O caso Fernando Pessoa é um fenômeno literário que jamais se verificou e dificilmente se repetirá noutra literatura.
Foi
um homem atormentado. Sofreu pelo menos quatro vezes mais do que qualquer outra
criatura, porque possuía quatro almas. Quatro almas sensíveis de poeta.
O
que há de extraordinário nesse caso de desdobramento de personalidade — mais
curioso que o Dr. Jekyll e Mr. Hide da famosa novela de Stevenson — é que no espírito
do poeta coexistiram e conviveram pelo menos quatro personalidades geniais, cada
qual vivendo seus conflitos e incertezas: de ordem material ou espiritual, cada
qual sofrendo suas angústias: físicas ou metafísicas.
Cada
criatura nascida de dentro de si mesmo conquistou uma personalidade autônoma, com
caracteres bem demarcados, com uma visão particular do mundo, cumprindo um destino
próprio e inexorável.
Fernando
Pessoa conseguiu identificar de tal modo a presença dessas subpersonalidades em
seu próprio espírito, que chegou a traçar sobre cada uma delas um retrato físico,
um perfil moral, indicando todos os seus anseios e idiossincrasias.
Dirão
alguns que a obra de Fernando Pessoa — considerada em conjunto — se mostra contraditória
e fracionária. O poeta, porém, pode ser contraditório sem deixar de ser
autêntico, porque a finalidade da poesia não é definir a vida — cujo mistério lhe
será sempre indefensável — mas apenas fixar momentos vividos.
O
objetivo da poesia não é demonstrar verdades, nem muito menos explicar fenômenos,
mas unicamente comunicar vivências superficiais ou profundas, conscientes ou inconscientes,
experiências de vida além de um sentimento particular das coisas e de uma intuição
pessoal do mundo. Não deve, como a ciência, investigar a ordem e a natureza dos
fenômenos a fim de estabelecer as relações invariáveis existentes entre os
fatos, nem tão pouco como a filosofia, remontar às causas e à essência íntima
de todos os seres, por um processo racional. O intelecto interrompe a ligação afetiva,
a corrente mágica que deve sempre existir entre o poeta que contempla e o mundo
contemplado.
O
poeta é um homem emocionado em comunhão com a vida, em união mística com todas
as coisas e seres do universo. O mundo em si mesmo é neutro. Nossas emoções é
que adjetivam. Se estamos tristes e acabrunhados projetamos a sombra de nossa
melancolia em tudo aquilo que nos cerca. Se estamos eufóricos a Natureza nos sorri
radiosa. Todos nós — e em especial os poetas, criaturas supersensíveis — vemos o mundo através de
nosso estado de ânimo, que a realidade em si mesma não tem qualquer tonalidade afetiva.
O medo povoa nossas noites de fantasmas. O amor nos deixa sintonizados e faz-nos
descobrir belezas até então não percebidas. O poeta vive, mais do que todos, num
mundo mágico, fabricado por suas próprias emoções. Recria a realidade à sua
maneira, que nos é dado perceber, em profundidade, aquilo que sentimos. A compreensão
é a forma intelectual do amor.
Não
cabe ao poeta resolver conflitos nem problemas, mas somente vivê-los e
expressá-los. O poeta é um ser dotado de empatia, essa capacidade de sentir o
que os outros sentem, de sofrer o que todos sofrem. E será tanto maior quanto
mais identificado estiver com a mentalidade de sua época e o sentir dos homens
de seu tempo.
É
o caso de Fernando Pessoa que representou o espírito de sua época.
Fernando
Pessoa, ao justificar o desdobramento de sua personalidade, dizia-se um histérico
neurastênico. Para ele, todo o poeta seria um fingidor. Assim se expressa no
seu poema Autopsicografia.
Entretanto
o poeta não é um fingidor. O caso mesmo de Fernando Pessoa é o de uma simulação
sincera. Todas as suas dúvidas e inquietações geraram dentro dele intérpretes
legítimos, cada qual dotado de um modo peculiar de pensar, de sentir a realidade,
de sofrê-la. Cada um de seus heterônimos teve um destino diferente, uma mensagem
de beleza a transmitir, uma face da verdade a revelar.
Caeiro
era filósofo. Um metafísico sem metafísica a apregoar as excelências da vida simples,
pagã, frugal, espontânea, instintiva. Há em Caeiro, — não apenas no jogo
surpreendente dos paradoxos — alguma coisa de nietzschiano, de dionisíaco, no
bom sentido.
Ricardo
Reis era um preciosista, amigo das filigranas verbais, talvez um pouco “esnobe”,
a escrever com punhos de renda, da mesma renda fina dos seus versos. Era uma espécie
de anti-Caeiro. Parecia buscar a perfeição apolínea da forma.
Álvaro
de Campos é uma caixa de surpresas. Poeta de imprevistas paisagens interiores:
cético, cínico, pessimista, desconcertante.
O
poeta, porém, que assinava Fernando Pessoa (isto é, Fernando Pessoa “ele mesmo”)
era um intimista à procura da expressão exata, a usar e a abusar um pouco da
dose amarga de “humor”.
Quando
Alberto Caeiro se manifestou em mim — confessa o poeta — senti que surgira o meu
próprio mestre.
Como
julgar semelhante poeta?
Fernando
Pessoa terá de ser julgado como a síntese dos seus heterônimos. Síntese talvez impossível,
porque por ele mesmo tentada e frustrada. As subpersonalidades do poeta — cada
qual com seu ritmo próprio — não passam de movimentos da obra sinfônica desse
poeta complexo que, após tantas controvérsias, começa afinal a ser amado e por
amor, compreendido.
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MÁRIO NEWTON FILHO
O Seminário,
março de 1957.
Pesquisa,
transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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