
Victor
Hugo, ação e pensamento

***
A
fertilidade literária de Victor Hugo inscreve-se entre os predicados que lhe assinalam
personalidade excepcional. Suas produções formam uma sequência surpreendente
pela rapidez de confecção, e também pela diversidade de motivos e de processos.
Ao mesmo tempo compunha livros de poemas, de teatros, romances, sem levar em
conta o tempo necessário para atender aos seus deveres sociais e políticos.
Proferia discursos na Assembleia Nacional, escrevia livros, assistia aos
ensaios de suas peças no teatro, comparecia a reuniões em associações de que
fazia parte ou que o convidavam para solenidades. Depois de sua morte, verificou-se
que conjuntamente com todas essas atividades — qualquer delas bastante para
absorver, isoladamente, a atividade de um homem normal — ainda tomava notas de
aspectos diários da sua vida, e com tal largueza e brilho que bastaram para
encher volumes de esplêndido interesse. Em suas viagens igualmente reduzia à
literatura as impressões recebidas, tendo daí surgido uma série de obras
notáveis pela riqueza de colorido e esplendor de argumentos. A propósito de suas
notas diárias, editadas sob o título antecipadamente por ele escolhido — "Coisas
vistas", escreveu Fernand Gregh um artigo encomiástico de vivo interesse,
no qual salienta o talento de repórter do compositor genial de "Legenda
dos Séculos". Segundo o citado articulista, Victor Hugo pode ser considerado,
sem nenhum favor, o "príncipe dos repórteres". Em suas visitas à Assembleia
Nacional, às Tulhérias, à Câmara dos Pares, à Academia de Letras, o mestre tudo
reparava, e, chegando em casa, logo anotava em caderno suas impressões, que
assim se fixavam frescas, naturais, sem enfeites superficiais, de acordo com a
opinião e o sentimento do instante. Também o mesmo fazia em relação aos
acontecimentos públicos de maior notoriedade, aqueles que o impressionavam como
espectador. Essas notas, devidamente catalogadas, representam um repositório de
inestimável valor e provam a argúcia, o poder de sugestão, o senso de narrativa
sintética que, em tais ocasiões, assumia aquele espírito exuberante — para o
qual, à míngua de recursos outros, os críticos eventuais criaram um demérito:
sua fabulosa riqueza de imaginação e sua própria capacidade verbal. Apreciando
uma figura, um episódio, um acontecimento, o anotador de "Coisas
vistas" revela a maravilhosa acuidade da síntese, o poder de evocar em
poucas linhas uma apoteose, ou de fixar a essência de uma situação. O espetáculo
que assistiu — como, por exemplo, os funerais de Napoleão Bonaparte em Paris —
ele o projeta aos seus olhos através de poucas imagens. E, lendo esses períodos
singelos, mas de colorido e lineamento intensos, é como se estivéssemos
presentes ao evento. Fernand Gregh cita um trecho desse registro, que merece
divulgação:
"De
chofre, o canhão deflagra de uma vez em três pontos diferentes do horizonte.
Esse tríplice ruído simultâneo encerra o ouvido numa espécie de triângulo
formidável e soberbo. Tambores distantes batem o campo e o carro do Imperador aparece.
O sol, até aí velado, reaparece ao mesmo tempo. O efeito é prodigioso. Vê-se ao
longe, no vapor e no sol, sobre o fundo pardo e roxo das árvores dos Campos Elísios,
através das grandes estátuas brancas que se assemelham a fantasmas, mover-se
lentamente uma espécie de montanha de ouro. Um imenso rumor envolve essa aparição."
A
mesma empolgante precisão se encontra nos depoimentos sobre a execução de Luís
XVI, a morte do duque de Orleans, a revolução de 48. Mas o repórter dos grandes
espetáculos não é igualmente menos interessante nas simples observações pessoais
e episódios assistidos em suas ocupações diárias. O golpe de vista do observador
e o apuro do narrador realizam prodígios de concisão, de elegância, de
eloquência, de ironia. Lendo-o é como se se estivesse presente às reuniões acadêmicas
ou políticas a que ele comparecia e onde exercia a fascinação de um espírito
privilegiado. A vida de Victor Hugo encontra-se vinculada à existência de inúmeras
figuras representativas das letras, das artes, das ciências do seu tempo, e como
viveu oitenta e três anos de vida intensa, produtiva, muitas vezes combativa,
sua recordação pessoal envolve toda uma época. Nas páginas de "Coisas
vistas" surgem a todo momento perfis encantadores pela doçura ou pela
mordacidade, e também painéis que não raro exprimem o pensamento ou a crença de
uma geração.
***
Seus
últimos tempos de vida foram a perene consagração. O espírito adoçara-se com o
peso dos anos. Desapareceram-lhe de volta as vozes dos insolentes que tentaram em
vão marear o esplendor solar da sua inteligência. Também ele, o combatente
leonino, de garra sempre presta para o revide, também ele atingira o ponto que
as vaidades se aquietam e a consciência profunda do mundo e das ações humanas
permite a graça do perdão. Na altura a que ascendera, novos e velhos o fitavam
com a mesma admiração respeitosa. "Pére Hugo", chamavam-lhe, e nessa
expressão havia a confissão humilde e a homenagem de todos à superioridade do
titã. Alva a cabeça agitada de antes, um pouco recurvado o dorso atlético,
Victor Hugo mantinha intacto o espírito. Sua palavra cintilava, como sempre, em
réplicas flumíneas, ou encantava nas dissertações de intimidade entre amigos e
pares intelectuais. Ao seu retiro acorriam os luminares do tempo e os jovens
combatentes das letras. E todos encontravam no velho esse milagre da persistência
da luz interior. Conta-se, de então, uma passagem encantadora. Jules Lemaitre,
estreante na literatura, procurara Hugo. O porteiro indicara-lhe um corredor
imenso, que ele mediu a passo cuidadoso, pisando tapetes caros, entre alas de
fâmulos perfilados. Ao fim, encontrou um vastíssimo salão, ao fundo do qual
distinguiu, absorto no assento, o velho Hugo. Deteve-se, observando-o. Dois
minutos depois, o vulto ao fundo moveu-se, lento, mostrando-lhe a face. Hugo disse-lhe:
—
Estava aí? Desculpe-me.
Lamaitre
replicou com espírito:
—
Dou por bem empregado o tempo de espera: certo vai render-me belos versos.
—
Engana-se. Pensava na morte. E indagava de mim mesmo que atitude tomarei quando
me vir diante de Deus.
—
Por isso não merecia a pena pensar. Basta, quando o encontrar, estender-lhe a
mão e dizer simplesmente: — "Camarada, como passa?"
Essa
passagem anedótica exprime o culto dos seus contemporâneos pelo poeta que
Verlaine, consultado, dissera ser sempre o maior de França, e cujos méritos são
mundialmente inquestionáveis até nossos dias e para sempre.
A Noite, 23 de abril de 1935.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes
(2019)
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