3/16/2019

A poesia de Fernando Pessoa (Ensaio)


A poesia de Fernando Pessoa

A poesia de Fernando Pessoa é a poesia de um homem que, com uma notável mestria no enunciar o verso, se debate entretanto angustiado diante das portas do mundo.

Ele mesmo nunca quis penetrar por essas portas.

Não que lhe faltasse objetividade.  Mas tais virtudes o artista Fernando Pessoa, metido em si próprio, canalizou-as para a sua arte.

Preferiu levar vida medíocre de escrevente-tradutor de cartas para casas comerciais a ter de se macular como escritor. Para que a vida e o mundo, que ele antevia claramente com emoção e com inteligência, existissem sem interferências na obra poética que afinal conseguiu realizar.

É uma obra de um espírito atônito diante da multiplicidade do mundo.

Uma alma que canta:

O poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.

Nacionalista, apátrida, amoroso, cético, materialista, místico, sensual, religioso, confuso, elegante, desordenado, terrestre, ode marítima, oceânico, universal, Fernando Pessoa — ele mesmo ou seus heterônimos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos (para não falar do "guarda-livros" Bernardo Soares e do Barão de Teive) — nos oferece o espetáculo de um homem pleno de luminosas contradições que se desalenta porque quer tudo saber, que se interroga incessantemente diante desse tudo, nesse tudo se compreendendo a própria origem e a própria razão do homem, de sua consciência a agrilhoá-lo, de sua finalidade para ele incompreensível.

Em "Tabacaria", diz o heterônimo Álvaro de Campos:

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidade do que Cristo.

E adiante:

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Mas de repente se transfigura com o achado:

Já viram Deus as minhas sensações...

E adiante, vendo uma menina a comer chocolates:

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Esse poeta tinha f orne de verdade.

E depois:

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico para o Impossível.

E ainda:

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.

A filosofia que se contém na obra poética de Fernando Pessoa é esta: procura incessante da verdade sabendo que não poderia encontrá-la, desânimo dramaticamente sincero pela impossibilidade de encontrar a chave do mistério da vida e da finalidade do homem.

Mas encontrou a beleza.

O que se encontra por toda a obra de Fernando Pessoa é um domínio admirável da palavra poética. Da palavra poética em todas as modalidades do verso que explorou: medido em Fernando Pessoa ele mesmo, ático em Alberto Caeiro de quem dizia ser mais que um pagão o próprio paganismo sem noção do infinito como não a tinham os puros gregos para quem todas as coisas eram exatas e tinham limites, rigorosamente metrificado nas odes de Ricardo Reis e desbragadamente falante mas empolgante no verbo desmedido e dramático de Álvaro de Campos.

Em todas essas caracterizações, como nos poemas ingleses, como nos poemas franceses, não falta nunca o ritmo nem a constante de uma emoção verdadeira e transfiguradora, sem os quais — ritmo e emoção — a poesia não pode se apresentar ou não pode existir.

A obra pioneira de Fernando Pessoa é a maior realização do modernismo em poesia luso-brasileira.

Nela se refletem as audácias das diversas correntes da chamada arte moderna que se vieram impondo desde a segunda metade do século XIX e dos começos do século XX em diante: Simbolismo, Impressionismo, Expressionismo, Futurismo, Surrealismo, todos esses "ismos", mas, acima de todos eles, a grande pessoa poética Fernando Pessoa.

Mais de dez anos antes do movimento modernista brasileiro de 22, ele já se permitia as maiores audácias da dicção poética, ao mesmo tempo em que ia levantando uma obra imperecível, com a qual se elevou às maiores alturas a que já chegou a poesia em língua portuguesa e porventura em qualquer língua.

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MANOEL CAETANO BANDEIRA DE MELO
Revista Cultura Conselho Federal de Cultura Julho de 1969.
Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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