5/04/2019

Autorretrato de poetas (Ensaio)



Autorretrato de poetas
Poetas falam de per si, mas com grande desassossego. Na maior das vezes cuida de tratar bem os sintomas da humanidade, ainda que presente apenas no universo próximo, ao seu redor. Quando Augusto dos Anjos chegou ao Rio de Janeiro trazendo os originais do seu livro de poesias EU debaixo do braço, cheio de esperanças, se surpreendeu com a recepção pífia com que seus pares receberam a publicação, não obstante o calor da crítica de alguns poucos. Mário Pederneiras escreveu uma nota simpática, Osório Duque Estrada preferiu discutir as ideias filosóficas do poeta:
“Um grande talento transviado; promessa de extraordinário poeta, abortada na alma de um filósofo; extravagante volume de versos em que pérolas se misturam com o cascalho dos exotismos estapafúrdios”. Sem negar que se trata de “um espírito de elite e uma inteligência capaz de grandes cometimentos”.
Outros foram menos bondosos e criticaram abertamente o excessivo e egocêntrico poeta, que se gabava com alarde das qualidades próprias. É que Augusto dos Anjos tinha plena consciência das qualidades de sua obra. Para manter a coerência crítica e assegurar ao poeta um lugar no país de Olavo Bilac, Hermes Fontes deu a maior força:
“Augusto dos Anjos é um poeta que não se confunde com os outros. É diferente dos demais pelo credo, pela fortuna e pela grande independência de pensar e dizer. Com os outros, isto é, com três ou quatro dos nossos grandes jovens poetas, ele se identifica, apenas, pela força da cultura, pela segurança, pelo brilho, pela excepcionalidade de seu estro”.
O cientificismo, o amor pelas coisas inauditas, a absorção de temas universais, a liberdade de tratamento dado ao Ser e à Terra, consubstanciados numa só comunidade – tudo isso fez com que Augusto dos Anjos se mantivesse à margem, transformando-o em Poeta Maldito.
Escondido num Soneto, porém, achamos outro retrato de Augusto dos Anjos, mais simpático, alegre até, desprendido das coisas materiais. No mesmo rumo de Bocage, perpassando por seu conterrâneo Leandro Gomes de Barros, Augusto dos Anjos apresenta um humor até então desconhecido e ignorado. Vejamos as similaridades. Bocage foi um dos que poetizaram o autorretrato:
SONETO

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento
E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em que luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Esse é o Bocage! E Leandro Gomes de Barros – que nada devia em humor e talento ao grande vate lusitano – será que era leitor de Bocage? Parece que sim, porque ele publicou na contracapa do folheto “Peleja de Manoel Riachão com o Diabo” um autorretrato muito próximo ao Soneto do poeta português. Os traços de Leandro Gomes de Barros, desenhados pelo próprio, tem o ritmo gracioso e piadista revelados em grande parte de sua poesia. Eis como Leandro se viu:
A cabeça um tanto grande e bem redonda,
O nariz, afilado, um pouco grosso;
As orelhas não são muito pequenas,
Beiço fino e não tem quase pescoço.

Tem a fala um pouco fina, voz sem som,
De cor branca e altura regular,
Pouca barba, bigode fino e louro.
Cambaleia um tanto quanto ao andar.

Olhos grandes, bem azuis, da cor do mar;
Corpo mole, mas não é tipo esquisito,
Têm pessoas que o acham muito feio,
Sua mãe, quando o viu, achou bonito!

A literatura é vasta, portanto deve ter por aí outros milhares de exemplos de poetas que se fizeram conhecer desenhando a própria imagem, o tipo físico, os traços, olhos, o jeitão, rugas e narizes, nas linhas de seus versos, como os pintores fazem através de suas telas. Cavoucando o EU, tive o sentimento de que também Augusto dos Anjos desenhou um autorretrato, ainda que usando um pseudônimo inventado, seguindo os mesmos parâmetros de Bocage e Leandro, mas com um humor muito superior, como que rindo de si mesmo. Eis:
SONETO

O oxigênio eficaz do ar atmosférico,
O calor e o carbono o simples éter são,
Valem três vezes mais que este Américo
Augusto dos Anzóis Souza Falcão...

Engraçado, magríssimo, pilhérico,
Quando recita os versos de Tristão
Fica exaltado como um doente histérico
Sofrendo ataques de alucinação.

Possui claudicações de peru manco,
Assina no Croquis Rapaz de Branco
E lembra alto brandão de espermacete...

Anda escrevendo agora mesmo um poema
E há em seu corpo igual a um corpo de ema
A configuração magra de um 7.

Obs.: Anda circulando por aí uma versão desse retrato de Leandro Gomes de Barros com algumas ‘correções’ ou ‘versões’. A principal delas é esta abaixo, assimilada por Arievaldo Viana, biógrafo de Leandro. A poesia foi mexida principalmente na terceira quadra. A primeira versão é a que o Arievaldo apresenta em vários artigos de sua autoria, a segunda é a que consta na Casa de Rui Barbosa, que guarda grande parte do acervo de cordel do país, graças a Sebastião Nunes Batista, pioneiro em catalogar e incrementar a coleção de literatura de cordel naquela entidade.

Versão de Arievaldo Viana:

Olhos grandes, bem azuis, da cor do mar;
Corpo mole, mas não é tipo esquisito,
Têm pessoas que o acham muito feio,
Sua mãe, quando o viu, achou bonito!

Versão da Casa de Rui Barbosa:

Olhos grandes, bem azuis, têm cor do mar:
Corpo mole, mas não é tipo esquisito,
Tem pessoas que o acham muito feio,
Mas a mamãe, quando o viu, achou bonito!

A versão da Casa de Rui Barbosa é apresentada como “Auto-retrato de Leandro Gomes de Barros na quarta-capa do folheto Peleja de Manoel Riachão com o Diabo”. Ocorre que no citado folheto, digitalizado pela CRB, a quarta-capa está ilustrada com um anúncio da Livraria Pedro Batista, indicando que se trata de reedição, portanto, sem a poesia.
Arievaldo Viana assumiu a versão em que constam as alterações:
a) ‘tem cor do mar’ para ‘da cor do mar’;
b) ‘Tem pessoas’ para ‘Têm pessoas’
c) ‘Mas a mamãe’ para “Sua mãe’.

Por sua vez a versão da CRB, pelo que se deduz, pluralizou ‘tem cor do mar’ acrescentando o circunflexo ‘têm’, deduzindo concordância com ‘olhos’. Neste caso o Arievaldo Viana é que interpretou certo: mas não devia alterar o verso original, que seria ‘Olhos grandes, bem azuis, tem cor do mar’ – o singular ‘tem cor’ significando ‘da cor’. Agora, trocar ‘Mas a mamãe’ por ‘Sua mãe’ é já assumir a coautoria, visto que a expressão ‘mamãe’ é bem nordestina (e bem a cara de Leandro), eis que o sulista resume ao simples ‘mãe’. Ademais, ninguém se preocupou em anotar nos versos a métrica de pé quebrado – alguns decassílabos outros com onze silabas. Essas dúvidas persistirão até que se encontre o fac-símile da contracapa original, que se transformou em verdadeira cabeça de bacalhau: todos sabem que existe, mas ninguém vê.

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Fontes:
De Castro e Silva: Augusto dos Anjos, poeta da morte e da melancolia Augusto dos Anjos: EU e outras poesias http://www.camarabrasileira.com/cordel77.htm
http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/leandro.html

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