5/14/2019

O Viático (Conto), de Coelho Neto


O Viático
(
Ao Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães, que o confessou e ungiu)
Quando, dissimulando a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo e o vi arfando, imóvel, alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras desfizeram-se-me em balbucios, como se dissolvem em espuma as vagas de encontro às penhas.
Estatelei-me, de mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me, então, na Fé o último clarão de esperança e minh'alma elevou-se, em surto, a Deus.
Fugindo daquele transe, procurei a que não chorava: fria, apática diante da catástrofe, imagem da geleira eterna que não deflui, petrificada em friul.
Expus-lhe o que me inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos para a partida e ela, encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente os olhos espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.
Insisti. Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto ante o adejo de um beija-flor.
Pedi a alguém que fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.
O tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso foi tão breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada do padre fiquei surpreso como de milagre.
Sim, era ele com a maleta em que vinham os sacramentos.
Olhamo-nos sem palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa encheu-a toda. As próprias janelas, largamente abertas, não pareciam respirar.
Pé ante pé tornei ao quarto, certo de encontrar o enfermo na inércia em que o deixara. E que vi eu, arrepiado de horror e no auge da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela janela aberta o céu azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que devassam o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco, doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão sereno, que dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando a preguiça da manhã.
Fora uma crise apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.
Que fazer? Despedir o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio valeria por sentença e ainda havia esperança em nossos corações. E ele nem sequer pensava na gravidade do seu estado, tanto que, momentos antes, ao raiar da alva, quando a passarada começava com os gorjeios, dissera, lembrando-se de passados tempos e pensando em futuros dias:
“Esta é a hora melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando. E eu, aqui! Enfim... ainda pode ser... ”
O coração cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se a latejar, a ímpetos; lágrimas ardiam-me nos olhos.
Que fazer? Que dizer?!
Foi ele que me tirou da hesitação angustiosa, perguntando-me, a sorrir, surpreendido com a minha atitude:
— Que tens? Por que me olhas assim?
Que teria ele visto nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão longe, tão longe que chegava à morte?
Animei-me a falar. Não sei que disse, não sei!
De repente vi-o cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante, pálido, de lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso, como se eu o houvesse amaldiçoado: “Papai!”
É que eu rasgara violentamente o véu misterioso mostrando, no fundo da esperança, Deus é que eu lhe anunciara a hora suprema da Religião, hora última da terra, hora que não soa nem declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto da Eternidade.
Houve, então, entre nós, um olhar, e, nesse olhar, como se cruzam no beijo os amores, cruzaram-se desesperos.
Tentei justificar o meu procedimento:
“Que a religião e a medicina que não falha, porque os seus remédios são aviados por Deus, e salvam”.
As lágrimas intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me a mão, atraiu-me a si e, meigo, interrogou-me.
— Você quer?
Solucei, acenando afirmativamente.
— E mamãe?
Respondi com o olhar.
— Pois sim, concordou, suave: então também eu quero.
Todo o meu fôlego afluiu-me à garganta, sufocando-me.
Ele, sentindo a minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera com um gesto de brandura.
Caminhei para a porta. Antes, porém, de sair voltei-me. Ele inclinara a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se. Saí. O sacerdote entrou.
Quanto tempo durou a confissão daquela alma em flor? Foi para o meu coração tão longo que ainda nele persiste e durará enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha saudade; durará como espinho na flor da minha ternura.
Quando o padre saiu, fui-me direito a ele. Chorava e sorria.
Chorava como homem, com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria como sacerdote, por haver achado em anos tão tenros coração tão virtuoso.
Então atrevi-me a tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento grandioso e horrível, hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal, levando àquela consciência, ainda clara, a certeza da morte; bem, preparando para Deus quem, já de partida, ainda nos iludia com a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a meiguice e, já desprendido da terra, de asas abertas para o voo, ainda nos abraçava, animando aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer.
E, ainda hoje, nos silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro, em dúvida que me excrucia:
“Quem sabe se o não entreguei cedo demais a Deus! É possível que se eu lhe não houvesse quebrado as forças da alma, se não houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela Fé, deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco, amado e amando-nos”.
Mas... E se, por descuido nosso, ele partisse sem a unção que salva?!
Precipitei-me, talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho, fosse, como foi, na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante para o esplendor eterno, que é o próprio olhar de Deus.

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