Miguelito
Às quatro horas principiaram as
saídas do zaino e do Pampeiro. Este, um mouro “pé de estribo e mão do lança”,
era montado por um compositor da capital, chamado expressamente para corrê-lo,
e vaidoso nos seus trajos de jockey, jaqueta curta, calções brancos, boné azul.
Estranho ao meio, afeito à linha dos prados, certo da sua superioridade como
profissional, o Melado, alcunha com que o caricaturaram os campeiros, observava
correto, a “guascaria”, convencido de bastar-lhe um hop! enérgico, ao partir,
para vencer aquele pequira, nervoso, vivo, mas sem a elegância fria, a
elasticidade e a rijeza de músculo dos cavalos de raça. Excepcional, a carreira
mantinha em dúvida, silenciosa, a própria gauchada que se interessava pelo
parelheiro do André Madruga. Tratava-se de um produto de coudelaria, elogiado
nos jornais, segundo dissera solenemente o Aires, e as apostas corriam frouxas,
garantindo quase todos a vitória do mouro.
A Miguelito, impacientavam-no
deveras tais vaticínios: tinha confiança no crioulo, não se lhe dava de
arriscar nele qualquer quantia, e, como houvesse recebido do negociante, à
véspera, o dinheiro do seu gado, e um caixeiro-viajante dissesse, perto, que,
na situação do Madruga, “pagaria depósito”, pois “aquilo nem ia ser uma
corrida”.
Não sabem o que é ca’alo! bradou,
mirando atravessado o “pracista”. Tenho cem mil réis no parelheiro zaino! Pra
quem quer!
Sobre boa, era intencional a
parada, uma resposta, um desafio, e ao conspecto do gaúcho, bem vestido à
camponesa, com um belo pingo recamado de lindos aperos, o moço aceitou o jogo.
Pago, disse com deferência,
tentando desfazer, amável, a má impressão possível das palavras precedentes.
As saídas, entretanto,
continuavam, intermináveis.
O corredor do Madruga, seu
afilhado e protegido, piá, dezoito anos, farejara o competidor: toda aquela
fleugma presunçosa não resistiria à primeira decepção. Deliberou irritá-lo,
obrigando-o a arrancar muitas vezes, sempre mal, e começou a cortar partida,
com tanto êxito que os juízes, apesar da intenção velhaca, percebida logo, de
relance nada podiam dizer. A expectativa tornou-se angustiosa; havia, em
derredor, sobrolhos franzidos, rostos carregados, peitos opressos; e, atendendo
a que os parelheiros se não acertavam, alguém propôs “soltá-los de tronco”.
Aceito o alvitre, um dos juízes, tomando de ambos os cavalos pela rédea,
dirigiu-se ao laço, largou-os.
Foi e os dois saíram acolherados,
a bater orelhas, apenas pisando a liça. Desencadeou-se, então, o que o Tico
Azambuja denominara com propriedade “a ventania da cancha”. Houve uma como
vertigem; abalaram-se todos; a multidão vibrou de ponta a ponta, sufocada,
entusiástica, fremente. Gaúchos galopavam ‘a toda”, seguindo a raia; sujeitos
ficavam roucos de gritar; outros exaustos de correr; alagados outros em suor; e
muitos como abombados, sorrindo alvarmente...
Juntos à primeira, à segunda, à
terceira quadra, ao fim da quarta, o zaino adiantou-se do Pampeiro, “de
fiador”, entrou com avanço maior na quinta e atingiu num grande salto, o laço
de chegada, vencendo de pescoço. O veredictum foi unânime, não podia haver
contestação, e o triunfo estrondeou.
Miguelito delirava de júbilo e
foi ele quem se apoderou do parelheiro crioulo para tratá-lo. O “cavalinho”,
ótimo em tiro curto, não resistiria mais trinta passos a par do derrotado, e
arfava a cair, espumando, suarento...
Do arroio, onde lhe deu um banho,
guiou Miguelito, entre victores, para a taberna; divulgada, popularizara-o a
sua aposta; e o Madruga, satisfeito, oferecera-lhe um churrasco e um copo de
cerveja.
Quando voltou ao campo,
trasmontava o sol. Nuvens amantelavam-se formidáveis no ocaso, escorrendo
sangue, vomitando chamas, numa cromatização grandiosa, superpostas, em
escarpas, turriformes; não soprava mais aragem; a noite ameaçava ser quente; e,
do pessoal, uns ausentavam-se, estrada além, poncho dobrado à garupa, outros
debandavam pelo comércio, pelas barracas, pelo salsal. Sobre o âmbito do
acampamento, pássaros quebravam, retorciam o voo, demorados, como se fossem
curiosos da agitação humana; às barrancas do arroio, surgiam as árvores em dois
tons, doiradas as grimpas e de corpo cosido numa extensa, alta muralha escura;
relinchos prolongavam-se, ecoantes, longe; e na cancha, ora quase deserta,
alguns jogadores tiravam o tempo de um cavalo, para as carreiras do dia
seguinte.
Miguelito, que bebera em demasia,
e sentia às fontes um calor latejante, maneara o tordilho no pátio da venda
para empreender uma caminhada a pé através o campo. Perdera de vista o Aires,
desde a corrida do zaino; não avistava nenhum conhecido; andou a esmo.
Transviando passos, num mal-estar crescente, foi ter a uma espécie de praça,
formada por carretas, a curto espaço da baiuca.
Heterogênea e brutal era ali a
reunião da gauchada; havia gente de todas as profissões, de todas as cores, de
várias raças; e a sua reunião afastava, repelia, prudentemente aos transeuntes.
Miguelito, porém, estacou,
satisfeito: entre os presentes avistara Jango Sousa, vestido como outrora,
forte e frio, afastado, indiferente, como de pedra, com a mesma linha
impassível de sempre...
Fenômeno curioso: nada o ligava
àquele vagabundo dos campos, de reputação suspeita, e, no entanto, ao pensar no
pago, era a dele uma das figuras mais simpaticamente evocadas.
Por quê?
Talvez que a destemida figura
hirsuta, ruiva e grande, esgrouviada, do campeiro se casasse, ressurreição dos
velhos tempos, com as que recebera nos seus antigos sonhos de guerra
caudilhesca; talvez algum dia pensasse em se lhe aligar à vida solta; talvez
apenas por uma camaradagem agradável de galpão...
De um modo ou de outro, tendia
irresistivelmente para o gaúcho; sabia ser estimado por ele; e, vendo-se agora,
ambos, de impulso próprio, se procuraram, um com toda a sua exuberância
própria, outro temperando com uma fugitiva expressão de alegria a sua característica
indiferença pelas pessoas e pelas coisas.
Seu Jango!
Miguelito!
Abraçaram-se. O Jango explicou
que estava ali “por estar”: viera para assistir à carreira do dia; tinha que
fazer, fora; e, se não fosse o convite de um dos carreteiros para churrasquearem
juntos, já estaria na estrada... Miguelito devia ficar: seriam companheiros no
mais...
Miguelito ficou.
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