontade, mas sempre com elegante arrogância no tablado da morte.

Todas aquelas cabeças, e muitas, que a guilhotina aguardava, julgavam-se bem seguras sobre os ombros elegantes, ou não, belos, mas sempre orgulhosos, que, se abaixavam diante do Rei do Espírito, erguiam-se, impacientes e desdenhosas, diante das superstições e das ignorâncias do passado.

Os filhos daquele século chamado cético eram na realidade, profundamente crentes e devotos; tinham a crença firme de que estava acabado o cristianismo e só reverenciavam aquele que lhes tinha ensinado a nada mais venerar. E Voltaire conservava a certeza, que lhe dava o seu inaudito triunfo parisiense, de que a sua filosofia estava definitivamente vitoriosa. E os seus velhos ossos gastos, torcidos do tempo, estremeciam de júbilo dentro do amarrotado pergaminho flácido que lhes servia de pele, quando os seus adoradores, carregando-o em procissão, largaram-no sobre o trono célebre da sua realeza, a lendária poltrona que é, hoje, para o povo, além do boulevard e cais chamado Voltaire, tudo quanto recorda aquele nome que encheu a França é a Europa.

Cento e vinte anos depois, os netos e os bisnetos do voltairianismo não sabiam onde estavam os ossos desse vencedor de Deus. E, não a reverência, mas a simples curiosidade daqueles descendentes, levou alguns deles a baixarem à cripta do Parthenon, precedidos de um carpinteiro, para despregar e arrancar as tábuas, na busca do esquecido, ou extraviado esqueleto, que a Revolução para ali trouxera de Troyes, decerto para que aquele autor e amador de tragédias pudesse ver as que se preparavam em Paris. Voltaire cortesão do Reis e amigo de Príncipes, nunca amou os carpinteiros e, de todos eles, aquele a quem mais ódio votou, foi um certo que teve, há vinte séculos, a sua tenda em Nazaré. Um carpinteiro pregou e martelou o seu caixão, no século passado, e outro era, agora, trazido aos subterrâneos de Santa Genoveva, para despregar o que seu colega, de há cem anos, tão solidamente pregara. Um e outro não foram amáveis para com Voltaire.

No pó e na escuridão da cripta, Voltaire nada viu, nem ouviu, deste século que ora acaba e cuja aurora ele queria adivinhar como o começo do seu domínio incontestado e perpétuo. Por algumas horas, esteve aberto o caixão, e o crânio que o príncipe de Beauveau laureara e que sonhara imorredoura aquela coroa, passou, de mão em mão, entre os assistentes, que o manusearam e voltaram e examinaram com curiosidade e desconfiança, como fazem os frequentadores do Hotel Drowot, marfim suposto antigo, e todo encardido, sempre suspeito de falso e de artificialmente amarelecido em fraudulento banho de água de tabaco. Se viram alguma coisa as órbitas sem olhos, se alguma coisa ouviram os ouvidos sem orelhas, por certo muito se admiraram do que viram e do que ouviram.

Em vez das elegantes casacas à Luiz XV, sobre longos coletes bordados a matiz; em vez de sorrisos corteses nas faces impecavelmente barbeadas, que eram as dos homens que deixara sobre a terra; em vez de expressivas cabeças empoadas; em vez de finas espadas pendentes, ao lado de calções de veludo; em vez de meias de seda e de altos sapatos afivelados de ouro, — que viu Voltaire, na sombra úmida daquela adega nacional, onde se guardam glórias?

Não havia entre aqueles inesperados visitantes uma só dama. Que era feito das parisienses? Nenhuma face gentil, avivada de emoção e de carmim, e com sua brancura realçada pelas moscas de seda preta; nenhuns olhos acesos pela curiosidade e pelo lápis negro buscavam com ânsia, entusiasmo e devoção, ver o antigo deus, que estava ali a desencaixotar-se tão sem cerimônia, à luz de uma lanterna, numa fria e nevoenta tarde de dezembro.

E a caveira que, outrora, tanto sorriu, em resposta a outros sorrisos femininos, teve um certo despeito, vendo que não ia ser acariciada por nenhuns dedos rosados, nem comovidamente sopesada por finas mãos perfumadas.

— Já não me admiram, pois, as mulheres! Que estarão elas fazendo a estas horas? À força das luzes da instrução, ter-se-ão transformado em sábias, em matemáticas, como a minha querida e maçadora amiga Madame du Châtelet? Estarão todas nas bibliotecas, nos laboratórios, às voltas com os livros, com os compassos e os alambiques?

— E estes senhores... Quais senhores!

Estes alarves, de barba inculta, todos vestidos de preto, quadrados dentro destas largas túnicas tão fechadas, tão negras e grosseiras, e tendo todos, nas cabeças, esses tubos pretos... Quem são eles?... E onde vi eu esses desgraciosos cilindros luzidios? Ah! já me lembra. Vi-os em estampas que, da Rússia, me mandou a minha amiga Catarina... Os padres (ó infames!), na Rússia, usam desses tubos... Creio, porém, que os trazem sem abas... Terá a Rússia conquistado a França e estarei eu (oh maçada!) enterrado num mosteiro ortodoxo? Mas... neste caso, o que aconteceria à monarquia que andou a consolidar o meu amigo Frederico? Os russos não podiam ter chegado até cá, sem passarem por cima dela e dos seus pântanos pomerânios, que ele chamava Reino... Estimaria, só para ver a cara do tal Salomão sem mulheres!... Quem será este sujeito que me segura agora pela minha nuca desarticulada e que está a dizer que me acha parecido com não sei que busto?

Os meus bustos foram feitos para se parecer comigo e não eu, que tenho de parecer com eles. Lá vou eu, ou, antes, lá vai a minha cabeça para as mãos calçadas de luvas sujas daquele velho todo de preto, que tem ar de chim... Traz, porém, o botão vermelho de mandarim ao peito, o ignorante! em vez de o trazer no chapéu, como eu expliquei que é, e deve ser, no Dicionário Filosófico... Ai! cá estou. Muito mal-educada é esta gente! E bem se vê que não são estrangeiros!... Muito mal falam; parecem todos de Marselha!... Quanta palavra que não entendo! Oferecem agora a minha cabeça ao exame deste outro...

— Merci, monsieur.

— Este, todo velhinho e trêmulo!

Até se parece comigo!...

Quase me deita ao chão!...

Tivesse eu a minha maxila inferior, que aquele desazado deixou lá dentro do caixão, e mordia-lhe o dedo... com os dentes que não tenho!...

— Après vous; monsieur le directeur général des Beaux Arts... —

Por que será que esta gente, tão feia, vem agora falar em belas artes? Tão mal vestidos!...

— Avez-vous vu, tous, le crâne, messieurs?

— Uff! Até que, enfim me largam da cabeça!... Muito havia ela de doer noutros tempos, se lhe dessem tais tratos!... Deixam-na, agora, sobre esta prateleira, enquanto estão a remexer naqueles ossos... Oh! Uma réstia de luz!... Vejo por aquela pequena e estreita abertura, à altura desta prateleira, alguma coisa... É a calçada de uma rua! Passa um carro muito grande, muito pesado, que tudo abala... puxado por uns cavalos brancos, muito grandes, dos quais só vejo as pernas...

— Que é aquilo? Passam rápidos uns pares de rodas, uma adiante da outra e de que vejo só a metade inferior, e que aparecem, correm, desaparecem, sem que eu veja cavalo nem homem que as puxe... É uma ilusão da minha vista... Não há mais milagres, e não será Voltaire quem acreditará que rodas possam andar assim, a rodar por Paris, sem o competente cavalo! Seria contra a razão e experiência.

Escutemos, porém, este grupo de homens que estão aqui a cochichar, por baixo da minha prateleira:

—... un chèque de 50.000 francs...

— Je suis pour les chrétiens, contre ces sales juifs!

— Que singular opinião! Mas que tanto estão a falar de judeus e de cristãos!... São, decerto, sujeitos que se ocupam da História e que discutem a Idade Média!...

Quem será este que pelo nome parece húngaro e de quem tanto falam?

— Um francês que escreve cartas insultando o exército da sua pátria, é um miserável e um traidor!

— Isto, agora, é comungo!

Mais uma pequena canalhice daquele pedante de Frederico, que, de certo, publicou uma carta toda particular e de amizade que lhe escrevi, fazendo troça dos soldados franceses que ele se regalou de bater em Rosbach!... Mas que tem isso?...

Na rua:

— Achetez... achetez... le numero de Noël...

—- Noël?... E sempre as tais rodinhas a passarem...  Lá vem uma carroça... Parece cheia de árvores, ou de ramos, como na Borgonha costuma vir enfeitado o carro que traz as últimas cestas da vindima!... Mas não!... Parecem pinheiros... e tão verdes!... Parece uma pequena floresta andando!... Lembra aquela história, tão ridícula, daquele inglês bárbaro e ininteligível, que chegou até a ser representado (é incrível!) mas que reduzi a nada... numa das suas chamadas tragédias, qual era o nome dela? E como se chamava ele? Ah! já me lembro... Macbeth!... E ele Shakespeare? É isso! Pois, entre outras coisas cômicas, fala ele de uma floresta que caminhava do alto do cabeço de um outeiro da Escócia para o acampamento do rei...

E pensar que coisas tais se representavam...

— Achetez! achetez! des arbres, de beaux arbres de Noël!

O crânio de Voltaire estremeceu e ia rolar da prateleira, quando um jornalista amparou-o. Pelo respiradouro do subterrâneo, por onde Voltaire via aquelas árvores que caminhavam, entrou o grande som profundo e largo dos sinos da vizinha e antiquíssima igreja de Saint-Étienne-au-Mont!

Vai-se encerrar o crânio de Voltaire!

— Andemos depressa! disse um membro da Academia Francesa. Não quero chegar tarde à igreja, para ouvir a conferência do Advento, pelo abbé Frémont...  

Igreja! Advento!! Abbé!!!

O que restava do crânio de Voltaire estalou e os pedaços formaram um punhado de ossos esfarelados, que voltaram para a poeira pardacenta e para o mofo secular do caixão arrombado, que o carpinteiro (ainda o carpinteiro!) repregou a marteladas que ressoaram na cripta.

Momentos depois, os exploradores de sepulcros desciam as escadarias do Pantheon e mergulhavam de novo dentro de Paris, através da bruma, ainda clara, da tarde de inverno. Calaram-se os sinos, e, dentro da igreja, o pregador começou a falar do eterno e próximo renascimento do outro Carpinteiro, daquele próprio a quem Voltaire tinha matado, para sempre, em meados do século XVIII.
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Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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