3/04/2019

O Brasil das páginas de Monteiro Lobato (Ensaio)


O Brasil das páginas de Monteiro Lobato

Percorrendo as páginas de Monteiro Lobato a gente vê como aquele caboclo arredio, aquele jeca arisco e desconfiado, aquele tipo indomável, que passara quase toda a meninice lá no vale do Paraíba, abriu picadas em carrasqueiros virgens e temidos, mandado às urtigas os gramáticos, para mostrar com tintas arrancadas da terra o verde cru das matas, os campos tostados, o vermelho dos barrancos talhados, o solo cortado de brejos, córregos e carreiros, o batido dos monjolos e porteiras, de permeio ao ipê, palma benta e mastro de Santo Antônio. E se teimar em se afundar mais, a gente se arranha em caraguatá, corta-se com navalhas de mico e queima-se ao sol. 

A paisagem é crua, viva e palpitante: é o Brasil pitoresco e agreste! 

A casa colonial, a casa do caboclo, o rancho do tropeiro, a tapera, o fogo no terreiro, a Santa Cruz, Jequitibás, embaúbas, coqueiros, palmitos, perobeiras, caneleiras, primaveras e orquídeas. Mais no descampado: o cafezal, a barba de bode, a erva-cidreira, o juá e a guanxuma. 

O apito do trem, que é a civilização, está longe, e o caboclo vive à margem do progresso! 

Todo o nosso ruralismo, do fazendeiro ao camarada, do sitiante ao agregado, o Brasil típico nacional, desfila vivinho na obra de Lobato. 

Da cidade grande à cidade morta, decadente; da fazenda ao sitiozinho obscuro; do graúdo ao Jeca Tatu, opilado, desanimado. 

Monteiro Lobato é o escritor brotado do chão que vai e escuta o pobre Jeca no seu casebre, já que à casa grande dos Coronéis da antiga Guarda Nacional, do velho perrepê, não falta quem vá lá. No entanto, o Jeca, o nosso Jeca, ateador de fogo nas matas, sozinho, soma, vive triste como o curiango, atarantado com o seu matungo trotão, com a sua égua magra, com o seu cachorro bernento, passa a vida inteira num mundo de fogueiras, tições, viola, porrete, isqueiros, cuias, gamelas, espichado ou acocorado no terreiro da tapera, acreditando em sacis e boitatás, para ir só de quando em vez à venda, ao botequim da beira da estrada. 

Monteiro Lobato reconhece que se trata de doença e não de mamparra, de ruindade. Pouca gente enxerga que é da má alimentação, de falta de higiene, de falta de instrução. Não é que não seja inteligente, faz um tempo quente se algum ladino procura bobeá-lo... 

Num pega não cochila e a vida que se fomente.

É nas suas vilas, nas suas fazendas, nos seus sítios que mora a Lindoca, o Neco, o Quim da Venda, o coronel Fulgêncio, enquanto grileiros, chefes políticos atormentam o Jeca até de raiva de se tornar eleitor da roça... Quantos tipos, meu Deus! — o comprador de fazendas, o homem honesto, a pretinha órfã maltratada, a patroa a queixar-se com o bom padre da terra. Todos cruzam as ruas, as estradas, as picadas coloridas de nosso regionalismo brasileiro. 

Às vezes Monteiro Lobato se espanta em face de casos de estupidez e de negligência e dispara a combater a perversidade, a exploração dos homens o desfibramento de caráter, a covardia, a acomodação, a negociata e a safadeza: isso com intenção social para o saneamento do país no corpo e na alma. Não perdoa fazedores de guerras, os que fazem da imoralidade rendosa indústria ao preço da fome da subnutrição de nossos patrícios. 

E as suas palavras ardem como brasa, tem o topete de dizer as coisas com franqueza e independência. E quando embirra não arreda: é positivo, franco e paradoxal. Não vai com o meio termo: só os medíocres são sempre do centro, inexpressivos — sem grandes defeitos nem grandes qualidades. 

"O Escândalo do Petróleo" lhe dá cadeia, mas o petróleo é nosso! Por que se há de entregá-lo aos trustes que só tem por pátria os lucros!? O ferro é nosso! Hão de se fundar muitas Voltas Redondas! O analfabetismo, a ignorância o tornaram o pioneiro da divulgação do livro, do nosso livro, do livro nacional.

As tiradas originais, as conclusões imprevistas giram quase sempre em torno de nossas necessidades nacionais: petróleo, ferro, saúde e instrução. 

Nada de urupês, nada de paliativos, nada de esmola que humilha e que conserva mendigos, estropiados e capengas quando se deve cuidar da higiene e da assistência social. 

Monteiro Lobato diz o que pensa com o intento de fazer mudar para melhor as coisas nacionais, prefere apontar erros a ocultá-los. Não gosta de ver o menino esticando os olhos para o brinquedo, para o doce da vitrina, enquanto a mãe cheia de angústia procura distrair-lhe a atenção. 

E ao ver que ainda não possuímos um mundo infantil propício, põe-se a sentir como as crianças e com paciência e bondade a vogar pelas regiões da fantasia. De uma fantasia sadia e construtiva, baseada em nossa índole, diferente dessa literatura imitada ou importada cheia de "gangsters", de "tanks", de metralhadoras, de mãos ao alto, venenosa, perniciosa. 

Monteiro Lobato apanha o Brasil puro, mesclado, tipicamente Brasil para tomar café com rapadura com o caboclo, acocorado com ele, picando fumo, cuspindo de esguicho, jogando-lhe uma porção de coisas na cabeça, e da prosa gosta o Jeca, percebendo que outro patrício, talvez mais instruído o compreende. 

E a custa de insistir e de condenar a incultura a pasmaceira, Monteiro Lobato, pouco antes de morrer, começara a perceber que as ideias de Jeca Tatu vinham com melhor bom senso e o espírito a se abrir para um Brasil mais humano e progressista.

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DANTE ALIGHIERI VITA
Revista do Professor, fevereiro de 1954.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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