5/09/2019

Miguelito (Conto), de Alcides Maya



Miguelito

Às quatro horas principiaram as saídas do zaino e do Pampeiro. Este, um mouro “pé de estribo e mão do lança”, era montado por um compositor da capital, chamado expressamente para corrê-lo, e vaidoso nos seus trajos de jockey, jaqueta curta, calções brancos, boné azul. Estranho ao meio, afeito à linha dos prados, certo da sua superioridade como profissional, o Melado, alcunha com que o caricaturaram os campeiros, observava correto, a “guascaria”, convencido de bastar-lhe um hop! enérgico, ao partir, para vencer aquele pequira, nervoso, vivo, mas sem a elegância fria, a elasticidade e a rijeza de músculo dos cavalos de raça. Excepcional, a carreira mantinha em dúvida, silenciosa, a própria gauchada que se interessava pelo parelheiro do André Madruga. Tratava-se de um produto de coudelaria, elogiado nos jornais, segundo dissera solenemente o Aires, e as apostas corriam frouxas, garantindo quase todos a vitória do mouro.

A Miguelito, impacientavam-no deveras tais vaticínios: tinha confiança no crioulo, não se lhe dava de arriscar nele qualquer quantia, e, como houvesse recebido do negociante, à véspera, o dinheiro do seu gado, e um caixeiro-viajante dissesse, perto, que, na situação do Madruga, “pagaria depósito”, pois “aquilo nem ia ser uma corrida”.

Não sabem o que é ca’alo! bradou, mirando atravessado o “pracista”. Tenho cem mil réis no parelheiro zaino! Pra quem quer!

Sobre boa, era intencional a parada, uma resposta, um desafio, e ao conspecto do gaúcho, bem vestido à camponesa, com um belo pingo recamado de lindos aperos, o moço aceitou o jogo.

Pago, disse com deferência, tentando desfazer, amável, a má impressão possível das palavras precedentes.

As saídas, entretanto, continuavam, intermináveis.

O corredor do Madruga, seu afilhado e protegido, piá, dezoito anos, farejara o competidor: toda aquela fleugma presunçosa não resistiria à primeira decepção. Deliberou irritá-lo, obrigando-o a arrancar muitas vezes, sempre mal, e começou a cortar partida, com tanto êxito que os juízes, apesar da intenção velhaca, percebida logo, de relance nada podiam dizer. A expectativa tornou-se angustiosa; havia, em derredor, sobrolhos franzidos, rostos carregados, peitos opressos; e, atendendo a que os parelheiros se não acertavam, alguém propôs “soltá-los de tronco”. Aceito o alvitre, um dos juízes, tomando de ambos os cavalos pela rédea, dirigiu-se ao laço, largou-os.

Foi e os dois saíram acolherados, a bater orelhas, apenas pisando a liça. Desencadeou-se, então, o que o Tico Azambuja denominara com propriedade “a ventania da cancha”. Houve uma como vertigem; abalaram-se todos; a multidão vibrou de ponta a ponta, sufocada, entusiástica, fremente. Gaúchos galopavam ‘a toda”, seguindo a raia; sujeitos ficavam roucos de gritar; outros exaustos de correr; alagados outros em suor; e muitos como abombados, sorrindo alvarmente...

Juntos à primeira, à segunda, à terceira quadra, ao fim da quarta, o zaino adiantou-se do Pampeiro, “de fiador”, entrou com avanço maior na quinta e atingiu num grande salto, o laço de chegada, vencendo de pescoço. O veredictum foi unânime, não podia haver contestação, e o triunfo estrondeou.

Miguelito delirava de júbilo e foi ele quem se apoderou do parelheiro crioulo para tratá-lo. O “cavalinho”, ótimo em tiro curto, não resistiria mais trinta passos a par do derrotado, e arfava a cair, espumando, suarento...

Do arroio, onde lhe deu um banho, guiou Miguelito, entre victores, para a taberna; divulgada, popularizara-o a sua aposta; e o Madruga, satisfeito, oferecera-lhe um churrasco e um copo de cerveja.

Quando voltou ao campo, trasmontava o sol. Nuvens amantelavam-se formidáveis no ocaso, escorrendo sangue, vomitando chamas, numa cromatização grandiosa, superpostas, em escarpas, turriformes; não soprava mais aragem; a noite ameaçava ser quente; e, do pessoal, uns ausentavam-se, estrada além, poncho dobrado à garupa, outros debandavam pelo comércio, pelas barracas, pelo salsal. Sobre o âmbito do acampamento, pássaros quebravam, retorciam o voo, demorados, como se fossem curiosos da agitação humana; às barrancas do arroio, surgiam as árvores em dois tons, doiradas as grimpas e de corpo cosido numa extensa, alta muralha escura; relinchos prolongavam-se, ecoantes, longe; e na cancha, ora quase deserta, alguns jogadores tiravam o tempo de um cavalo, para as carreiras do dia seguinte.

Miguelito, que bebera em demasia, e sentia às fontes um calor latejante, maneara o tordilho no pátio da venda para empreender uma caminhada a pé através o campo. Perdera de vista o Aires, desde a corrida do zaino; não avistava nenhum conhecido; andou a esmo. Transviando passos, num mal-estar crescente, foi ter a uma espécie de praça, formada por carretas, a curto espaço da baiuca.

Heterogênea e brutal era ali a reunião da gauchada; havia gente de todas as profissões, de todas as cores, de várias raças; e a sua reunião afastava, repelia, prudentemente aos transeuntes.

Miguelito, porém, estacou, satisfeito: entre os presentes avistara Jango Sousa, vestido como outrora, forte e frio, afastado, indiferente, como de pedra, com a mesma linha impassível de sempre...

Fenômeno curioso: nada o ligava àquele vagabundo dos campos, de reputação suspeita, e, no entanto, ao pensar no pago, era a dele uma das figuras mais simpaticamente evocadas.

Por quê?

Talvez que a destemida figura hirsuta, ruiva e grande, esgrouviada, do campeiro se casasse, ressurreição dos velhos tempos, com as que recebera nos seus antigos sonhos de guerra caudilhesca; talvez algum dia pensasse em se lhe aligar à vida solta; talvez apenas por uma camaradagem agradável de galpão...

De um modo ou de outro, tendia irresistivelmente para o gaúcho; sabia ser estimado por ele; e, vendo-se agora, ambos, de impulso próprio, se procuraram, um com toda a sua exuberância própria, outro temperando com uma fugitiva expressão de alegria a sua característica indiferença pelas pessoas e pelas coisas.

Seu Jango!

Miguelito!

Abraçaram-se. O Jango explicou que estava ali “por estar”: viera para assistir à carreira do dia; tinha que fazer, fora; e, se não fosse o convite de um dos carreteiros para churrasquearem juntos, já estaria na estrada... Miguelito devia ficar: seriam companheiros no mais...

Miguelito ficou.

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