
Saímos
para o campeio com a fresca da madrugada.
Tínhamos
de ir longe e de pousar no campo. Eu tomava conta da eguada, ele era vaqueiro.
Vizinhos de retiro na fazenda de meu amo, companheiros de muitos anos, não
largávamos um do outro. Sempre que havia uma folgazinha, ou ele vinha para o
meu rancho, ou eu ia para o rancho dele.
Às
vezes, quando meu amo queria perguntar por nós aos outros vaqueiros e
camaradas, dizia:
– Onde
estão a corda e a caçamba?
– Vancê
bem pode imaginar, patrão, que tábua eu não carrego, que dor me não dói bem no
fundo do coração, desde aquele triste dia.
Como eu
lhe ia dizendo, nós saímos com a fresca. Por sinal que, naquele dia, compadre
Quinca estava alegre, animado como poucas vezes. Ainda me lembra que o cavalo
dele, um castanho estrelo calçado dos quatro pés, a modo que não queria sair do
terreiro. Quando nós fomos passando perto do cocho da porta, ou ele viu alguma
coisa lá dentro ou que, o diacho do cavalinho virou nos pés.
O
defunto Joaquim – coitado! Deus lhe dê o céu! juntou o bicho nas esporas,
jogou-o para a frente e, num galão, quase ralou a perna no rebuço do telhado de
mei’água dos bezerros.
Saímos.
Quando
fomos confrontando com a lagoa da Caiçara ele ganhou o trilho para umas
barrocas, lá embaixo, onde diziam que duas novilhas tinham dado cria e que um
dos bezerros estava com bicheira no umbigo.
Eu
torci para o logradouro das éguas, cá para a banda do cerrado de cima.
– Está
bom. Então, até, compadre!
– Se
Deus quiser, meu compadre!
Não sei
o que falou por dentro dele, porque, naquele mesmo suflagrante, ele virou para
mim e disse:
– Qual,
compadre! Vamos juntos. Assim como assim, a gente não pode chegar à casa hoje.
Pois então, a gente viageia junto, e da Água Limpa eu torço lá para Fundão,
para pegar as novilhas; vancê apanha lá adiante o caminho do logradouro.
Eu já
ia indo um pedaço, quando dei de rédeas para trás e ajuntei-me outra vez com o
compadre. Parece que ele estava adivinhando!
E fomos
indo, conversa tira conversa, caso puxa caso.
Eta,
dia grande de meu Deus!
Ainda
na beira de um corguinho, lá adiante, eu tirei dos alforjes um embornal com
farinha, fiz um foguinho e assamos um naco de carne-seca, bem gorda e bem
gostosa, louvado seja Deus! Bebemos um gole d’água e tocamos.
Aí, já
na virada do dia, o compadre me disse:
–
Compadre, vancê vai andando, que eu vou descer àquele buraco. Pode ter alguma
rês ali. A modo que eu vi relampear o lombo daquela novilha chumbadinha, que
anda sumida faz muito tempo.
Ele foi
descendo para o buraco e eu segui meu caminho pelos altos. Com pouca dúvida,
ouvi um grito grande e doído:
–
Aiiii!
Acudi
logo:
– Que é
lá, compadre! – e apertei nas esporas o meu queimado.
Não lê
conto nada, patrãozinho! Quando cheguei lá, o castanho galopava com os arreios
e meu compadre estava estendido numa moita de capim, com a cabeça meio para
baixo e a mão apertada no peito.
– Que é
isto, meu compadre? Não há de ser nada, com o favor de Deus!
Apalpei
o homem, levantei-lhe a cabeça, arrastei-o para um capim, encostei-o ali,
chamei por ele, esfreguei-lhe o corpo, corri lá embaixo, num olho-d’água, enchi
o chapéu, quis dar-lhe de beber, sacudi-o, virei, mexi: nada!
Estava
tudo acabado! O compadre morrera de repente; só Deus foi testemunha.
E
agora, como é, Benedito Pires? Peguei a imaginar como era, como não era: eu
sozinho e Deus, ou melhor, abaixo de Deus, o pobre do Benedito Pires; afora eu,
o defunto e os dois bichos, o meu cavalo e o dele. Imaginei, imaginei… Dali à casa
era um pedaço de chão, umas cinco léguas boas; ao arraial, também cinco léguas.
Tanto fazia ir à casa, como ao arraial. Mais perto, nenhum morador, nem sinal
de gente!
Largar
meu compadre, eu não podia: amigo é amigo! Demais, estava ficando tarde. Até eu
ir buscar gente e voltar, o corpo ficava entregue aos bichos do mato, onça,
ariranha, tatu-peba, tatu-canastra… Nem é bom falar! Levar o corpo para a casa
e de lá para o arraial, era andar dez léguas, não contando o tempo de ajuntar
gente em casa para carregar a rede. Assim, assentei que o melhor era fazer o
que eu fiz. Distância por distância, decidi levar o compadre direito para o
arraial onde há igreja e cemitério.
Mas, ir
como? Aí é que estava a coisa. Pobre do compadre!
Banzei
um pedacinho e tirei o laço da garupa. Nós, campeiros, não largamos o nosso
laço. Antes de ficar duro o defunto, passei o laço embaixo dos braços dele –
coitado! – joguei a ponta por cima do galho de um jatobá e suspendi o corpo no
ar. Então, montei a cavalo e fiquei bem debaixo dos pés do defunto. Fui
descendo o corpo devagarinho, abrindo-lhe as pernas e escarranchando-o na
garupa.
Quando
vi que estava bem engarupado, passei-lhe os braços por baixo dos meus e
amarrei-lhe as mãos diante do meu peito. Assim ficou, grudado comigo. O cavalo
dele atufou-se no cerrado.
– Lá se
avenha! – pensei. – Tomara eu tempo para cuidar do pobre do dono!
Caminho
para o arraial era um modo de falar. Estrada mesmo não havia: mal-mal uns
trilhos de gado, uns cortando os outros, trançando-se pelos campos e sumindo-se
nos cerradões.
Tomei
as alturas e corri as esporas no meu queimado, que, louvado Deus, era bicho de
fiança; nunca me deixou a pé e andou sempre bem arreadinho.
O sol
já estava some-não-some atrás dos morros; a barra do céu, cor de açafrão; as
jaós cantavam de lá, as perdizes respondiam de cá, tão triste!
Quando
eu ganhei o espinhaço da serra, lá em cima, as nossas sombras, muito compridas,
estendiam as cabeças até ao fundo do boqueirão.
Era
tempo de escuro. O que ainda me valeu, abaixo de Deus, foi que estava chegando
o meio do ano, e nessa ocasião, a estrela do pastor nasce de tarde e alumia
pela noite adentro.
Enquanto
foi dia, ainda que bem; mas, quando a noite fechou deveras e eu não tinha no
meio daquele campo outra claridade senão a da estrela, só Noss’enhor sabe por
que não acompanhei o compadre para o outro mundo, rodando por alguma
perambeira, ou caindo com o seu corpo no fundo de algum grotão.
Nos
cerradões, ou nos matos, como no da beira do ribeirão, eu não enxergava, às
vezes, nem as orelhas do meu queimado, que descia os topes gemendo. O compadre,
aí rente. O que vale é que “macho que geme, a carga não teme”, lá diz o ditado.
Toquei
para diante: sobe morro, desce morro, vara chapada, fura mato, corta cerradão,
salta córrego – eu fui andando sempre. O defunto vinha com o chapéu de couro
preso no pescoço pela barbela e caído para a carcunda. Quando o queimado
trotava um pouco mais depressa, o chapéu fazia pum, pum, pum. O compadre a modo
que estava esfriando demais.
Não sei
se era porque fosse mesmo tempo de frio, eu peguei a sentir nas costas uma
coisa que me gelava os ossos e chegava a me esfriar o coração. Jesus! que
friúra aquela!
A noite
ia fechando, fechando. Eu já seguia não sei como, pois tinha de andar só pelo
rumo. O queimado, às vezes, refugava aqui, fugia dacolá, cheirava as moitas e
bufava. Pelo barulho d’água, eu vi que nós íamos chegando à beira do ribeirão.
Tinha aí de atravessar uma mataria braba, por um trilho de gado.
Insensivelmente, eu fugia de um galho, negava o corpo a outro, virando na sela
campeira. A cabeça do compadre, que, no princípio, batia de lá para cá e, às
vezes, escangotava, endureceu, e o queixo dele, com a marcha do animal, me
martelava a apá.
Fui
tocando. Dentro da mataria, passava um ou outro vaga-lume, e havia uma voz
triste, grossa, vagarosa, de algum pássaro da noite que eu não conheço e que
cantava num tom só, muito compassado, zoando, zoando…
Em
certa hora parecia que meu cavalo marchava num terreno oco: ao baque das
passadas respondia lá no fundo outro baque e o som rolava como um trovão longe.
A ramaria estava cerrada por cima de minha cabeça, que nem a coberta do meu
rancho. O trilho a modo que ia ficando esconso, porque o queimado não sabia
onde pisar; chegou uma horinha em que ele pegou a patinhar para cima, para
baixo, de uma banda e de outra, sem adiantar um passo.
O bicho
parecia que estava ganhando força para fazer alguma.
Não
levou muito tempo, ele mergulhou aqui para sair lá adiante, descendo ao fundo
de um buraco e galgando um tope aos arrancos, escorrega aqui, firma acolá.
Nesse
vaivém, nesse balanço dos diabos, o corpo do compadre pendia pra lá, pra cá.
Uma vez ou outra, ele ia arcando, arcando; a cara dele chegava mais perto da
minha e – Deus me perdoe! – pensei até que ele queria me olhar no rosto.
Eu ia
tocando toda-vida. Mas, aquele frio, ih! aquele frio foi crescendo, foi me
descendo para os pés, subindo para os ombros, estendendo-se para os braços e
encarangando-me os dedos. Eu já quase não senti as rédeas, nem os estribos.
Aí, por
Deus! eu não enxergava nem as pontas das orelhas do queimado; a escuridão
fechou de todo e o cavalo não pôde romper. Corri-lhe as esporas; o bicho era de
espírito, eu bem sabia; mas bufava, bufava, cheirando alguma coisa na frente e
refugava… Tanto apertei o bicho nas esporas, que, de repente, ele suspendeu as
mãos no ar… O corpo do compadre me puxou para trás, mas eu não perdi o tino.
Tinha confiança no cavalo e debrucei-me para a frente… Senti que o casco do
queimado batia numa torada de pau atravessada por cima do trilho.
E
agora, Benedito? Entreguei a alma a Deus e bambeei as rédeas. O cavalo parou,
tremendo… Mas, o focinho dele andava de um lado para o outro, cheirando o chão
e soprando com força… Com pouca dúvida, ele foi se encostando devagarinho, bem
rente do mato; minhas pernas roçavam nos troncos e nas folhas do arvoredo
miúdo. Senti um arranco e, com a ajuda de Deus, caí do outro lado, firme nos
arreios: o queimado achou jeito de saltar a barreira nalgum lugar favorável.
Toquei
para diante. Ah! patrão! não gosto de falar no que foi a passagem do ribeirão
aquela noite! Não gosto de lembrar a descida do barranco, a correnteza, as
pedras roliças do fundo d’água, aquele vau que a gente só passa de dia e com
muito jeito, sabendo muito bem os lugares. Basta dizer que a água me chegou
quase às borrainas da sela, e do outro lado, cavalo, cavaleiro e defunto – tudo
pingava!
Eu já
não sentia mais o meu corpo: o meu, o do defunto e o do cavalo misturaram-se
num mesmo frio bem frio; eu não sabia mais qual era a minha perna, qual a dele…
Eram três corpos num só corpo, três cabeças numa cabeça, porque só a minha
pensava… Mas, quem sabe também se o defunto não estava pensando? Quem sabe se
não era eu o defunto e se não era ele que me vinha carregando na frente dos
arreios?
Peguei
a imaginar nisso, meu patrão, porque – medo não era, tomo a Deus por
testemunha! – eu não sentia mais nada, nem sela, nem rédea, nem estribos.
Parecia que eu era o ar, mas um ar muito frio, que andava sutil, sem tocar no
chão, ouvindo – porque ouvir eu ouvia – de longe, do alto, as passadas do
cavalo, e vendo – eu ainda enxergava também – as sombras do arvoredo no cerrado
e, por cima de mim, a boiada das estrelas no pastoreio lá do céu!
Só este
medo eu tive, meu patrão – de não poder falar.
Quis
chamar por meu nome, para ver se eu era eu mesmo; quis lembrar alguma coisa
desta vida, mas não tive coragem de experimentar…
Aí já
não posso dizer que marchei para diante: fui levado nessa dúvida, pensando que
bem podia ser eu alguma alma perdida naquela noite, zanzando pelos campos e
cerrados da terra onde assisti de menino…
E quem
sabe também se a noite era só noite para meus olhos, olhos vidrados de defunto?
Bem podia ser que fosse dia claro…
Haverá
dia e noite para as almas, ou será o dia das almas essa noite em que vou
andando?
Essa
dúvida, patrão, foi crescendo… E uma hora chegou em que eu não acreditava em
mim mesmo, nem punha mais fé no que eu tinha visto antes… Peguei a pensar que
era minha alma quem ia acompanhando pela noite fora aqueles três vultos…
Minha
alma era um vento, um vento frio, avoando como um curiango arriba das nossas
cabeças.
Daí,
patrão, enfim, entendi que aquilo tudo por ali em roda era algum logradouro da
gente que já morreu, alguma repartição de Noss’enhor, por onde a gente passa
depois da morte. Mas, aquele escuro e aquele frio! Sim, era muito estúrdio
aquilo. Ou quem sabe se aquilo era um pouso no caminho do outro mundo? Numa
comparação, podia bem ser o estradão assombreado por onde a alma, depois de
separada do corpo, caminha para onde Deus é servido.
Ah!
patrão! o que minh’alma imaginou aquele tempo todo eu não lhe posso contar,
não! Sei que fomos embora, aqueles três vultos, um carregando dois e todos três
irmanados da mesma escuridão.
Tocamos.
De
repente, peguei a ouvir galo cantar. Uai! Era bem o canto do galo; com pouca
dúvida, um cachorro latiu lá adiante. Gente, que é isso? Que trapalhada era
essa? Era o compadre que estava ouvindo, ou era eu? Pois, então, Benedito virou
de novo Benedito?
Ou é
que as coisas por lá são tal e qual as nossas de cá, com pouca diferença? Galo
e cachorro eu ouvi. Estive assuntando mais e ouvi o mugido de uma vaca e o
berro de um bezerro… Com um tiquinho de tempo mais, eu vi, e vi bem, uma casa e
outra e outra ainda! Gente, isso é o arraial: olha a igreja ali!
Não
havia dúvida mais: estávamos no arraial e o queimado batia o casco numa
calçadinha da rua.
Era eu
mesmo, era o meu queimado e o compadre aí rente, na garupa!
Toquei
para a casa do sacristão e bati. Custou muito a responder, mas uma janela abriu
e uma cabeça apareceu a modo muito assustada.
– Abre
a igreja, que tem defunto aqui!
– Cruz,
cruz, cruz, Ave Maria! – gritou o sacristão assombrado, e bateu a janela,
correndo para dentro da casa.
Eu não
insisti mais. Toquei para a porta da igreja, de onde correram assustados uns
cabritos. Defronte, o cruzeiro abria os braços para nós. Como havia de ser?
Quem me
podia ajudar a descer aquele corpo?
Parei
um pedaço, olhando para o tempo.
Aí o
frio pegou a apertar outra vez, e uma coisa me fazia uma zoeira nos ouvidos,
que nem um lote de cigarras num dia de sol quente. Que frio, que frio! Meu
queixo pegou a bater feito uma vara de canelas-ruivas. Turrr! turrr! O
compadre, atracado na minha carcunda, ficou feito um casco de tatu; quando meu
calcanhar batia no pé dele, o baque respondia no corpo todo e o queixo dele me
fincava com mais força na apá. A porta da igreja pegou a rodar, principiando
muito devagarinho; e o cruzeiro a modo que saía do lugar, vinha para mim, subia
lá em cima, descia cá embaixo, como uma gangorra, mal comparando.
Peguei
a sentir, não sei se na cabeça, não sei mesmo onde, um fogo, que era fogo lá
dentro e cá fora, no meu corpo, nas minhas pernas, nas mãos, nos pés, nas
costas era uma friúra, que ninguém nunca viu tão grande!…
Meu
braço não mexia, minhas mãos não mexiam, meus pés não saíam do lugar; e, calado
como defunto, eu fiquei ali, de olhos arregalados, olhando a escuridão, ouvidos
alertas, ouvindo as coisas caladas!
Meu cavalo,
entresilhado também de fome, de cansaço e de frio, vendo que a carga não era de
cavaleiro, desandou a andar à toa, pra baixo, pra cima, catando aqui-acolá uns
fiapos de capim…
Quando
eu passava por perto da porta de alguma casa, fazia força e podia gritar:
– Ô de
casa! Gente, vem ajudar um cristão! Vem dar uma demão aqui!
Ninguém
respondia!
Numa
porta em que o cavalo parou mais tempo – porque uma hora meu queimado parecia
cavalo de aleijado parando nas portas para receber esmola – apareceu uma cara…
E quando eu disse:
– “É um
defunto…” – a pessoa soltou um grito e correu para dentro esconjurando…
Mas, as
casas todas pegaram a embalançar outra vez, e eu estava como em cima d’água,
boiando, boiando..
Parece
que o queimado cansou de andar. Lá nos pés do cruzeiro, onde havia um gramado,
ele parou…
E foi
aí que vieram me achar, de manhãzinha, com os olhos arregalados, todo frio,
todo encarangado e duro no cavalo, com o compadre à garupa!
Ah!
patrão! amigo é amigo!
Daí
para cá eu andei bem doente…
Quantos
anos já lá se vão, nem eu sei mais.
O que
eu sei, só o que eu sei, é que nunca mais, nunca mais aquele friúme das costas
me largou!
Nem
chás, nem mezinha, nem fogo, nem nada!
E
quando eu ando pelo campo, quando eu deito na minha cama, quando eu vou a uma
festa, me acompanha sempre, por toda a parte, de dia e de noite, aquele friúme,
que não é mais deste mundo!
Coitado
do compadre! Deus lhe dê o céu!
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes
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