A poesia de Fernando Pessoa
A poesia de Fernando Pessoa é a poesia de um homem que, com uma notável mestria no enunciar o verso, se debate entretanto angustiado diante das portas do mundo.
A poesia de Fernando Pessoa é a poesia de um homem que, com uma notável mestria no enunciar o verso, se debate entretanto angustiado diante das portas do mundo.
Ele
mesmo nunca quis penetrar por essas portas.
Não
que lhe faltasse objetividade. Mas tais
virtudes o artista Fernando Pessoa, metido em si próprio, canalizou-as para a
sua arte.
Preferiu
levar vida medíocre de escrevente-tradutor de cartas para casas comerciais a
ter de se macular como escritor. Para que a vida e o mundo, que ele antevia
claramente com emoção e com inteligência, existissem sem interferências na obra
poética que afinal conseguiu realizar.
É
uma obra de um espírito atônito diante da multiplicidade do mundo.
Uma
alma que canta:
O poeta é um
fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Nacionalista,
apátrida, amoroso, cético, materialista, místico, sensual, religioso, confuso,
elegante, desordenado, terrestre, ode marítima, oceânico, universal, Fernando
Pessoa — ele mesmo ou seus heterônimos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de
Campos (para não falar do "guarda-livros" Bernardo Soares e do Barão
de Teive) — nos oferece o espetáculo de um homem pleno de luminosas contradições
que se desalenta porque quer tudo saber, que se interroga incessantemente
diante desse tudo, nesse tudo se compreendendo a própria origem e a própria
razão do homem, de sua consciência a agrilhoá-lo, de sua finalidade para ele
incompreensível.
Em
"Tabacaria", diz o heterônimo Álvaro de Campos:
Tenho sonhado
mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado
ao peito hipotético mais humanidade do que Cristo.
E
adiante:
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a
cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz
de Deus num poço tapado.
Mas
de repente se transfigura com o achado:
Já viram Deus
as minhas sensações...
E
adiante, vendo uma menina a comer chocolates:
Pudesse eu
comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Esse
poeta tinha f orne de verdade.
E
depois:
Mas ao menos
fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia
rápida destes versos,
Pórtico para o
Impossível.
E
ainda:
Como os que
invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e
não encontro nada.
A
filosofia que se contém na obra poética de Fernando Pessoa é esta: procura
incessante da verdade sabendo que não poderia encontrá-la, desânimo
dramaticamente sincero pela impossibilidade de encontrar a chave do mistério da
vida e da finalidade do homem.
Mas
encontrou a beleza.
O
que se encontra por toda a obra de Fernando Pessoa é um domínio admirável da
palavra poética. Da palavra poética em todas as modalidades do verso que
explorou: medido em Fernando Pessoa ele mesmo, ático em Alberto Caeiro de quem
dizia ser mais que um pagão o próprio paganismo sem noção do infinito como não
a tinham os puros gregos para quem todas as coisas eram exatas e tinham
limites, rigorosamente metrificado nas odes de Ricardo Reis e desbragadamente
falante mas empolgante no verbo desmedido e dramático de Álvaro de Campos.
Em
todas essas caracterizações, como nos poemas ingleses, como nos poemas
franceses, não falta nunca o ritmo nem a constante de uma emoção verdadeira e
transfiguradora, sem os quais — ritmo e emoção — a poesia não pode se
apresentar ou não pode existir.
A
obra pioneira de Fernando Pessoa é a maior realização do modernismo em poesia
luso-brasileira.
Nela
se refletem as audácias das diversas correntes da chamada arte moderna que se
vieram impondo desde a segunda metade do século XIX e dos começos do século XX
em diante: Simbolismo, Impressionismo, Expressionismo, Futurismo, Surrealismo,
todos esses "ismos", mas, acima de todos eles, a grande pessoa poética
Fernando Pessoa.
Mais
de dez anos antes do movimento modernista brasileiro de 22, ele já se permitia
as maiores audácias da dicção poética, ao mesmo tempo em que ia levantando uma
obra imperecível, com a qual se elevou às maiores alturas a que já chegou a poesia
em língua portuguesa e porventura em qualquer língua.
---
MANOEL CAETANO BANDEIRA DE MELO
MANOEL CAETANO BANDEIRA DE MELO
Revista
Cultura — Conselho Federal de Cultura — Julho de 1969.
Pesquisa,
transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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