5/04/2019

Manuel Bandeira: todas as estrelas (Ensaio)


Manuel Bandeira: todas as estrelas

Deixando de lado tudo que se possa dizer do poeta Manuel Bandeira – e com certeza tudo de bom já foi dito – posso afirmar que a leitura de sua poesia continua tão prazerosa como se estivéssemos contemporâneos de seu tempo. Então, usufruir de uma obra como o que realizou a Livraria José Olympio Editora ao enfeixar num só volume as poesias reunidas do poeta pernambucano é um privilégio de poucos.  
Livro de poesia é assim mesmo: nunca fica velho demais que não mereça uma releitura. A gente compra, lê, guarda e de vez em quando volta a ele para matar a saudade. Nesses reencontros tudo acontece: algum poema que na primeira leitura pareceu desinteressante logo se disfarça de outra maneira e vira magia, outros pequeninos, de circunstância, ganham brilho e crescem, outros mais vibram em sonoridade e ritmo, eis aí tudo a se modificar – é um novo livro que temos nas mãos.      
Com Manuel Bandeira, então, nem se fala! Como a releitura enriquece, mais que nenhuma, a sua poesia! Mas a importância do volume que tenho em mãos não é somente o manancial da poesia que jorra. Começa, desde logo, pela leitura da orelha. Não é qualquer livro nem qualquer autor que possa se orgulhar de ser “orelhado” por nada menos que Otto Maria Carpeaux, escritor austríaco que abrasileirou, tão rápido, como a maioria daqueles que foram atirados até nós pelo desatino da guerra. 
Otto Maria Carpeaux chegou aqui em 1939 e foi mandado para o Paraná, como... agricultor! Claro que foi coisa de momento, porque logo se desviou para São Paulo e tratou de sobreviver ao primeiro momento de dureza vendendo objetos pessoais, um pouco do patrimônio que trouxe da terra natal. Depois de breve correspondência com Álvaro Lins, Carpeaux foi convidado para escrever no Correio da Manhã (jornal publicado no Rio de Janeiro, na pré-história da imprensa, junto com o JB e O Globo – bem antes da família Marinho engolir vorazmente TODA a imprensa da antiga Capital Federal).
Daí em diante o leitor pôde saborear, como se fosse um produto popular, toda a erudição desse notável brasileiro. Sim, no mesmo ano em que Stefan Zweig – em depressão plena – desistia do Brasil dividindo um copo de cicuta com sua mulher Lotte, no mesmo ano que este escriba era parido na Paraíba, o entusiasmado emigrante Otto Maria Carpeaux se tornava brasileiro da gema... 
Todo o conhecimento adquirido por Otto Maria Carpeaux não foi obra do acaso. Ainda estudante ele dominava vários idiomas (inglês, italiano, francês, alemão, espanhol, etc.), mas não o português – o que demonstra que sua chegada aqui não tinha sido planejada. Entretanto, o estudo de línguas facilitou para que se tornasse fluente na nossa língua com pouco mais de um ano de dedicado estudo.
Sua formação acadêmica em várias matérias – que abrangia física, matemática, sociologia, filosofia, música e literatura – serviu de manancial para tudo que aqui produziu, destacando-se os oito volumes consagrados à História da Literatura Ocidental (1947), Uma Nova História da Música (1958) e os volumes de Ensaios Reunidos (2005).
Agora pasmem: nenhum sinal dessa vastidão de conhecimento perpassa pelo texto que dedicou ao poeta Manuel Bandeira. É claro que aqui e ali Otto Maria Carpeaux destaca as qualidades poéticas de Manuel Bandeira, principalmente como autor de “versos felizes”, mas em quantidade e volume tão grandes que, para o ensaísta, isso era tão natural ao poeta quanto à proximidade da morte... 
Não, nesse pequeno texto apertado na orelha de Estrela da Vida Inteira, Otto Maria Carpeaux desvenda o olhar do leitor para a importância do lirismo na poesia de Manuel Bandeira, lirismo esse que deságua como cachoeira no ritmo, na sonoridade, na cadência verbal, transplantando os versos diretamente ao solo musical. Essa musicalidade, pressentida desde logo pelos contemporâneos do poeta, fez de Manuel Bandeira autor principal da canção brasileira, assim entendida como os lieder alemães.     
Para não esticar mais a conversa, leia a seguir o texto de Otto Maria Carpeaux, depois saiba de algumas informações sobre a obra musicada de Manuel Bandeira. Na pescaria para compor este texto, para minha surpresa, topei com um velho disco (Maria Lúcia Godoy canta poemas de Manuel Bandeira) e de contrapeso um texto de Paulo Mendes Campos, feito especialmente para o lançamento do disco. É mole? Pois o dito cujo texto também vai a seguir...

***


POESIA INTEMPORAL
Orelha do livro “Estrela da vida inteira”, por Otto Maria Carpeaux.
“Eis aqui a Obra Poética total de Manuel Bandeira. É a edição definitiva, depois das muitas outras que a precederam e cujo número é sinal do sucesso extraordinário de um poeta cujos versos chegaram a gravar-se na memória da nação brasileira.
“São muitos versos inesquecíveis. Antigamente costumava-se falar em “versos felizes”; e felizes eles são em todos os sentidos: são felizes pela densidade da carga emocional de palavras coordenadas por uma lógica secreta e irrespondível; são felizes porque foram o resultado de sofrimentos graves, de meditação profunda, e chegaram a tornar mais feliz a vida do poeta; e a vida de todos nós. 
“Mas às vezes esses versos “felizes” são muito tristes, como aquele, talvez o mais famoso de todos, sobre “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Outra vez, o verso é pungente, denunciando a vida como “agitação feroz e sem finalidade”. Mas outra vez, respira a melancolia sem desespero de uma tarde triste primaveril: “... passei a vida à toa, à toa”. Só um compositor de lieder, um Schubert, um Hugo Wolf, seria capaz de interpretar bem a música de um verso desses. É mesmo forma musical o rondó dos “cavalinhos correndo”, em que o gerúndio é sabiamente aproveitado para simbolizar e musicar a ligeireza da vida que passa. 
“Ligeireza do verso, mas não do seu sentido. Os melhores versos de Manuel Bandeira parecem-se com nocturnes e nuages de Debussy, mas é inconfundível neles o fundo de tragicidade beethoviana. Essa poesia cumpre a exigência do severo Matthew Arnold de ser uma crítica da condição humana. Esse poeta não tem “mensagem”, felizmente, porque as “mensagens” costumam tornar-se, depressa, obsoletas e inaproveitáveis. Não precisa de eloquência para convencer-nos e consolar-nos. Umas poucas palavras bem escolhidas, colocadas numa ordem que as faz cantar, e tudo está dito, mesmo aquilo que em palavras ninguém poderia dizer. É este o privilégio da poesia lírica. 
“Ao contrário do que pensam os mil e mais mil poetastros do mundo inteiro, a inspiração da poesia lírica é a mais rara de todas e o número de poetas realmente grandes é pequeno em qualquer época e em qualquer literatura. Contudo, um ou outro verso feliz é capaz de ocorrer, até aos fazedores de “chaves de ouro”. Os compositores de valsas e sambas são milionários em melodias, mas só um Beethoven sabe enfrentar um tema simples e analisar-lhe todas as possibilidades e realizá-las conforme as regras rigorosas do desenvolvimento temático e criar uma sonata, um quarteto, uma sinfonia, enfim, uma estrutura. 
“Manuel Bandeira é poeta que sabe estruturar seus temas. Seus temas são simples: recordações da infância, um amor irrealizável, a sombra de uma doença grave, um enterro que passa, uma linda tarde de despedidas, uma velha casa que vai abaixo e na qual se sofreu e se amou muito. Mas eis o milagre realizado: cada um desses temas simples é a célula-máter de um processo de desenvolvimento temático, enriquecendo-se e revelando facetas novas, inesperadas, e enquadrando-se na forma para a qual estava predestinada e enfim está formado o cristal perfeito, o poema. 
“Nosso poeta foi o melhor amigo e o homem mais gentil do mundo. Mas em defesa da poesia, contra a falsa poesia, era capaz de tornar-se agressivo. Seu passado está cheio de polêmicas. Durante muitos anos foi considerado um dos protagonistas do modernismo brasileiro. Na história da literatura nacional já lhe pertence um capítulo substancioso. Sem Manuel Bandeira não haveria no Brasil poesia moderna, ou então, ela não seria o que ela é. Mas tudo isso são águas passadas. Manuel Bandeira, embora sempre aberto a tudo que é novo, não se filiou a nenhuma “escola” nem moda nem estilo. Sua poesia é só dele e adquiriu há muito tempo, a suprema qualidade: é intemporal. 
“Quem fez tanto, não passou a vida à toa, à toa. Depois de estruturar sua poesia chegou a estruturar sua própria vida. Sua existência decerto não foi um sorridente rondó de cavalinhos, mas tampouco uma agitação, feroz e inútil. Foi a vida inteira que poderia ter sido – e que aqui está, realizada: a Obra Poética de Manuel Bandeira”. 
“Diletante dos lugares-comuns, costumo colher um exemplar e remirá-lo até desbastar-lhe o cansaço: então posso vê-lo na renovada surpresa de expressão original. "Trama do destino", por exemplo, forjada por uma verdadeira apreensão da existência, é um clichê fascinante, lâmina histológica a definir todo o tecido humano, peça microscópica da experiência histórica e dos enredos individuais. "A Trama do Destino" é o título cinematográfico da biografia de tudo e de todos. 
“Ainda mal tramados, como a relva recém-plantada, um rapaz e um adolescente percorrem as ruas de Belo Horizonte - no tempo em que Hitler já se escondera no bunker da chancelaria. Encontram-se, por uma fatalidade de programas escassos, nas salas de concerto, nas exposições de pinturas, nos auditórios literários. Vivem, separados, o primeiro movimento, esse allegro das almas verdes, a buscar: na expressão artística, um espelho; no convívio dos amigos, a solidão comum dos poucos que reconhecem à primeira vista a perplexidade e a delicadeza de viver. 
“Ela, abrindo como luz fluorescente olhos líquidos de espanhola, atende pelo nome, um pouco desamparado, de Maria Lúcia. O moço tímido, mas despenteado, é um Paulo a mais circulando neste mundo. Ela demite a doçura quando canta nas reuniões, e sua beleza juvenil se mascara de uma contensão sem idade. Desde menina, Maria Lúcia desaparece no canto, suprime a personalidade quando canta, transforma-se no canto, como a ave que descola do ramo e vira o voo. 
“Nossa igrejinha, sofrendo de antipatia pelas cantoras que se exprimem, que cultivam os miosótis da personalidade, ainda buscava uma voz para as canções: embora nada existisse que lembrasse um contrato, decidimos, Maria Lúcia nos representaria através do canto. 
“Às vezes, Maria Lúcia e Paulo encontravam-se em um salão de baile. Timidamente. Desconfiados de que a festa é frívola e vai acabar. E de que a trama do destino prevalece sobre o momento. 
“É quase impossível que, entre duas músicas dançadas, a um canto do salão, os dois amigos não tenham falado, em voz baixa, sobre o poeta Manuel Bandeira. O lirismo bandeiriano era mais pressuroso, mais triste, mais verdadeiro e mais iluminado que o noturno festivo do Minas Tênis. Manuel ficava conosco. Só ele, o poeta, dava sentido à incoerência de estarmos ali no baile sem acreditar no baile, desajustados entre os pares, a não ser a própria mocidade. 
“Jamais os dois deploráveis dançarinos poderiam imaginar - e esse acanhamento da imaginação é outro lugar-comum do destino - que a trama aqui reuniria o poema, a voz e o despenteado. 
“De minha participação subalterna, Ricardo Cravo Albin é o culpado. Mas a culpa se redime pelo resto da iniciativa. Juntar Maria Lúcia Godoy, Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Mignone, Jaime Ovalle, Edino Krieger, Lorenzo Fernández, Guarnieri e Siqueira em um disco, que se pode guardar para sempre, é um ato simples e deslumbrante como um passe de mágica. Se não o fizeram antes é porque os mágicos são raros na civilização argentária. 
“Este é o disco mais completamente brasileiro que conheço: porque os temas, a linguagem, o ritmo e a emoção do poeta doem de tanta verdade brasileira; porque os compositores aqui reunidos são ainda os primeiros que romperam com a dependência estrangeira e exprimiram os timbres, as cadências, as sugestões instrumentais, as secretas combinações melódicas que nos falam e falam por nós; e porque a extraordinária Maria Lúcia Godoy, pela qualidade da voz, pela intuição interpretativa, é uma artista irreprimivelmente brasileira, graças a Deus. 
“Por isso mesmo, por sua brasilidade inconsútil, pode-se dizer, sem antinomia, pelo contrário, por um determinismo de criação artística: este disco pertence à música do mundo.
Paulo Mendes Campos
                                                                                                

NOTA QUE SEGUE ESTE TEXTO
“Os agradecimentos do MIS a Murilo Miranda, que, quando Secretário Geral do Conselho Nacional de Cultura do MEC, teve a iniciativa da gravação deste disco para homenagear os 80 anos do poeta Manuel Bandeira. Também se estendem esses agradecimentos a Nilo Sérgio, da Musidisc, que cedeu o tape ao MIS. O layout é de Joselito. A gravação foi feita por Ary Perdigão nos estúdios da Musidisc em setembro de 1966. A coordenação geral é de Ricardo Cravo Albin, Diretor do Museu.”
Os poemas musicados, por número da faixa:

01 - Dança do martelo (Bandeira-Villa-Lobos)
02 - Modinha (Bandeira-Villa-Lobos)
03 - O anjo da guarda (Bandeira-Villa-Lobos)
04 - Azulão (Bandeira-Jayme Ovalle)
05 - Modinha (Bandeira-Jayme Ovalle)
06 - Dona Janaína (Bandeira-Francisco Mignone)
07 - Pousa a mão na minha testa (Bandeira- Francisco Mignone)
08 - O menino dorme (Bandeira- Francisco Mignone)
09 - Impossível carinho (Bandeira-Camargo Guarnieri)
10 - Canção do mar (Bandeira-Lorenzo Fernandez)
11 - Madrigal (Bandeira-José Siqueira)
12 - Desafio (Bandeira-Edino Krieger)


Outros poemas de Bandeira musicados esparsamente:

4 poemas (Bandeira-Almeida Prado)
Balada dos reis (Bandeira-Dorival Caymmi)
Baladinha arcaica (Bandeira-Toninho Horta)
Belo Belo (Bandeira-Wagner Tiso)
Berimbau (Bandeira-Joyce)
Debussy (Bandeira-Villa-Lobos)
Desencanto (Bandeira-Francis Hime)
Irene no céu (Bandeira-Camargo Guarnieri)
Na Rua do Sabão (Bandeira-José Siqueira)
O impossível carinho (Bandeira-Ivan Lins)
Portugal meu avozinho (Bandeira-Moraes Moreira)
Tema e voltas (Bandeira-Radamés Gnattali)
Testamento (Bandeira-Milton Nascimento)
Trem de ferro (Bandeira-Tom Jobim)
Trem de ferro (Bandeira-Vieira Brandão)
Versos escritos n’água (Bandeira-Dori Caymmi)
Vou-me embora pra Pasárgada (Bandeira-Gilberto Gil)
Vou-me embora pra Pasárgada (Bandeira-Paulo Diniz)

APÊNDICE:

Disco do Museu da Imagem e do Som - MIS
Maria Lúcia Godoy Canta poemas de Manuel Bandeira
Ao piano: Murilo Santos
Museu da Imagem e do Som – MIS
Fundação Vieira Fazenda
Rio de Janeiro 1966
Texto de Paulo Mendes Campos

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