3/02/2019

Biografia de Gonçalves Dias


 
VIDA E OBRA DE ANTÔNIO GONÇALVES DIAS

On doit la vérité aux morts....
Bossuett, Oraisons funèbres.

Raiou para Gonçalves Dias o sol da posteridade: cessaram os hinos triunfais e também os vitupérios. É um nome histórico, uma das maiores glórias da nossa nascente literatura. Sine ira et studio, na expressão do grande analista romano, empreendemos esboçar-lhe a biografia e emitir perfunctório juízo sobre suas principais obras: possa o nosso trabalho merecer a aceitação do público.

Dez dias se tenham apenas passado desde que a antiga vila, e hoje cidade de Caxias, abrira suas portas às forças independentes, ao mando do capitão-mor Filgueiras, quando numa humilde choupana do sítio denominado Boa Vista, terras da fazenda de Jatobá, nasceu o inspirado poeta, cuja prematura morte ainda hoje pranteiam as letras brasílicas.

Foi seu pai o negociante português João Manuel Gonçalves Dias e sua mãe Vicência Mendes Pereira. Bafejou-lhe a adversidade o berço, porquanto havendo-se tornado seu pai suspeito de simpatizar com a causa defendida pelo sargento-mor Tidié, teve de foragir-se, temeroso das represálias e mesquinhas vinganças que a plebe soe exercer em tais ocasiões.

Não se julgando ainda assaz seguro na solidão de Jatobá, resolveu João Manuel embarcar-se ocultamente para Portugal, onde foi esperar que os ânimos se aplacassem e à seu salvo pudesse regressar ao país que como segunda pátria amava.

Longe das paternais vistas criou-se a meninice do futuro poeta, que bem cedo trovou íntimas relações com a pobreza, felizmente suportada nessa quadra da vida em que os risos estancam as lágrimas.

Quando as circunstâncias políticas da província do Maranhão permitiram a João Manuel volver ao seu antigo tráfego, chamou ele para sua companhia o menino Antônio, e, mal sondando-lhe a vocação, destinou-o à carreira mercantil.

Aí deu ele provas de suma perspicácia e revelou tão singulares disposições para as letras, que, por solicitações de amigos e parentes, foi mandado à aula do professor Ricardo João Sabino, que iniciou-o nos rudimentos das línguas latina e francesa.

Adquirida a soma de conhecimentos indispensáveis para matricular-se em estudos superiores, partiu em companhia do seu extremoso pai para a cidade de São Luís, capital da província (em 1837), donde não tardou a trasladar-se para Portugal, onde João Manuel ia buscar cura, ou pelo menos alívio, aos seus padecimentos pulmonares.

Não lhe valeu porém tal sacrifício, pois que a 13 de junho desse mesmo ano exalava o último alento nos braços de seu carinhoso filho, que referindo-se a esse tremendo lance, assim se expressava alguns anos depois:

Repassado de dor! Junto ao seu leito
De joelhos em lágrimas banhado
Recebi seus últimos suspiros:
E a luz funérea e triste que lançavam
Seus olhos turvos ao partir da vida
De pálido clarão cobriu meu rosto;
No meu amargo pranto refletindo
O cansado porvir que me aguardava.

Semelhante infortúnio teria mangrado o ridente porvir do esperançoso mancebo, se não lhe viesse em auxílio a munificência de sua madrasta, que facultou-lhe os meios de poder prosseguir em seus estudos, recusando generosamente os subsídios que várias pessoas haviam oferecido.

Ignaro da sorte que o aguardava, havia voltado ao Maranhão, donde teve de volver a Portugal a 13 de maio de 1838, em companhia do abastado capitalista Bernardo de Castro e Silva.

Quanto lhe foi penosa essa nova separação dos entes que lhe eram mais caros, exprimiu-o ele nos seguintes melancólicos versos:

Parti dizendo adeus à minha infância
Aos sítios que eu amei, aos rostos caros
Que eu já no berço conheci — àqueles
De quem malgrado a ausência, o tempo, a morte
E a incerteza cruel do meu destino,
Não me posso lembrar sem ter saudades
Sem que aos meus olhos lágrimas despontem.
Parti, sulquei as vagas de oceano;
Nas horas melancólicas da tarde
Volvendo atrás o coração e o rosto,
Onde o sul, onde a esperança me ficava,
Misturei meus tristíssimos gemidos
Aos sibilos dos ventos nas enxárcias.

Mas porque encaminhava-se Gonçalves Dias a Portugal, porque ia frequentar a Universidade de Coimbra quando já nessa época funcionava o curso jurídico de Olinda, onde com maior facilidade, e quiçá com menor despesa poderia alcançar a láurea acadêmica que ambicionava? Peçamos a um dos seus mais esmerados biógrafos, o senhor doutor Antônio Henrique Leal, que nos ministre o fio condutor, a chave desse enigma:

"Era a Universidade de Coimbra, antes das fáceis e rápidas comunicações estabelecidas pelos paquetes à vapor entre esta e as províncias, em cujas capitais se acham as nossas faculdades científicas, o centro quase exclusivo para onde convergiam os Maranhenses que aspiravam a carreira das ciências, obtendo os mais inteligentes grande proveito de uma tal frequência; por isso que recebiam na convivência e nas palestras dos colegas e professores das diversas matérias, que ali se liam, maior soma de conhecimentos e robusteciam-se nas que eram próprias de seus estudos, e nas humanidades, ou preparatórios, que são as verdadeiras e sólidas bases dos que se prezam de saber, principalmente a língua pátria, em que sempre timbrou a mocidade maranhense; e é ao que se atribui o gosto que tem os filhos desta província pela leitura dos clássicos, tão entusiasticamente manuseados e aproveitados pelo ilustre intérprete de Virgílio, Manuel Odorico Mendes, e por aqueles que, como João Francisco Lisboa e o senhor Francisco Sotero dos Reis, mais de perto os conversavam: e se da universidade colhiam os estudiosos úteis frutos, não menos deliciosos e sazonados obtinham de Coimbra os prediletos das musas".

Na aula de latim, do então Colégio das Artes, regida pelo abalizado Luís Inácio Ferreira, adquiriu Gonçalves Dias foros de exímio estudante, merecendo que seus condiscípulos o denominassem: de esperançoso menino do Maranhão.

No meio dos seus triunfos escolares, sobreveio-lhe grande desgraça, a interrupção da mesada que lhe fazia sua bondosa madrasta, em consequência dos prejuízos que sofrera com a guerra civil do Maranhão, conhecida pela Balaiada. Vendo-se de novo baldo de recursos, tomou o caminho de Figueira a fim de implorar do prestante varão que o acompanhara em sua última viagem, os meios indispensáveis para regressar à pátria.

Conhecida essa intenção de alguns estudantes brasileiros, assentaram opor-lhes seu veto, e fazendo bolsa comum, ministrarem ao talentoso mancebo os recursos que lhe faltavam.

Coube a João Duarte Lisboa Serra a iniciativa de tão nobre ideia, sendo calorosamente apoiado pelos senhores Alexandro Teófilo de Carvalho Leal, Joaquim Pereira Lopes, José Hermenegildo Xavier de Moraes.

Os sentimentos pundonorosos do jovem poeta, impeliram-no a recusar a aceitação de semelhante benefício; tendo porém de render-se ante as solicitações tão instantes quão despretensiosas.

Lançando um olhar retrospectivo sobre sua vida de estudante servia-se destas magoadas expressões:

"Triste foi a minha vida de Coimbra, que é triste viver fora da pátria, subir degraus alheios, e por esmola sentar-se à mesa estranha. Essa mesa era de bons e fiéis amigos, embora! O pão era alheio, era o pão da piedade, era a sorte do mendigo".

Comendo de amigos para apropriar-nos de uma locução de Diego do Couto, falando de Camões, transpôs Gonçalves Dias os umbrais dos estudos preparatórios e matriculou-se no curso jurídico.

"Operário da inteligência (diz o sempre citado senhor doutor A. N. Leal), nunca mediu o estudo pelo tempo; largava os livros das mãos só de puro cansaço. Magnífico exemplo para a nossa mocidade que fia a cultura do espírito mais da agudeza ingênita com que o dotou a Providência, do que do estudo e do trabalho paciente, consciencioso e de todos os instantes! É a inteligência como a terra, produz rica messe de frutos, porém somente depois de infundir-se-lhe nela muito capital e muito suor. Facilmente conquistou o nosso poeta um dos primeiros lugares entre os mais distintos condiscípulos, a par de Bruschy, de Cardoso Avelino, Salguein, Couto Montein, Beça Correia, Pedroso, Pinto e Nóbrega."

Não era porém só na ciência de Pascoal de Melo que primava o nosso conterrâneo; a literatura servia-lhe de jardim onde plantava e colhia as mais mimosas e fragrantes flores. Assim, quando Serpa Pimentel fez surgir em 1838 o teatro acadêmico, e quando dois anos depois fundou uma revista contou-se Gonçalves Dias entre os mais esforçados lidadores que tão alto levantaram os pendões do romantismo, e com tanta galhardia continuaram a obra da regeneração literária empreendida por Garrett, Herculano e Castilho.

Por um bem entendido patriotismo entendeu que as primícias do seu estro deveram pertencer à pátria, e só à muito custo consentiu na publicação de uma poesia intitulada: A Inocência; recitada num festim campestre dado pelos estudantes brasileiros ao chegar a Coimbra a notícia da maioridade do senhor dom Pedro II.

Tocava à meta de suas aspirações acadêmicas, não tardaria a ver cingida a fronte da láurea doutoral, quando sagrados e imperiosos deveres de família levaram-no a Serra do Gerês, impedindo-lhe o complemento dessas mesmas aspirações. Já era porém bacharel em ciências jurídicas, e satisfazendo-se com esse modesto grau deliberou volver aos seus lares, indo exercer a nobre profissão de advogado em Caxias (em 1845).

Curta e atribulada foi sua residência nessa cidade, e por experiência própria convenceu-se de que para talentos da ordem do seu é por demais acanhado o cenário da vida de província, e que mais altos destinos o chamavam algures.

Foi no ano de 1846 que pela primeira vez avistou o Pão de Açúcar que devera depois celebrar na belíssima alegoria do Gigante de Pedra. Nesse mesmo ano deu ao prelo os seus Primeiros Cantos que lhe valeram honroso e justo louvor de um dos maiores sabedores de nosso idioma:

"Merecer a crítica de Alexandre Herculano (diz ele no prólogo da segunda edição desses cantos) já eu consideraria como bastante honrado para mim; uma simples menção do meu primeiro volume rubricada com o seu nome, desejavam decerto, mas esperá-lo seria de minha parte demasiada vaidade."

Decerto quem conhecer a parcimônia com que o eminente historiador profere seus alvidramentos, convencer-se-á que grande soma de merecimentos descobrira ele nos primeiros arpejos dessa musa juvenil.

Saudada como um verdadeiro acontecimento a publicação desse livro, e desde logo destinada a marcar uma época em nossa história literária, foi seu autor alvo de inúmeras atenções e obséquios.

Enquanto inebriavam-lhe os perfumes encomiásticos sentia rasgar-lhe as carnes os acerados espinhos da pobreza, e foi talvez com referência a essa quadra da sua tão dramática existência que dizia ele num dos seus mais lindos sonetos:

Pensas tu, bela Armia, que os poetas
Vivem de ar, de perfumes, de ambrosia,
Que vagando por mares de harmonia,
São melhores que as próprias borboletas?

No profundo estudo que do latim fizera, encontrou meios de subsistência, e por espaço de quatro anos exerceu com notável aptidão o magistério dessa língua no Liceu Provincial que então existia na cidade de Niterói.

Os curtos lazeres que lhe deixava o fiel e exato cumprimento de seus deveres, consagrava-os ele ao ameno trato das musas, dando à estampa em 1847 o melhor de seus dramas intitulado Leonor de Mendonça, e no ano seguinte as Sextilhas de Frei Antão, monumento de erudição filológica.

Bem curioso é o histórico dessas Sextilhas, e seja o senhor doutor Leal quem no-lo transmita:

"Apresentara Gonçalves Dias ao exame e crítica do Conservatório Dramático do Rio de Janeiro outro drama, Beatriz de Cenci, sem nome de autor e por letra estranha. Desfecharam os censores os mais desapiedados golpes contra o pobre escrito desapadrinhado, e o reprovaram, assacando-lhe primeiramente erros crassos de linguagem, e isto num português de contrabando. O poeta, que sabia e manejava a língua como mestre, sentiu-se de afronta: e jurando para si tomar vingança dos censores, compôs as Sextilhas de Frei Antão, provando destarte, que além descrever como Castilho e Herculano, quando queria também o fazia numa linguagem particular e privativa de uma época determinada. Foi nobre o desforço, e a resposta cabal e satisfatória!"

Rompera o nome de Gonçalves Dias o nevoeiro que soe obumbrar ainda os mais esperançosos talentos, começava a ser reconhecida e apreciada a sua mestria e o colégio de Pedro II ambicionou-o para seu professor, confiando-lhe as cadeiras de latinidade e história pátria. Nesse estabelecimento normal deixou ele bem gratas recordações, e muitos dos que tiveram a fortuna de ouvir-lhe as lições, comemoram saudosos os arroubos de eloquência que lhe manava dos lábios quando o assunto lho permitia.

Do ônus professoral distraiu-o o governo imperial em 1851, confiando-lhe a importantíssima missão de estudar praticamente o estado da instrução pública em várias províncias do norte indicando ao mesmo tempo os meios conducentes a melhorá-la. Recomendava-lhe outrossim o mesmo governo que coligisse nos arquivos públicos e particulares quaisquer documentos úteis à nossa história no período anterior à independência. Do modo porque desempenhou tal incumbência, podem servir de abono os relatórios que por essa ocasião escreveu e que nos consta jazerem desprezados na secretaria do império, e as notícias e apontamentos exarados nas páginas da Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

De volta de sua excursão ao norte do império, foi despachado oficial da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (em 1852); e nesse mesmo ano contraiu matrimônio com a senhora D. Olímpia da Costa, filha do estimável e venerando D. Cláudio Luís da Costa. Desse matrimônio resultou apenas una menina que faleceu em tenra idade.

Por tão bem servido se dera o governo imperial com o desempenho da tarefa encarregada a Gonçalves Dias, que confiou-lhe outra idêntica ampliando-lhe as proporções. Em 1855 partia ele para a Europa incumbido de estudar nos principais países dessa região os métodos mais seguidos e melhor adotáveis às nossas circunstâncias locais.

Escolhendo Portugal para começo de suas pesquisas, aproveitou utilmente sua estada na antiga metrópole a fim de manusear curiosamente os arquivos de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, extraindo cópias e apontamentos de tudo o que de mais interessante ofereciam para a nossa história colonial.

Reservando para mais tarde ulteriores indagações deixou a pátria de seus maiores para percorrer sucessivamente França, Inglaterra e Alemanha, examinando com esmero todos os estabelecimentos de educação e instrução, e remetendo minuciosos e lúcidos relatórios que parece tiveram a sorte dos primeiros.

Achando-se em Leipzig proporcionou-se-lhe ensejo de entreter amigáveis relações com o muito conceituado livreiro Brockhaus, que sugeriu-lhe a ideia de uma edição de seus Cantos, que foram dados a lume com o título de Primeiros, Segundos e Últimos Cantos. Por esse mesmo tempo (1857) confiou aos tipos o seu Dicionário da Língua Tupi, chamada língua geral dos Indígenas do Brasil; e os quatro primeiros cantos de uma epopeia americana denominada: Os Timbiras.

Regressando ao Rio de Janeiro, não encontrou aí o repouso de que tanto necessitava mas sim novo apelo no seu nunca desmentido patriotismo. Por indicação do Instituto Histórico e Geográfico, resolvera o então ministro do império Sr. Conselheiro Luís Pedreira do Couto Ferraz (Barão do Bom Retiro), nomear uma comissão científica a fim de explorar e catalogar as riquezas que com tão pródiga mão doou a Providência a este ubérrimo solo.

Dividida em cinco seções coube a de etnografia ao nosso poeta, que na composição do seu Dicionário da Língua Tupi, tão amplos conhecimentos revelara na ciência dos Montoias e Figueiras. A coordenação e redução da viagem ficaram também a cargo do mesmo indivíduo.

Não nos pertence averiguar as causas que fizeram malograr essa generosa tentativa de prosseguir nas investigações científicas dos Ferreiras, Câmaras, Betencourts, Coutos, Feijós e alguns outros beneméritos brasileiros, que, ainda sob o regime colonial, inventariaram nossos naturais tesouros.

Deixando a província do Ceará, escolhida pela comissão como base de suas operações, fez Gonçalves Dias uma curta visita aos seus amigos do Maranhão (em fins do ano de 1860) dirigindo-se daí às duas mais setentrionais províncias do império. Nas margens do caudaloso Amazonas, pensava ele encontrar a solução dos grandes problemas etnográficos e linguísticos que tanto tem preocupado os sábios do antigo e novo continente.

Nessas pesquisas consumiu cerca de seis meses, e ao cabo desse tempo achou-se com a saúde tão deteriorada, que forçoso lhe foi tomar o caminho do Rio de Janeiro, onde aportou em princípios do ano de 1862.

Por tal forma se agravaram seus crônicos padecimentos hepáticos e pulmonares, que, por conselho dos médicos, resolveu-se a tornar a Europa, abandonando a ideia que a princípio concebera de esperar dos pátrios ares a recuperação de sua saúde.

Na travessia de Pernambuco para o Havre, a bordo do navio francês Condé, ocorreu uma circunstância que proporcionou-lhe o invejável prazer de ouvir na própria vida o juízo que a nosso respeito terá demitir a posteridade.

Foi o caso que, havendo falecido no referido navio um passageiro, divulgou-se logo a notícia que fora ele, o ilustre poeta brasileiro, que tão gravemente enfermo se embarcara. A imprensa dos países que falam o idioma português, pranteou-lhe a morte sem distinção de matizes políticos: o Instituto Histórico suspendeu a sua sessão ao saber de tão lamentável ocorrência; na capital e nas demais cidades e povoações do império, celebraram-se missas e ofícios fúnebres, e a família do poeta cobriu-se de pesado luto. Não tardou em ser desmentida a infausta nova por cartas do próprio Dias, que soube tirar partido da eventualidade para chistosas facécias.

Momentânea foi porém a satisfação dos seus amigos e admiradores: progredia a fatal moléstia frustrando a ciência e solicitude dos mais abalizados médicos. Debalde mudava de clima: a morte seguia-lhe as pegadas, semelhante ao animal que a ligeira seta de destro índio feriu em sua vertiginosa carreira.

Um como sinistro pressentimento advertia-o de seu próximo e trágico fim. Poucos dias antes de deixar as plagas europeias, endereçou ele estas linhas ao seu particularíssimo amigo o senhor doutor Leal.

"Amigo Antônio Henriques: — Persuadido que uma longa viagem por mar me há de ser de algum proveito, resolvi-me a seguir para o Maranhão pelo Havre. Dizem-me que há um navio a sair no dia 10 do corrente (setembro de 1864); se há, vou nele. Em princípios de outubro devo lá estar, se não ficar no mar...

No caso de alguma catástrofe, quod absit, os retratos ficam para a biblioteca. Os manuscritos (cópias) manda para o Instituto.

Tenho, não sei por que, ainda esperanças que a viagem me fará bem, mas quando mesmo me não dê mal, e muito mal, é mais que provável que tenha ainda o prazer de te dar um abraço.

Adeus. Lembranças a Teófilo, Rego, Pedro, e mil saudades do teu do coração
 GONÇALVES DIAS."

Firme no propósito anunciado embarcou-se a 14 desse mês e ano na barca Ville de Boulogne, com destino ao Maranhão, e quando sôfregos aguardavam-lhe a vinda amigos, parentes e afeiçoados, soou a lutuosa notícia de sua morta ocorrida no naufrágio da mencionada barca. Eis como narrou essa catástrofe o correspondente do Correio Mercantil do Rio de Janeiro:

"Começarei esta missiva por uma notícia tristíssima: o doutor A. Gonçalves Dias, morreu no dia 3 do corrente (novembro de 1864) em o naufrágio da barca francesa Ville de Boulogne, nas imediações do farol de Itacolomi.

Vinha o navio com quarenta e tantos a cinquenta dias de viagem do Havre, onde o ilustre poeta embarcou, persuadido de que um longo trajeto marítimo lhe havia de fazer bem, e desejava melhorar, ou morrer e ser enterrado na terra do seu berço. Lá em cima, estava previsto o contrário.

O poeta piorou consideravelmente na viagem. Contam as pessoas da tripulação da barca, que alguns dias antes do naufrágio, já o doente não se podia levantar, nem tomar alimento. Fumou charutos até quanto pôde, e quando nem isso mesmo lhe foi mais possível fazer, dizem que pedia à alguém que fumasse a seu lado e lhe soprasse à boca o fumo. Estava sem carnes, sem voz, sem vida.

O capitão da barca, afirma que, quando o navio bateu nos baixios, já Gonçalves Dias tinha morrido. Acredita-se, porém, que estando o ilustre poeta à morte, a tripulação o abandonou, deixando-o encerrado no camarote, do qual não podia sair por lhe faltarem as precisas forças. Veja que morte aflita e angustiada estava à espera do desditoso poeta!

Achava-se o navio a umas oito léguas do porto da capital.

Dizem os práticos da barra, e consta que o naufrágio parece ter sido intencional, porque no lugar em que ele se deu, só bate o navio que quer bater. Combina-se isto com a notícia de que o capitão não quis receber no Havre passageiro algum, admitindo o doutor Gonçalves Dias, depois de muitas instâncias, persuadido naturalmente de que o passageiro, gravemente enfermo, não aguentaria a viagem.

Logo que se soube do naufrágio, sua Excelência o senhor Presidente da Província, o senhor doutor Chefe de polícia interino, tomaram e expediram todas as providências, recomendando muito a procura do cadáver e dos baús pertencentes à bagagem do ilustre poeta. O segundo, de acordo com o primeiro, ofereceu um prêmio à pessoa que encontrasse o corpo. Outro prêmio e para o mesmo fim foi oferecido por vários amigos do doutor Dias, em cujo número se conta o doutor Antônio Henriques Leal."

Aludindo ao malogro de suas tentativas assim se exprime o referido senhor doutor Leal:

"Por mais diligências que empregamos os amigos e admiradores do poeta, não conseguimos descobrir o cadáver de quem, para dobrado infortúnio, não chegou a dar o último alento nos braços de amizade, ou logrou que seus restos repousassem na terra da pátria, e nem se quer temos podido obter até hoje (janeiro de 1868) os escritos que consigo trazia, e que estejam, segundo estou convencido, na cidade de Alcântara em poder de quem pretende, talvez, um dia aproveitar-se com eles."

Apagada a última centelha da esperança de encerrar os restos mortais do festejado poeta em modesto e decente jazigo, voltaram-se as vistas dos amigos para a ideia do erguimento de uma estátua que transmitisse aos pósteros seu glorioso nome.

Gonçalves Dias é inquestionavelmente o nosso primeiro poeta lírico: nenhum melhor do que ele compreendeu e executou as leis desse dificílimo gênero de composição. A bela alma do poeta espelha-se em suas inspiradas composições, e jamais deixou de revelar neles os generosos impulsos que o guiavam. Como os peixes nadam, os pássaros voam, os animais andam ou correm, assim poetava G. Dias, satisfazendo a uma imperiosa necessidade do seu organismo, isto sem o menor cálculo, sem a mínima ostentação.

Eis como o apreciava um estimado crítico contemporâneo:

"Antônio Gonçalves Dias, nas suas Poesias Americanas, avantajou-se aos seus predecessores, deixando ficar atrás de si o próprio Araújo Porto Alegre, que, em suas Brasilianas lhe mostrara o caminho que cumpria seguir. Não satisfeito de descrever subjetivamente a impressão que lhe causavam as particularidades da natureza e dos costumes brasileiros, ele conseguiu identificar-se objetivamente com as ideias e as expressões dos indígenas. Tão depressa o vemos como um vate indiano (piaga, ou pajé) explicar ou conjurar as visões, tão depressa entoar cânticos guerreiros, como cantar sacrifícios, e combates sanguinolentos. Ora chorar como um marabá, os destinos dessa raça mestiça, desprezada pelos indígenas, ora transformado em menino índio falar dos encantos da mãe d'água, que, semelhante as sereias, o atrai para seu leito úmido. Em uma palavra, Gonçalves Dias aproxima-se da balada; acha-se no melhor caminho para criar uma poesia verdadeiramente nacional e revestida de forma apropriada ao gosto do nosso tempo. Não é pois para admirar que as suas Poesias Americanas tenham adquirido no Brasil uma grande popularidade".

Não foi só no Brasil que as Poesias Americanas granjearam subidos louvores ao nosso autor: o vulto mais proeminente da literatura portuguesa contemporânea assim se expressou noutro escrito justamente célebre:

"Quisera que as Poesias Americanas, que são como o pórtico do edifício ocupassem nele maior espaço. Nos poetas transatlânticos há, por via de regra, demasiadas reminiscências da Europa. Esse novo mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para imperar e nutrir os poetas que crescerem à sombra de suas selvas primitivas.

Cedendo a tais conselhos e exortações, consagrou-se Gonçalves Dias ao estudo da teogonia dos nossos indígenas, pesquisou-lhes as crenças e usanças, e nesse ponto levou as lampas (como muito bem observa Wolf) ao próprio senhor Porto Alegre, que lhe mostrara o caminho. No colorido porém dos quadros, na plástica representação da esplêndida natureza tropical ficou muito abaixo de seu êmulo.

Seguindo a trilha dos senhores Magalhães e Porto Alegre, logrou Gonçalves Dias desde a sua primeira aparição no cenário da literatura nacional, ser contemplado entre seus principais chefes, excedendo-lhes ainda em popularidade. A razão dessa sobreexcelência cumpre buscar no fanatismo com que a juventude segue todas as inovações, e nessa espécie de feitiço operado pelo vocabulário indígena que o poeta naturalizou em seus Cantos. A exceção de um, ou de outro termo, indispensável para exprimir ideias que desconhecia a velha linguagem de nossos pais, cremos desnecessários semelhantes neologismos, e no nosso pensar mal inspirado andou o poeta dando-lhes tanta voga e inoculando na nova e esperançosa geração, o vírus da logomaquia.

Não era só em versos que sabia escrever o distinto literato: a prosa também mereceu-lhe particular esmero e nas páginas da Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, acham-se registradas memórias suas de reconhecido merecimento. Dentre elas avantajam-se pela importância dos assuntos e mestria de execução as intituladas As Amazonas e o Brasil e a Oceania.

No primeiro desses trabalhos investiga o grau de credibilidade que merece a tradição das amazonas na Síria e na Líbia, e os motivos que tiveram Orelana e Cristóvão da Cunha para supor a sua existência nas margens do majestoso rio que delas tomou o nome. Ao cabo de erudita e lúcida discussão, propende o autor pela negativa e afirma que jamais existiram semelhantes criaturas em parte alguma do mundo.

O Brasil e a Oceania, é um estudo de etnologia que abundantes luzes derrama sobre as intrincadas questões das origens das autóctones das novas regiões reveladas à Europa pela impavidez de seus nautas. Fazendo passar pelo esmeril de sua delicada crítica as várias opiniões dos sábios que largamente se ocuparam da matéria, revelou uma proficiência científica que não era dado esperar de quem tão habituado estava aos arroubos da imaginação.

Antes de concluirmos esta rápida apreciação das obras de Gonçalves Dias, digamos duas palavras acerca dos Timbiras. Consideramo-lo como soberbo peristilo de colossal templo, cuja arquitetura ciclópica fusta-se ao compasso de Vetrúvio e Vignola. É porém uma obra inacabada, onde nem sequer se pode rastrear a traça que o autor pretendia dar-lhe, sendo portanto impossível aferir-lhe o mérito.

As Obras Póstumas, piedoso sarcófago erguido pelas mãos de amizade encerram as relíquias literárias do malogrado poeta. Como soe acontecer em tais publicações o ouro, as pérolas e as pedras preciosas, brilham ao lado das lantejoulas e das estalactites; produções efêmeras, ou mirando alvos mal conhecidos, sentem-se vexadas e confusas, tendo de comparecer no agora da imprensa. Representam outras esses períodos de transição, essas aspirações vagas e indefinidas, que os autores, semelhantes aos pintores da antiguidade, escondem cautelosamente às vistas profanas.

Pelo que dissemos, vê-se que Gonçalves Dias nascera poeta, como nasceu Camões e Bocage; o estudo aprimorou-lhe o estro: e se mais vivesse, e lhe fosse dado lançar retrospectivo olhar para seus escritos, temos fé que deles apagaria algumas nódoas, e castigando-os com a lima de Horácio, legaria à posteridade irrepreensíveis e invejáveis exemplares de bom gosto e castiça linguagem.


 J. C. FERNANDES PINHEIRO
Nova Friburgo, 20 janeiro 1870.

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