A galeria
superior
A galeria superior é dividida por um tapume com portas
de espaço a espaço para o livre trânsito dos guardas. Os presos não podem ver
os cubículos fronteiros. Os olhos abrangem apenas os muros brancos e a divisão
de madeira que barra a cal das paredes. Quando a vigilância diminui, falam de
cubículo para cubículo, atiram por cima do tapume jornais, cartas, recordações.
Estão atualmente na galeria duzentos e trinta e oito
detentos. A aglomeração torna-os hostis. Há confabulações de ódio, murmúrios de
raiva, risos que cortam como navalhas. Com o sentido auditivo educadíssimo,
basta que se dirija a palavra baixo a alguém do primeiro cubículo para que o
saibam no último. E então surgem todos, agarram-se às grades, com o olhar
escarninho dos bandidos e a curiosidade má que lhes decompõem a cara.
Ah! essa galeria! Tem qualquer coisa de sinistro e de
canalha, um ar de hospedaria da infâmia à beira da vida. Nos cubículos há, às
vezes, dezenove homens, condenados por crimes diversos, desde os defloradores
de senhoras de dezoito anos até os ladrões assassinos. A promiscuidade enoja.
No espaço estreito, uns lavam o chão, outros jogam, outros manipulam, com miolo
de pão, santos, flores e pedras de dominó, e há ainda os que escrevem planos de
fuga, os professores de roubo, os iniciadores dos vícios, os íntimos passando
pelos ombros dos amigos o braço caricioso... Quantos crimes se premeditam ali?
Quantas perversidades rebentam na luz suja dos cárceres preventivos? Saciados
da premeditação, há os jornais que lhes citam os nomes, há o desejo de possuir
uma arma, desejo capaz de os fazer aguçar asas de caneca, o aço que prende a
piaçava das vassouras, as colheres de sopa, e há ainda o jogo. Nesses cubículos
joga-se mais de quarenta espécies de jogos. Eu só contei trinta e sete, dos
quais os mais originais — o camaleão, a mosca, o periquito, o tigre, a escova,
o osso, a sueca, o laço, as três chapas — são prodígios de malandragem. E
nenhum deles se recusa ao parceiro. Quando algum desconhecido passa, deixam
tudo, precipitam-se, alguns nus, outros em ceroulas, e há como um diorama
sinistro e caótico — negros degenerados, mulatos com contrações de símios,
caras de velhos solenes, caras torpes de gatunos, cretinos babando um riso
alvar, agitados, delirantes, e as mãos, mãos estranhas de delinquentes, finas e
tortas umas, grossas algumas, moles e tenras outras, que se grudam aos varões
de ferro com o embate furioso de um vagalhão.
Vive naquela jaula o Crime multiforme. O guarda aponta
o Cecílio Urbano Reis, assassino, na Saúde, de uma mulher que lhe resistira; o
João Dedone, facínora cínico; matadores ocasionais, como Joaquim Santana
Araújo, quase demente; o Mirandinha, mulato, passador de moeda falsa, que se
faz passar por advogado; o Barãozinho, gatuno; Bouças Passos, ladrão,
assassino; Salvador Machado, o íntimo criado de Tina Tatti; negros capangas com
as bocas sujas, que resistem à prisão com fúria; desordeiros temíveis, como o
Eduardinho da Saúde, retorcendo os bigodes, cheio de langores; sátiros moços e
velhos violadores; o célebre Pitoca, que tem sessenta e seis entradas; rapazes
estelionatários e até desvairados, como João Manoel Soares, acusado de
tentativa de morte na pessoa do senhor Cantuária, que leva, numa agitação
perpétua, a dizer: "— Eu sei, foi o bicho... foi por causa do bicho, hein?
Está claro!"
Dois baixos-relevos alucinadores, dois frisos da história
do crime de uma cidade, ora alegres, ora sinistros, como se fossem nascidos da
colaboração macabra de um Foram ou de um Goya, dois grandes painéis a gotejar
sangue, treva, pus, onde perpassam, com um aspecto de bichos lendários, os
estupradores de duas crianças, de sete e de dez anos...
Encontro ao lado de respeitáveis assassinos, de
gatunos conhecidos, na tropa lamentável dos recidivos, crianças ingênuas,
rapazes do comércio, vendedores de jornais, uma enorme quantidade de seres que
o desleixo das pretorias torna criminosos. Quase todos estão inclusos, ou no
artigo 393 (crime de vadiagem), ou no 313 (ofensas físicas). Os primeiros não
podem ficar presos mais de trinta dias, os segundos, sendo menores, mais de
sete meses. Os processos, porém, não dão custas, e as pretorias deixam dormir
em paz a formação da culpa, enquanto na indolência dos cubículos, no contato do
crime, rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e
infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com que a
sociedade esmaga as criaturas desamparadas. Nessa enorme galeria, onde uma
eterna luz lívida espalha um vago horror, vejo caixeirinhos portugueses com o
lápis atrás da orelha, os olhos cheios de angústia; italianos vendedores de
jornais, encolhidos; garçons de restaurantes; operários, entre as caras cínicas dos pivetes
reincidentes, e os porteiros do vício, que são os chefes dos cubículos. Todos
invariavelmente têm uma frase dolorosa:
— É a primeira vez que eu entro aqui!
E apelam para os guardas, sôfregos, interrogam os
outros, trazem o testemunho dos chefes.
Por que estão presos? José, por exemplo, deu com uma
correia na mão de um filho do cabo de um delegado; Pedro e Joaquim, ao saírem
do café onde estão empregados, discutiram um pouco mais alto; Antônio atirou
uma tapona na cara de Jorge. Há na nossa sociedade moços valentes, cujo esporte
preferido é provocar desordens; diariamente, senhores respeitáveis atracam-se a
sopapos; jornalistas velho-gênero ameaçam-se de vez em quando pelas gazetas, falando
de chicote e de pau a propósito de problemas sociais ou estéticos, inteiramente
opostos a esses aviltantes instrumentos da razão bárbara. Nem os moços
valentes, nem os senhores respeitáveis, nem os jornalistas vão sequer à
delegacia.
Os desprotegidos da sorte, trabalhadores humildes,
entram para a Detenção com razões ainda menos fundadas.
E a Detenção é a escola de todas as perdições e de
todas as degenerescências.
O ócio dos cubículos é preenchido pelas lições de
roubo, pelas perversões do instinto, pelas histórias exageradas e mentirosas.
Um negro, assassino e gatuno, pertencente a qualquer quadrilha de ladrões,
perde um cubículo inteiro, inventando crimes para impressionar, imaginando
armas de asas de lata, criando jogos, armando rolos. Oito dias depois de dar
entrada numa dessas prisões, as pobres vítimas da justiça, quase sempre
espíritos incultos, sabem a técnica e o palavreado dos chicanistas de porta de
xadrez para iludir o júri, leem com avidez as notícias de crimes romantizados
pelos repórteres; e o pavor da pena é o mais intenso sugestionador de
reincidência. Não há um ladrão que, interrogado sobre as origens da vocação,
não responda:
— Onde aprendi? Foi aqui mesmo, no cubículo.
Recolhida à sombra, nesse venenoso jardim, onde
desabrocham todos os delírios, todas as nevroses, é certo que a criança sem
apoio lá fora, hostilizada brutalmente pela sorte, acabará voltando. Mais de
uma vez, na cerimônia indiferente e glacial da saída dos presos, eu ouvi o
chefe dos guardas dizer:
— Vá, e vamos ver se não volta.
Como mais de uma vez ouvi o mesmo guarda, quando
chegavam novas levas, dizer para umas caras já sem-vergonha:
— Outra vez, seu patife, hein?
Mas que fazer, Deus misericordioso? Nunca, entre nós,
ninguém se ocupou com o grande problema da penitenciária. Há bem pouco tempo, a
Detenção, suja e imunda, com cerca de novecentos presos à disposição de
bacharéis delegados, era horrível. Passear pelas galerias era passear como o
Dante pelos círculos do inferno, e antes do senhor Meira Lima, cuja competência
não necessita mais de elogios, o cargo de administrador estava destinado a
cidadãos protegidos, sem a mínima noção do que vem a ser um estabelecimento de
detenção.
Qual deve ser o papel da polícia numa cidade
civilizada? Em todos os congressos penitenciários, até agora tão úteis como o
nosso último latino-americano, ficou claramente determinado. A polícia é uma
instituição preventiva, agindo com o seu poder de intimidação, e o doutor
Guillaume e o doutor Baker chegaram, em Estocolmo, às conclusões de que uma boa
polícia tem mais força que o código penal e mais influência que a prisão.
A nossa polícia é o contrário. Para que a detenção dê
resultados, faz-se necessário seja conforme ao fim predominante da pena, com o
firme desejo de reformar e erguer a moral do culpado. Que fazemos nós?
Agarramos uma criança de quatorze anos porque deu um cascudo no vizinho, e
calma, indiferente, cinicamente, começamos a levantar a moral deste petiz
dando-lhe como companheiros, durante os dias de uma detenção pouco séria, o Velhinho,
punguista conhecido, o Bexiga Farta, batedor de carteira, e um punhado de
desordeiros da Saúde!
A princípio tomei-lhes os nomes: Manuel Fernandes,
Antônio Oliveira, Francisco Queiroz, Martins, Francisco Visconti, Antônio
Gomes...
Mas era inútil. Para que, se o crime está na própria
organização da polícia? Estão marcados! E eu ia deixar esse canto de jardim sinistro,
quando vi uma pobre criancinha, magra, encostada à parede, o olhar já a se
encher de sombra.
— Como te chamas?
— José Bento.
Tinha quatorze anos, e era acusado de crime de morte.
Fora por acaso, o outro dissera-lhe um palavrão... Quem sabe lá? Talvez fosse.
E, cheio de piedade, perguntei:
— Vamos lá, diga o que o menino quer. Prometo dar.
— Eu? Ah! os outros são maus... são valentes, sim,
senhor, metem raiva à gente... Até têm armas escondidas! A gente tem de se
defender... Eu tinha vontade... de uma faca...
E cobriu o rosto com as mãos trêmulas.
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