A primeira
visita ao vale de Santarém
Aires de Sá Nogueira irmão do Marquês de
Sá, homem de grande atividade e empreendedor, fundou, em 1849, uma associação
agrícola, chamada a Liga. As primeiras reuniões deram-se no Teatro de D. Maria
II.
O pai de Rebelo da Silva, Luís Antônio
Rebelo da Silva, era homem de talento e jurisconsulto notável. Tinha a palavra
exuberante, conquanto não possuísse a faísca genial do filho, e a graça viva,
que se desatava em torrentes na conversação improvisa, uma das condições
daquele privilegiado e robusto talento, que escreveu a Mocidade de D. João V.
Luís Antônio, quando tinha demandas
entre mãos, tornava-se terrível; era um maçador desumano! Numa palavra,
declamava os autos!
– O que fazia o pasmo e muitas vezes o
desespero de Alexandre Herculano, de quem era íntimo.
De uma vez, preparou ele a mala, para
passar uns quinze dias na sua quinta do Vale de Santarém. Às cinco da -manhã
estava na rua, com o criado atrás, a caminho do Terreiro do Paço, para chegar
ao vapor, que partia cedo. Note-se que então a viagem a Santarém levava desde
as sete da manhã até às dez da noite, e às vezes mais!
Luís Antônio descia a Rua de São Bento –
trazia nesse tempo demanda consigo – e à esquina da Calçada da Estrela deu de
cara com Rodrigo da Fonseca Magalhães, que uma circunstância imprevista
obrigava a sair àquela hora.
– Ó Rodrigo, tu por aqui, a estas
horas?!
Rodrigo ficou varado. Conheceu-lhe logo,
no aceso dos olhos, a febre da demanda. Soltou um suspiro, dizendo:
– E com muita pressa, muita pressa.
– Ora, ouve lá.
– É negócio urgentíssimo -retrucou
Rodrigo, a ver se escapava.
– Escuta lá, homem. Aquele iliçador e
burlão desta terra...
O burlão e iliçador era sempre o seu
antagonista no pleito.
Tinha já aferrado Rodrigo pela banda do
redingote. Não havia largar; possuía a garra de um falcão real!
Às dez horas, Alexandre Herculano dobrou
a Calçada da Estrela, encaminhando-se para a Torre do Tombo. Vendo-os, coseu-se
com a parede. Rodrigo estava lívido! Luís Antônio suava, mas falava ainda!
Não se imaginam os gestos e os chistes
de Rodrigo da Fonseca Magalhães contando esta anedota. Muitas vezes lha ouvi.
Um domingo – na Liga –, o pai de Rebelo
pediu a palavra, disse a primeira frase e caiu morto.
***
Luís Augusto, filho único, ficara com
todos os haveres do pai, importantes, entre os quais se contavam a casa e a
quinta do Vale de Santarém. Um mês depois da morte do pai, Rebelo da Silva
pediu a Herculano e a mim para que o acompanhássemos a passar uns dias na sua
propriedade. Herculano, como muito entendido em coisas agrícolas, devia
esclarecê-lo, indicando-lhe os meios de tirar maiores vantagens da quinta.
A viagem no vapor era tardia, mas
agradável; quase sempre concorrida e animada. A primeira paragem dava-se em
Alhandra, a segunda em Vila Franca de Xira, seguia-se Vila Nova e depois o
Carregado. A travessia pela vala, à sirga, muito demorada e monótona; mas lá
vinham umas margens bordadas de freixos e salgueiros; as batardas, atravessando
com o voo descansado e a envergadura enorme; as bandadas de patos bravos no
Inverno e de monções no Verão; os pertos e longes da campina; os toiros
ruminando no ervaçal, mansos, sem sombras de aspecto minaz, como se lhes não
corresse no sangue a nativa ferocidade; e o campino, com o seu cavalo e a sua
vara.
O nosso campino é o cavaleiro mais
gentil de toda a Península. Os guardadores espanhóis são desempenados e
elegantes, mas não ombreiam com os nossos, quando trajam a rigor: sapato
aberto, de salto raso e prateleira, meia, calção, fivela, cinta, colete muito
decotado, jaleca quase sempre ao ombro e barrete.
Os campinos, naquele tempo, eram como
uma raça à parte: sem serem nômadas tinha o que quer que fosse do árabe: o
cavalo, o pampilho, que é a sua lança, e a hospitalidade na pousada!
As rixas decidiam-se com um pau de
cobrir. Eram os primeiros jogadores de todo o país. Desde Alhandra até à
Ribeira de Santarém, campino que usasse de navalha seria a desonra de uma
família, de avós a netos. Isso hoje mudou e está muito adiantado com a
civilização!
Não há cavaleiro em praça, por mais
destro que seja, que chegue à elegância de um campino, só, desamparado, virando
um toiro, que reponta com todo o poder da sua força folgada, aos círculos,
sobraçando o pampilho e metendo-lhe o ferro onde convém. É bonito e é de
destemido; mas, como valor, fazem mais. – Andam lavrando com o gado bravo; há
toiro que se nega a pegar à charrua? Pois não é raro o campino bater-lhe o pé e
as palmas, atirar-lhe com o barrete, abrir-lhe os braços, gritando: – Entra
aqui, boi real! – e pegar-lhe desembolado; isto é, jogando a vida presa a um
cabelo!
***
Não há passe de capote, nem de muleta,
em que o espada mais arrojado se arrisque com tamanha intrepidez!
Falando do Vale de Santarém, Alexandre
Herculano disse que, depois das Viagens na minha terra, aquele sítio era como o
pomo vedado. De facto, Garrett com tal correção de linhas e propriedade de
colorido o pintou, que não há tocar-lhe. Eu estava nos meus vinte anos; sabia
de cor as Viagens; a imaginação era-me um pouco viva, amava a natureza e a
arte.
É o que me tem valido! Se não fosse o
campo e os livros, vendo isso que para aí está, e lembrando-me dos homens que
me desapareceram, tinha rebentado!
Era plena Primavera. Num ramalhete
ondeante de loureiros, que sombreavam a azenha, os rouxinóis cantavam e eu
julgava ver os olhos verdes de Joaninha, faiscando como esmeraldas, ao escutar
os hinos daqueles inovadores alados que, do cair da noite até à madrugada,
improvisam, há milhares de anos, o poema vivo que faz palpitar todos os
corações juvenis!
Dez anos depois, voltei a esse vale com
minha irmã, no momento mais amargo da minha vida, a pouco trecho da morte de
minha mãe. Vai hoje para trinta e quatro anos que isto se passou, mas tenho tão
vivas como se foram ontem, na memória do coração, as finezas de todo o gênero
que devemos a Rebelo da Silva e a sua mulher, a Sra. D. Maria Henriqueta
Teixeira Coelho de Melo, numa longa temporada que lá estivemos. Se não fossem
eles, talvez eu tivesse perdido minha irmã, em quem o golpe produzira
extraordinários fenômenos nervosos. Aquele ar, a beleza do sítio, e
principalmente, e sobretudo, o fraterno carinho dos nossos hóspedes,
salvaram-na!
O seu filho Luís teria então quatro
anos. Era uma criança encantadora. É hoje par do Reino, homem de talento e de
probidade suma.
Rebelo da Silva já não pode ver como,
passado tanto, lhe sou grato ainda, mas à Sra. D. Maria Henriqueta, cujas mãos
beijo, aqui lhe renovo os meus agradecimentos.
No dia seguinte à nossa chegada ao Vale – da primeira vez logo de manhã, apareceu uma visita. Era um rapaz na flor da
vida, nosso íntimo. Viera de Paris havia pouco, depois de ter completado
brilhantemente o seu curso de engenheiro. Assistira à revolução de 48; vibrava
ainda com os acontecimentos que entusiasmaram os rapazes daquele tempo. A
mocidade de então ainda tinha entusiasmos e não se envergonhava deles! O amigo,
que de Santarém viera visitar-nos, era Joaquim Tomás Lobo de Ávila, atual conde
de Valbom.
Partimos nesse mesmo dia para sua casa.
Lá passamos três deliciosos dias e mais larga seria a hospedagem afabilíssima,
se não fosse a urgência de regressarmos ao Vale.
***
Viajar com Alexandre Herculano era, às
vezes, ouvir lições de história, na mais elevada, elegante e ao mesmo tempo
despretensiosa linguagem. Ao visitarmos as ruínas de Santarém, de uma pedra de
mármore, onde o punção abrira algumas letras, de um troço de coluna gótica, de
uma volta pontiaguda de abóbada, reconstruía aquele espírito de artista, com a
sua grande penetração histórica, como que a primitiva fábrica. Assim nos
aconteceu na Alcáçova, quando ele, comovido e entusiasmado, enfurecido às
vezes, condenava os iconoclastas que tinham destruído o primor de arte de Pedro
Arnaldo!
Anos depois voltou a Santarém e, a
propósito da Alcáçova, escreveu uma soberba carta ao marquês de Sabugosa.
Que aprazível convivência foi a nossa no
seio da família Lobo de Ávila, onde primava a mais seleta educação. Nessa
família resplandecia a irmã, nos primeiros anos da mocidade, simpática, talento
vivo, digno do nobre coração, tão nobre que praticou, um dia, um ato de
heroicidade!
Hoje, o conde de Valbom, depois de haver
exercitado, por vezes, o consulado e representado o seu país nas primeiras
cortes da Europa, lá de onde em onde, há de relembrar esses dias que o mestre
passou em sua casa e, com eles, a aragem fresca e balsâmica da mocidade!
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