6/09/2019

As apreensões de uma mãe (Conto), de Júlio Diniz



As apreensões de uma mãe


CAPÍTULO 1

Não me consta que tenha existido mãe tão extremosa, e talvez tão excessivamente indulgente, como era a Sra. D. Margarida, de Entre-Arroios, na época em que, voltando eu de uma pequena digressão pela província do Minho, tive a fortuna de ser recebido como hóspede em casa desta senhora, a meio caminho do Porto a Braga, um quarto de légua afastada da estrada principal.

Era uma época de crise para a fidalga, como por lá lhe chamavam todos os vizinhos, esta a que me refiro. Dias antes tinham as cortes decidido — e qual é a casa rica de província que não tem o seu pequeno parlamento? — que o menino Tomás, o qual então contava quinze anos feitos, seguisse estudos em Coimbra.

Discutia-se, porém, ainda acaloradamente a escolha da faculdade.

O abade, egresso do convento de Santo Tirso, jovial como uma anacreôntica, gordo como o primeiro prêmio de uma exposição agrícola na secção — gado suíno — votava pela de teologia; o doutor, homem de emaranhados discursos recheados de cujos e supraditos e rábula por amor da arte, insistia na de jurisprudência; — e o médico, original de curtas falas, mas, em compensação, de bem compridas pernas, que dizia parada a ciência desde os seus bons tempos de Universidade e parecia querer-nos dar a entender que escutara então dela a última palavra, antevia um futuro brilhante para o jovem morgado na carreira clínica; mais generoso do que nenhum, apoiava este projeto de lei com a promessa da sua livraria, curioso museu de antiquário, coberto de uma camada de pó semissecular, e na qual a traça imperturbável prosseguia lentamente todos os dias uma obra de destruição.

A faculdade de Matemática era a única não representada; e os três membros deste erudito congresso, em tudo tão divergentes, viam-se só unânimes ao reconhecer que ela não merecia, de fato, entrar em linha de conta.

— No nosso país, um matemático — dizia o doutor, concordavam o médico e o abade, e eu quase estive tentado a concordar também — não tem uma posição segura e definida. Os nossos governos encomendam as estradas aos enxurros, e as pontes fazem-se quando os ventos derrubam os trocos das árvores através das correntes dos ribeiros.

E o coro entoava um anátema às estradas, às pontes e ao governo.

Isto era em 185...

A Sra. D. Margarida, essa fazia dos matemáticos uma ideia horrorosa, pouco superior à que formava dos lobisomens, para que tomasse a peito defender a ciência de Newton e de Laplace da excomunhão lançada contra ela por este sapientíssimo triunvirato.

E todos os dias se reproduziam de parte a parte os mesmos argumentos; — todos os dias, como nos tribunais, a discussão percorria sucessivamente seus diferentes graus: começando pela argumentação pausada e agradável, passando à réplica tumultuosa, em seguida, confundindo-se em acaloradas vozerias, e terminando, enfim, pelas mais aguçadas alusões e as mais descompostas diatribes. Os contendores todos os dias se retiravam vermelhos, suando, resfolegando como touros no circo, a Sra. D. Margarida adiava a sessão para a noite imediata e o menino Tomás, causa inocente de tantas iras, continuava dormindo sossegadamente sob os tetos paternais, apesar dos quinze anos feitos.

Recomendado à dona da casa por um seu amigo íntimo de Braga, mereci a honra de ser imediatamente posto ao corrente da questão e, o que mais é, convidado para intervir nela. Quis recusar-me a esta lisonjeira prova de consideração, mas debalde o tentei; e afinal reconheci que bem necessária seria a minha intervenção, pois via os litigantes cada vez mais longe de se encaminharem a uni acordo.

Convocou-se portanto nova reunião para o dia seguinte ao da minha chegada, que se efetuara no fim da tarde de um magnífico dia de Julho, e depois de aturada conversa com a minha atenciosa hospedeira, na qual ela me pôs ao alcance de todas as suas tribulações domésticas, tais como: — a impertinência das criadas, o arejo das batatas, o vinho que se lhe azedara, um muro que tinha desabado — consegui, após várias tentativas infrutuosas, dar-lhe as boas-noites. Retirei-me para o quarto que me fora indicado, pensando comigo mesmo como tão depressa me achava envolvido num negócio de família, de não pequena gravidade, e árbitro dos destinos de uma criança, que nem sequer tinha ainda visto.

A janela do aposento onde pernoitei dava para um bem provido pomar, glória da Sra. D. Margarida, que se ufanava de possuir as mais deliciosas laranjas e os mais saborosos pêssegos de toda a província; e destes últimos, bem gratas recordações efetivamente me ficaram!

A noite estava belíssima. Era uma destas abafadas noites de estio em que somos, quase irresistivelmente, levados para a contemplação do espetáculo do céu, sem nuvens nem estrelas, e da terra inundada por um luar magnífico de reflexos surpreendentes.

Apaguei a luz, e, encostado ao peitoril, esqueci-me durante horas a olhar para o que via diante mim, e a pensar não sei em quê, se é que pensar se chama àquilo.

Desta contemplação fui afinal despertado por o ruído de uma janela que se abria cautelosamente. Movida assim a minha curiosidade, pus-me a observar o que se passava.

A posição era favorável a esta inocente espionagem. Uma rápida descrição topográfica do lugar o mostrará claramente.

A casa de Entre Arroios, edificada nos princípios do século passado, conservava ainda, apesar das sucessivas mudanças que o espírito de reforma de D. Margarida lhe havia introduzido, o aspeto pesado e quase lúgubre das construções daquela época do nosso país.

A fachada principal ostentava, heraldicamente combinadas, as armas da família, tidas pela gente do lugar como uma das principais glórias da sua terra. Duas largas pilastras de granito corriam, livres de oca e de argamassa, ao longo desta fachada, desde a sólida cornija que sustentavam em floridos capitéis, até aos alicerces sobre que se apoiavam os pedestais enegrecidos. Para a parte posterior prolongavam-se os corpos laterais do edifício em alas paralelas, abrangendo por esta forma um espaço quadrangular, onde um dos ascendentes de D. Margarida plantara o pomar a que já me referi e que com tanta dignidade sustentava nos mercados a boa fama da horticultura minhota.

Subindo três degraus de pedra já meio gastos pelo uso e transpondo uma porta envidraçada, entrava-se do pomar, por o corpo central na casa, para a sala de jantar; no mesmo correr eram a cozinha e despensas e para outro lado o salão das receções solenes, ordinariamente fechado.

No andar superior eram os quartos de D. Margarida, os quais abriam para uma ampla varanda de bem torneados balaústres, onde vegetavam em vasos de louça as flores prediletas da senhora; era também aí a sala dos serões familiares, e finalmente o quarto de Tomás. Este ficava situado num dos ângulos do quadrilátero e imediato ao corpo lateral do edifício que fora destinado para capela.

Durante as devastações que o país sofrera nas sucessivas guerras civis dos últimos períodos da nossa história, a casa de Entre Arroios não fora mais do que as outras respeitada, e os estragos que, no resto da habitação, tinham já sido cuidadosamente reparados, conservavam-se ainda visíveis no pequeno templo, onde havia muito se não exercia por isso o ofício divino.

As janelas que deste templo deitavam para o pomar, uma das quais ficava muito próxima e subjacente à do quarto de Tomás, mostravam ainda os grossos caixilhos de ferro despovoados de vidros, e já em parte atacados pela ação corrosiva do tempo.

Finalmente, do lado esquerdo, em simetria com a capela, prolongava-se um pequeno pavilhão, originariamente destinado para alojar os hóspedes, que, recebidos e gasalhados na casa de Entre Arroios com proverbial cordialidade, ficavam, contudo, como por um natural e delicado pudor de ménage, um tanto afastados do seio íntimo da família, não a constrangendo assim a alterar os hábitos domésticos, que, e na vida de província principalmente, nunca se sacrificam sem dolorosa violência.

Foi neste pavilhão que me prepararam aposento, e de lá, oculto pelas folhas de uma laranjeira ao alcance do meu braço e através delas, podia eu pois descobrir toda aquela parte da casa que, por mais vezes habitada, não era, como esta, tão oprimida pela exuberância da vegetação.

Foi pois desta situação vantajosa que me dispus a averiguar a causa do ruído, proveniente, ao que parecia, do lado exatamente oposto àquele que eu ocupava.

Não havia dúvida. Uma das vidraças do andar superior abria-se vagarosamente. Era a do quarto de Tomás.

Ora, segundo o que me tinham dito dele naquela noite, desculpando-lhe a ausência, Tomás achava-se algum tanto incomodado e deitara-se mais cedo do que o costume. Seria pois aquele movimento filho do delírio da febre?

Foi o meu primeiro pensamento e tive tentações de excitar o alarme; mas, ponderando melhor, resolvi-me a expectar.

Já então estava convencido, e depois tenho mil vezes confirmado a observação, que não há, de ordinário, gente mais importuna do que as pessoas chamadas serviçais.

Passado assim algum tempo, vi uma forma escura desenhar-se no vão da janela, crescer, crescer e, com grande terror meu, erguer-se sobre o parapeito como tentando precipitar-se.

Não sei como pude reprimir um grito de susto: a ideia de suicídio fez-me arrepiar os cabelos.

Cedo porém, e com uma presteza que deixava suspeitar não ser a primeira vez que executava a manobra, o vulto, firmando-se nos lavores salientes da ombreira e daí num cano de ferro que descia do telhado ao pátio, junto ao ângulo da parede, transportou-se para o jazente da janela do templo, que lhe ficava próxima mas em plano inferior ao do quarto.

Depois, segurando-se aos varões de ferro dos caixilhos vazios, deixou-se resvalar até encontrar com os pés uma fenda ou desigualdade, não sei se natural se artificialmente praticada na parede, e, enfim, por uma evolução, que a sombra projetada pelas árvores me não deixou perceber, cedo tocava a relva, com tanta felicidade e prontidão que, sem hesitar, abandonei a ideia primeiro sugerida, por me parecer tal ginástica muito aperfeiçoada para um sonâmbulo ou febricitante.

Aquela sombra, ou antes aquele corpo, desde que se viu em terra, parou como escutando se tivera sido pressentido; afastou-se alguns passos e voltou-se de novo, passando em revista todas as janelas com escrupulosa atenção; porém esquecendo-se neste exame exatamente da única, que o havia traído, a do meu quarto, o qual talvez julgava desabitado. Satisfeito, ao que parecia, com estas observações, entranhou-se no pomar e cedo se perdeu por entre as árvores.

A sortida noturna deu-me que pensar. Sem dúvida, era este o herói de quem todos se ocupavam em Entre Arroios, e talvez mais herói do que me parecera quando a senhora D. Margarida me desenhou o seu retrato, com o defeito comum aos retratos feitos por todas as mães, que, desconhecendo geralmente as vantagens do claro-escuro, nos pintam seus filhos sem uma única sombra que lhes dê relevo às feições.

Aos quinze anos, uma excursão tão extravagante da casa materna tem já de ordinário uma causa, que não exige grande penetração, nem grandes esforços de inteligência para ser reconhecida.

Não me demorei por tanto tempo a desenvolver este problema, que resolvi pela fórmula geral. Mas o que me fez maior sensação foi que, por esta façanha, Tomás mostrava-se-me menos criança do que o queriam fazer aqueles que, sem o consultar, lhe andavam a discutir o futuro, destinando-lhe, um a cadeira abacial, outro a banca de advogado, outro a clássica mula de médico; e eu pensava comigo mesmo que muito bem poderia acontecer, chegada a ocasião de levar a efeito qualquer das resoluções em que assentavam, se tal hipótese era admissível, que todos fossem embaraçados por um obstáculo muito natural e não previsto, o da vontade de Tomás, a qual, a julgar pelo que vira, não se parecia dever ser demasiado maleável.

Jurei não deixar escapar esta observação e aproveitá-la para me conduzir no dia seguinte, visto a minha assistência ser reclamada pela assembleia, e conservei-me de atalaia, aguardando o regresso do filho pródigo, o qual se efetuou pelas duas horas da noite e com a mesma agilidade e destreza que eu já admirara.

Contente com a minha involuntária descoberta, e mais adiantado talvez do que ninguém na vida íntima do protagonista desta história, abandonei o meu posto e deitei-me a dormir um sono agradável.

Pela manhã, acordei em sobressalto, sonhando que era obrigado a executar a manobra de ginástica que presenciara na véspera.


CAPÍTULO 2

Quando abri a janela, ainda o Sol não havia despontado no horizonte. A manhã estava tão amena e tão belo panorama se ofereceu aos meus olhos, assim que os estendi ao longe pelos campos, que não pude vencer os desejos de explorar aqueles pitorescos lugares, apesar de ver ainda hermeticamente fechadas as janelas do quarto da senhora de Entre Arroios.

Servindo-me pois de uma saída particular, que havia no pavilhão, independente do resto da casa, desci ao pomar e aproveitando-me do momento em que o dragão deste novo jardim das Hespérides, um respeitável indivíduo da espécie Lineana: canis familiaris, saboreava as delícias do sono matutino, abri a porta da comprida gradaria, que formava o quarto lado da área consagrada a Pomona, e achei-me na quinta.

Os bens pertencentes à casa de Entre Arroios são extensíssimos, e naquela época uma exuberante vegetação dava aos campos tão agradável aspeto, tanta vida e frescura, que fazia realmente prazer entranhar-se a gente por aquelas extensas avenidas, e perder-se no meio das copadas devesas, ainda quando se corresse o risco de faltar a um almoço como costumavam sair das cozinhas de Entre Arroios. Depois de muito caminhar pude atingir enfim os limites da quinta e, verdadeiramente fatigado, sentei-me num pequeno muro tosco e coberto de hera, que ficava sobranceiro a uma destas tortuosas e estreitas ruas, que em mil direções atravessam as nossas aldeias e a cujo aspeto, monotonamente uniforme em todas elas, anda de ordinário mais ou menos ligada uma recordação da nossa vida passada.

Aí jogos, alegrias, perfumadas memórias de uma esquecida infância, nos reverdecem na imaginação, volteiam em tomo de nós, como um enxame de borboletas brancas ao agitarmos a balseira, onde pousavam embriagadas nos nectários das flores.

O nosso pensamento, à semelhança de um vaso metálico, ressoa por muito tempo, quando, embora de leve, percutido; como ondas sonoras, as nossas recordações, movidas por uma palavra, por um som, por uma flor, por um perfume, sucedem-se, dilatam-se cada vez mais vastas, cada vez mais suaves, até se desvanecerem numa confusa imagem do passado, de formas indefinidas e vagas, mas por isso mesmo mais belas, mais inebriantes ainda, num quase sonho, delicioso e grato como o murmúrio que termina o som, como o crepúsculo em que desmaia o dia, como o Outono que sucede à estação dos florescentes verdores.

E assim eu me deixava então enlevar pela reminiscência das passadas cenas, que tão profundamente me fazia esquecer tristezas e alegrias presentes.

Nós caminhamos sempre na vida entre duas visões; uma precede-nos esplêndida e brilhante, como a luminosa aparição que dirigia no deserto a marcha do povo hebreu; outra segue-nos, formosa e pálida, como as virgens ideias dos cantos escoceses. São a esperança e a saudade. Com os olhos naquela, quase chegamos a olvidar inteiramente a existência da última; mas que uma sombra extinga, obscureça sequer, a auréola que na primeira nos atrai e seduz, e a segunda surgirá, como surgem as estrelas, quando a chama do Sol desmaia no extremo ocidente.

Destas ideias, destes sonhos por onde me arrebatava a fantasia, evocou-me o ruído de uns passos ligeiros e leves, que de momento a momento se fazia mais distinto.

Nada de estranho poderia ter o fato, visto serem estas as horas em que de todos os lados da aldeia partiam os operários para o trabalho; contudo um inexplicável movimento de curiosidade me fez debruçar sobre o muro em que estivera sentado, aguardando a chegada da pessoa que parecia avizinhar-se.

Não esperei muito tempo para conhecer a causa do ruído que me preocupava; cedo vi no princípio da estreita rua, que as árvores dos campos fronteiros guarneciam de um toldo de verdura, assomar uma gentil forma feminina com os trajes elegantes das lavradoras do Minho, e sustentando na cabeça, no mais perfeito equilíbrio, uma vasilha a trasbordar de leite mungido de pouco.

Era uma rapariga que parecia contar de treze para catorze anos. Os cabelos desatados saíam-lhe em madeixas abundantes por debaixo de um lenço escarlate, disposto em volta da cabeça com artístico e indescritível desleixo; outro da mesma cor se lhe cruzava no seio, cujas formas começavam a desenhar-se em curvas graciosas; a cintura tão delicada e flexível, que, ao vê-la, involuntariamente se imaginava a requebrar-se nas ondulações de uma valsa — era sem constrangimento apertada num estreito colete de fustão azul-escuro; a saia de pano preto descia-lhe até ao meio da perna; as mangas amplas e compridas da camisa de linho, alvo como a neve, vinham apertar-se-lhe nos punhos, ocultando aos olhos o puro contorno dos braços, que, não obstante, uma pequena e bem modelada mão deixava adivinhar. O fogo nos olhos, rosas nas faces, a alvura do leite no colo descoberto, onde realçava um fio de formosas coralinas, assim se adiantava esta risonha visão, que me vi tentado a tomar pela deusa da madrugada.

Com grande espanto meu, ela olhava-me de longe sorrindo e na aparência decidida a dirigir-me a palavra. Não tendo, como é de crer, motivos para me recear da aparição, conservei-me imóvel, absorvido agradavelmente a contemplá-la. Mas afirmando-se melhor em mim, quando a distância de me poder falar, a gentil rapariga fitou-me uns olhos espantados, baixou-os imediatamente, corou a ponto de rivalizar com a pequena rosa que trazia ao peito e apressando o passo, como ansiosa por fugir às minhas vistas, apenas murmurou, ao passar e sem erguer os olhos, a singela saudação, usada pela gente do campo: — muito bons-dias. Apesar da voz quase sumida, com que estas três palavras foram pronunciadas, afigurou-se-me de uma melodia encantadora.

Respondi-lhe simplesmente ao cumprimento, abstendo-me, como de um sacrilégio, de acrescentar uma única frase, que se semelhasse a galanteio. Tal era a atmosfera de virginal castidade que me parecia envolver esta poética criatura.

Segui-a com a vista enquanto pude, até que a vi desaparecer numa das voltas do caminho, no mesmo momento em que aparecia o Sol, por detrás da colina fronteira, dando-me a entender que era tempo de voltar a casa, para não ser logo no primeiro dia inexato à hora do almoço, que tão cuidadosamente me comunicara na véspera a senhora de Entre Arroios.

Abandonei pois este lugar, onde experimentara tão vivas impressões morais, para procurar aquela outra espécie de impressões, cuja fisiologia melhor que ninguém estudou, porque melhor que ninguém as experimentava, Brillat-Savarin, o médico-gastrônomo.

Na sala do almoço encontrei já a senhora de Entre Arroios, ocupando o trono, que, como chefe de família, de direito lhe pertencia. Era uma destas antigas cadeiras de couro lavrado, guarnecida de reluzentes tachas amarelas, a qual, atento o seu peso, só quase por antífrase se poderia chamar um dos móveis da casa; nossos avós as inventaram para se sentarem, assim como nós inventamos as modernas para fingir que nos sentamos.

Numerosas gerações da nobre família de Entre Arroios tinham conhecido e acatado esta cadeira histórica, que tivera já a honra, disse-me a Sra. D. Margarida com um movimento de justa vaidade, de ser ocupada um dia inteiro por um arcebispo de Braga, durante uma excursão pela diocese.

D. Margarida saudou-me com o mais amável dos seus sorrisos e dirigiu-me duas graças benevolamente maliciosas, sobre o meu passeio em jejum, terminando por me colocar à sua direita, em frente de um magnífico chocolate que deveras me deleitou.

Com a curiosidade, que é de prever, pedi notícias do bijou da família. O Tomasinho, disse-me a Sra. D. Margarida, passara mal a noite e exigira que ninguém lhe entrasse no quarto, por causa de uma intensa dor de cabeça, que lhe costumava dar muitas vezes.
— Ah! muitas vezes?

— A cada passo.

— E há muito que sofre dessas... dores de cabeça?

Há coisa de alguns meses a esta parte é que ele se começou a queixar. Isto há de ser do Sol...

— Também creio, minha senhora. O Sol faz muito mal e em certas idades sobretudo. E que diz a isso o doutor?

Eu sempre gostei de ver os médicos explicarem certas coisas.


— O médico — respondeu-me D. Margarida — diz que aquilo é força de sangue, e até propôs uma sangria.

— Ah! e o seu filho minha senhora?

— Não quis ouvir falar em semelhante coisa.

— É que talvez então se achasse melhor.

— Efetivamente, passou algum tempo mais aliviado, mas depois voltou-lhe.

— E hoje?

Levantou-se pela manhã muito cedo e saiu. Diz que lhe fazem muito bem estes passeios.

— As dores de cabeça?

Sim; pois é toda a sua doença.

— Decerto que devem fazer.

Quando acabava de receber estas informações, para mim bastante significativas, a porta da sala abriu-se e o menino Tomás entrou em cena.

— “Falai no ruim, olhai para a porta” — foram as palavras com que a senhora de Entre Arroios saudou o recém-chegado, para quem lançava uns olhos a trasbordarem de amor maternal.

Tomás beijou com afeto a mão da mãe e inclinou-se cortesmente diante de mim, depois que a Sra. D. Margarida me apresentou com todas as formalidades.

Um primeiro olhar sobre Tomás me fez logo simpatizar com ele.

Era ainda imberbe, algum tanto pálido, com uns lânguidos olhos castanhos, que se pressentiam talhados para contemplações poéticas, os cabelos negros naturalmente anelados e compridos, a cara espaçosa, a boca de uma expressão melancólica; tudo naquela fisionomia revelava sentimentos nobres e generosos, elevados brios, talvez uma excessiva sensibilidade, e um espírito fácil em impressionar-se; graves defeitos para quem desejar viver em paz neste mundo.

Os vestidos singelos, mas elegantes, faziam sobressair-lhe a estatura airosa e bastante desenvolvida para a idade que ele tinha. Conhecia-se haver crescido e vigorado ao ar livre dos campos.

Enquanto eu prosseguia neste meu rápido exame, reparei por acaso num a rosa vermelha, que Tomás trazia descuidadamente na mão.

Era em tudo semelhante à que vira ao peito da pequena leiteira.

Seria uma coincidência? Que admirava?

Numa terra e numa estação em que as rosas nos surgem espontâneas debaixo dos pés, que significação podia ter o fato?

Contudo, o que eu já sabia de Tomás levava-me a conceder mais algum peso à pequena circunstância que observara.

Travei com ele uma conversa banal, sobre mil coisas em que se costumava falar, quando se não quer dizer nada.

No fim do almoço a senhora de Entre Arroios improvisou entre nós um passeio, ao qual lamentava não poder acompanhar-nos, porque não lho permitia o governo da casa, de uma exigência mais que despótica — frase dela.

— Vão, vão passear! Mas olha lá, Tomás, cautela com o Sol, e não vás para o lado dos lameiros: a umidade pode fazer-te mal. Olha, sabes? não seria mau ires mais enroupado; a manhã está fresca, e o que livra do frio, livra do calor.

E com estas e idênticas recomendações, das quais a muito custo Tomás conseguiu livrar-se, sujeitando-se a umas, iludindo outras conforme pôde, saímos ambos para observar o plano de divertimento que nos traçara a Sra. D. Margarida.

Durante o passeio, Tomás mostrou-se agradável, e às vezes jovial. Falamos em vários assuntos, e em todos pude reconhecer nele bastante cultura intelectual, contra o que era de esperar, atendendo à vida isolada que passava ali.

Quanto porém aos seus sentimentos, Tomás mostrava-se pouco comunicativo, e se às vezes eu tentava mais a fundo sondar aquele caráter, que me parecia, a muitos respeitos, digno de estudo, tornava-se subitamente mais reservado ainda, como se pressentisse as minhas intenções.

Afinal decidi-me a atacá-lo mais de perto.

— Sabe, Sr. Tomás — disse-lhe depois de uma hora de passeio — que admiro as suas compatrícias?

— Sim?! — foi a única resposta monossilábica que pude obter. Não desanimei contudo e prossegui:

— Esta manhã, pelo menos, vi uma que me pareceu um verdadeiro modelo de artista.

— Deveras? — respondeu-me no tom de voz mais indiferente que se pode conceber.

Deveras — continuei eu — e foi justamente daqui mesmo.

Havíamos de fato chegado ao sítio donde eu, como cortesão em antecâmara de monarca, aguardara o despertar do Sol.

— Ah! daqui?

Pareceu-me descobrir mais algum interesse nesta interrogação de Tomás.

— Ao que pude julgar, era uma leiteira das imediações. Bonita rapariga, palavra de honra! — dizendo isto, fitava os olhos nos dele, que momentaneamente se abaixaram.

— Havia de ser a Paulina disse com um ar de indiferença mal representada; e mudando de conversa: — O senhor é do Porto?

Fiz-me desentendido.

— Paulina? é um nome poético. E da terra essa rapariga?

— Julgo que sim... É, mas...

Eu não o deixei continuar.

— Não a acha galante?

Esta pergunta visivelmente o contrariou. Um movimento quase imperceptível dos lábios, uma ruga que mal se desenhou na cara, e o rubor desmaiado que por momentos lhe invadiu as faces mo denunciaram.

— Assim — respondeu-me de um modo seco; e afastou-se alguns passos, ostensivamente para cortar uma vara de um castanheiro vizinho, mas na realidade com o fim de interromper a conversa, que lhe desagradava.

Pela minha parte, já sabia o que desejava; e como ainda ia perdendo terreno nas boas graças de Tomás, do que não tinha desejos, aceitei a diversão, fui ajudá-lo no ingênuo passatempo, em que ele fingia entreter-se, e assim nos divertimos durante alguns minutos.

Passado tempo, e a uma proposta sua, seguimos caminho para casa. Tive ocasião de lhe dirigir de novo a palavra.

— Que projetos forma relativos ao seu futuro?

— Projetos?

— Sim; a que carreira se destina?

— Ah! não sei bem. Dantes falavam em me mandarem para Coimbra. Talvez que essa ideia esquecesse.

— O que talvez estimaria.

Fitou-me com desconfiança, respondendo:

— Pode ser — e depois continuou: — Contudo era a vontade do meu pai e se a minha mãe o exigir... Sabe que nunca lhe pude desobedecer em coisa nenhuma?

Tinha na voz uma sensível comoção ao dizer isto; se o sentimento filial, se outro, o dominava então, não o pude saber.

— Pelo que ontem ouvi dizer a sua mãe e a alguém mais da companhia — continuei — julgo que esses projetos se discutem de novo atualmente.

— Deveras? por que não mo terão dito? — e calou-se preocupado por um pensamento que parecia mortificá-lo.

— Não há no Porto uma escola onde se estude também? — perguntou-me em seguida.

— Conforme. Para que estudos se inclina mais?

Encolheu os ombros em sinal de completa indiferença, e prosseguimos no nosso caminho silenciosamente.

Chegamos enfim à porta da gradaria que fechava o pomar, onde nos encontramos com o médico, personagem esguio e descamado, que poderia servir de exemplar para estudos de osteologia seca. Uma mumificação progressiva quase lhe permitia já livre passagem através dos varões de ferro e inutilizava o uso da porta, que, apesar disso, Tomás se apressou em abrir-lhe, mais por delicadeza que por necessidade.

— Bons-dias, meu pequeno cliente — disse ele, dirigindo-se a Tomás e enviando-me ao mesmo tempo uma cerimoniática reverência.

Um sorriso de inofensiva zombaria se deslizou nos lábios de Tomás, ao contemplar o doutor.

— Então já de volta da sua excursão clínica, doutor Madrugada?, bem esforços faz por desmentir a vita brevis, que sempre traz na boca. — É preceito higiênico que observo religiosamente; deito-me às oito horas para, às quatro, me levantar. Isto auxilia a boa distribuição dos humores e a cocção das matérias pecantes.

O aspeto do doutor não era muito lisonjeiro à teoria, ou tudo naquele corpo era matéria pecante: pois de fato dir-se-ia ter passado todo ele por uma cocção verdadeira.

— E as suas dores de cabeça? — acrescentou voltando-se para Tomas.

— Vão-me sendo infiéis e ameaçam deixar-me, as ingratas.

— Ruinzinho! Isso já podia estar fora. — E voltando-se para mim: — Ora diga, uma cefaleia com um fundo pletórico, devida evidentemente à confluência dos humores para a cabeça, coisa própria da idade, qual o tratamento racional que exige? Salta aos olhos dos leigos.

Apesar disso não saltou aos meus, o que me granjeou uma reputação duvidosa na mente do ilustre adversário das matérias pecantes, de cuja algaravia eu não pudera perceber palavra.

— Não há que ver — respondeu ele por mim, e com azedume — a sangria, a sangria e só a sangria.

Depois, dirigindo-se a Tomás:

— E como está a mamã?

— Vai ver — disse este, abrindo a porta da sala de jantar, onde havíamos já chegado.

Depois de uma luta de delicadezas e recíproca troca de zumbaias entre mim e o médico, consegui fazê-lo entrar adiante e penetramos na sala.

Justamente naquele momento acabava a senhora de Entre Arroios de pregar aos criados o seu duodécimo recado, tarefa que, sob o nome de canseiras de casa, encetava pela manhã para terminar à noite.


CAPÍTULO 3

À nossa chegada desanuviaram-se as feições contraídas da senhora de Entre Arroios; desceu uma oitava ao tom da voz e adiando para mais tarde a explosão das suas justas iras, justas deviam de ser, saudou o médico com o epíteto mais amável que lhe ocorreu, passando a informar-se, como alma caritativa que era afinal de contas, dos clientes mais pobres do Hipócrates campesino, os quais ela tantas vezes com cuidados, mais poderosos do que as drogas medicinais, lhe auxiliava a curar.

Eu no entretanto dirigia-me com Tomás para a janela, onde, para dizer alguma coisa, me pus a exaltar a paisagem, realmente bela, que se gozava dali.

Tomás parecia escutar-me com prazer; fez coro comigo e, com mais ardor do que eu, exprimia o seu entusiasmo por as belezas do campo.

— Pode acreditar — disse-lhe no discurso da conversa — que ontem, ainda que extenuado pelas fadigas da jornada, passei algumas horas absorvido na contemplação de toda esta cena fantasticamente iluminada pela claridade de um magnífico luar de Julho?

Estas palavras, pronunciadas sem intenção, produziram em Tomás um efeito, que, antes de as concluir, eu já notava e que me não foi difícil explicar.

Vi-o estremecer e olhando-me de um modo especial:

— Ontem? a que horas? — perguntou-me, com não disfarçada curiosidade.

Mentir não me era fácil.

— Depois da ceia... Das onze horas para a meia-noite.

— E donde? de que janela?

— Dacolá! — e apontei para o pavilhão.

Os olhos de Tomás seguiram essa direção, daí voltaram-se na do seu quarto e, depois de curta reflexão mental, fitou-me um olhar tão fixo, que, sem saber bem porquê, desviei o meu. Traí-me.

Ele também me havia sondado.

Corou um pouco e depois, como se abraçasse uma súbita resolução, perguntou-me com notável vivacidade:

— E que viu?

Adivinhei logo o sentido da pergunta, mas fingi ignorá-lo, respondendo:

— Todos estes mil efeitos, que nos surpreendem e que não sei descrever; contrastes admiráveis de sombra e luz...

— Só?

— Pois que mais?

Eu achava-me num a posição falsa, e que não poderia sustentar por muito tempo, pois confesso não serem grandes os meus talentos para dissimular.

— Então, além disso, não viu mais nada? — insistia Tomás — nem acolá? — e apontava para a janela do quarto.

A interpelação era muito direta desta vez, para lhe resistir; desde que o vi lançar assim as canas na mesa, julguei melhor imitá-lo.

— Alguma coisa, é verdade, mas... também viu? — acrescentei a meia voz.

— Se era eu mesmo.

— Ah!

Soube então quanto nos vale esta interjeição em casos apertados. Ganha-se tempo com ela, sem arriscar um passo que possa comprometer-nos.

— É verdade; que quer? — continuou Tomás, como se tivesse pressa de me explicar o seu procedimento. Eu também amo a natureza. Extasio-me ao respirar de noite o ar embalsamado dos bosques, sob um teto de verdura, através do qual se descobrem, se escondem, cintilam e resplandecem as estrelas, parecendo refletir-se na terra nesses milhares de insetos que das asas luminosas despedem fogos, tão fugitivos como os pensamentos a essa hora nos atravessam o espírito. Às vezes, acredite, chego a imaginar que de todos os lados me surgem as formas vagas e vaporosas que idealiza a poética imaginação do nosso povo e que imprimem nas singelas narrações dos campos, nas canções entoadas à hora das ceifas, ou junto do lar, um encanto indefinível. Talvez me julgue criança se lhe disser que um dos meus maiores prazeres nesta vida é, num a noite como a de ontem, na espessura das devesas, donde escute o murmurar de um ribeiro vizinho e veja desenhar-se no chão, em formas fantásticas e movediças, a folhagem que os raios da lua a custo podem atravessar, numa noite assim ouvir contar uma dessas histórias de fadas, que em pequeno tanto me entretinham e ainda hoje me deleitam, e mais já tenho perto de dezesseis anos!

— Mas contadas por quem, essas histórias? — perguntei, talvez impertinentemente.

Tomás hesitou em responder e murmurou não sei que palavras ininteligíveis, terminando por estas:

— Pouco importa. É uma questão secundária essa.

— Perdão; mas não penso eu assim — acrescentei, decidido a não me contentar com uma resposta tão evasiva. — Compreendo que possa encontrar nisso grande prazer e até, para lhe falar verdade, era esse um passatempo que me não desagradaria de todo, concordo; mas exigiria que os narradores fossem de duas classes apenas; ou uma destas velhas, que parece terem sido criadas só para narrarem contos e que o tempo respeita já com o fim de transmitir suas memórias às gerações que surgem; ou então, e melhor ainda, uns lábios femininos, uma voz com o timbre dos quinze ou vinte anos, que muita vez chegue a fazer-nos esquecer do conto para só nos lembrarmos da contadora.

Os mesmos sinais de impaciência, que por mais de uma vez havia oferecido a fisionomia de Tomás, de novo se lhe manifestaram, mais profundamente que nunca, e, como se me tivesse compreendido, continuou, dizendo:

— Eu não tenho contudo a liberdade de satisfazer estes desejos, a não ser da maneira que viu ontem.

— Um tanto arriscada.

— Pode ser. Mas o receio exagerado que a minha mãe tem ao ar da noite — e acentuou estas palavras sorrindo — fez-me perder a esperança de obter a sua permissão para satisfazer em mim este capricho, se não é uma verdadeira necessidade; mas capricho ou necessidade em todo caso incompreensível para ela. Eis o motivo porque me sirvo de um estratagema, um tanto singular e talvez ridículo.

— Diga antes perigoso.

— Ora! parece-lhe?

Se o que me dizia Tomás era verdade, não era contudo ainda a verdade inteira; — pressentia-o. Dei, apesar disso, à minha fisionomia um ar de convencimento, que me pareceu tranquilizá-lo.

Apressou-se em tomar a questão em tom jovial, rindo-se das suas próprias façanhas acrobáticas e esforçando-se por se mostrar mais criança do que era efetivamente, para tirar toda a importância à cena da véspera.

Houve enfim uma pausa na nossa conversa, que permitiu nos chegasse aos ouvidos o fim do diálogo travado entre D. Margarida e o doutor, o qual até ali nos passara desapercebido.

— Pobre homem! — dizia a senhora de Entre Arroios, profundamente compungida — e deu-lhe assim de repente?

— De um momento para o outro. Ainda esta manhã, quando a filha partiu para a vila, estava ele de perfeita saúde.

— E não dá esperanças?

— Hum! aquele... Receio que em poucas horas entrouxe e parta.

— Pobre Paulina!

Estas palavras exerceram em Tomás, distraído até então, um efeito mágico.

Ainda bem não tinham saído dos lábios de D. Margarida, já ele, abandonando subitamente o lugar onde nos achávamos ambos, estava no meio dos dois, sobremaneira inquieto, e podendo a custo perguntar à mãe:

— Que é? que aconteceu?

Se ainda fosse mistério para mim o segredo de Tomás, ser-me-ia neste momento revelado, tal era a expressão da sua fisionomia. A minha atenção achava-se naturalmente atraída para a cena.

— Olha, não sabes, Tomás? — respondia D. Margarida, suspirando — o pai da Paulina, a leiteirita dos Casais, conheces?

Tomás não pôde reprimir um movimento de impaciência, que o denunciava.

— Sim, sim, e depois?

— Diz agora o doutor que, quando vinha, o encontrou expirando, com um mal que lhe deu de repente.

— É possível?!

— Infelizmente.

— E... a filha?

— Julgo que ainda o ignora, pois tinha já partido para a vila, como costuma todas as manhãs.

Tomás olhou para o doutor, que, lendo uma folha do Porto, abanou silenciosamente a cabeça, em sinal de confirmação.

— É preciso lá ir — foram as primeiras palavras de Tomás, depois de um instante de reflexão.


Por única resposta a Sra. D. Margarida dirigiu-se para o gabinete. Tomás deteve-a.

— A mãe não espera hoje ninguém para jantar?

— Sim, mas...

— Irá logo então; agora deixe-me ir só.

E, sem esperar outra resposta, encaminhou-se rapidamente para a porta e saiu da sala.

Ao passar por baixo da janela onde eu ainda me conservava, presenciando toda esta cena, o nome de Paulina, saindo-lhe dos lábios, chegou-me distintamente aos ouvidos.


CAPÍTULO 4

A senhora de Entre Arroios viu-o sair, sem tentar impedi-lo e, abanando lentamente a cabeça, murmurou comovida:

— Pobre filho! tem o coração de um anjo!

O médico, sem despegar os olhos da folha, fez ouvir um ininteligente monossílabo com pretensões a partícula afirmativa.

D. Margarida conhecia o doutor e por via de regra não o procurava em momentos de expansão e de sentimentalismo; por isso preferiu dirigir-se a mim e recostando-se ao parapeito da janela, donde eu observava ainda Tomás, que já se perdia por entre os desvios das avenidas, continuou:

— Não faz ideia, Sr. D... como aquela alma sensível se aflige, quando algum infortúnio sucede que ele não possa remediar.

— O seu filho tem nobres sentimentos, minha senhora; pude-o avaliar agora e suspeitava-o, desde que tocamos as primeiras palavras esta manhã.

— Meu pobre Tomás! E lembrar-me que, talvez bem cedo, tenha de me separar dele!

— Uma ausência momentânea é compensada de sobra pela alegria da volta!

— Da volta! mas quando entre nós e essa volta estão ainda anos e quando se tem uma saúde tão delicada como a de Tomás!

— Oh! minha senhora, isso são temores de mãe. A constituição do Tomasinho é até vigorosa, e senão o doutor que o diga.

— Pois sim! e aquela melancolia?

— Eu achei-o jovial.

— Ai, enganou-se. Está assim um momento e ele aí começa a entristecer, a entristecer, a entristecer, que me corta o coração só em olhar para ele.

— Que quer, minha senhora? São coisas dos quinze anos. As recordações de vossa excelência não lhe dizem nada a este respeito?

— Sei ao que se quer referir: mas não vejo fundamentos... Vivemos aqui isolados...

— Por isso mesmo, minha senhora. Há coisas que o coração nos ensina, ainda quando longe dos objetos que lhas possam fazer lembrar. Quanto mais...

— E quer saber? — acrescentou em tom de mistério a senhora de Entre Arroios, inclinando-se ao meu ouvido — vou confiar-lhe um segredo, que a ninguém ainda disse e que espero a ninguém há de dizer também.

— Pode crê-lo, minha senhora.

— Tomás é poeta! — continuou ela, baixando ainda mais a voz e quase com uma expressão de terror.

— Ah! não vejo nisso grande mal; e até, para lhe falar a verdade, minha senhora, eu já o suspeitava.

— Sim? e pensa...

— Penso, minha senhora, que os poetas são almas privilegiadas, que Deus criou para entoar seus louvores, quer os cantos se lhe elevem nos templos como o incenso dos turíbulos, quer se derramem, como o perfume das flores, por toda a natureza.

— Mas aqui todos me dizem que os poetas são uns loucos, extravagantes, e que o seu fim nunca é bom!

— Vossa Excelência gosta de flores?

— Muito!

— E que lhe dizem delas também essas pessoas?

— Nem sequer falam em semelhante coisa, que eu saiba.

— Pois os poetas, minha senhora, são as flores da humanidade.

A senhora de Entre Arroios pareceu refletir nestas palavras, e respirou enfim como se se visse livre de um pesadelo.

— O senhor também é poeta?

Foi a pergunta que em seguida me fez.

— Não tenho essa fortuna, minha senhora.

— Mas entende de versos?

— Leio-os com prazer.

— Ora então espere.

E saiu da sala.

A Sra. D. Margarida apresentara-se-me agora sob um aspeto novo, em que não pude deixar de admirá-la.

Até ali vira nela encarnado o tipo, não direi ridículo, mas vulgar e prosaico da dona da casa, que eleva à altura de questões diplomáticas as pequeninas misérias de uma vida doméstica, deslizada das sete horas da manhã às dez da noite, sem nenhum acidente sério, que viesse alterar-lhe a monótona serenidade. Agora, porém, via-a transformada, purificada pelo amor de mãe, que lhe fazia vibrar o coração em harmonia com os mais delicados sentimentos, e dotava-lhe a inteligência de uma penetração superior à esfera acanhada das suas habituais ocupações e educação incompleta.

Como o sopro de vida que no seio da crisálida a faz, num momento dado, voar borboleta, o amor materno operava nesta criatura, que me parecera vulgar, uma metamorfose que às vezes a tornava num ser verdadeiramente superior.

A senhora de Entre Arroios voltou à sala, trazendo na mão um pequeno papel dobrado, que ao passar pelo doutor, o qual naquele momento começava a leitura de um segundo periódico, teve o cuidado de ocultar com uma espécie de temor quase infantil.

Chegando junto de mim passou-mo para as mãos, dizendo:

— Tomás esqueceu isso um dia de manhã sobre a mesa do quarto. Encontrei-o, quando o arrumava, li-o e não entendi bem. Como ele depois nunca pareceu dar pela falta, resolvi guardá-lo. Isto foi há perto de três meses, justamente pelo tempo, e é isto que me dá canseira, em que ele começou a ter aquelas dores de cabeça, que o perseguem tanto. Pois pode acreditar que de então para cá não passa uma noite sem que eu me ponha a ler este papel, e o caso é que nalguns pontos já pude entendê-lo melhor.

Eu desdobrei o papel e li as seguintes estâncias, escritas com uma letra rápida e como por uma mão convulsa, mas sem uma única emenda: adivinhava-se, ao vê-la, que fora escrita com rapidez num instante de inspiração:

Flor dos campos, flor singela,
Para quem guardas tuas cores?
Deus criou-te entre verdores
Só para os campos enfeitar?

Desconhecem-te a beleza
Outras flores que ta invejam.
E as brisas, se te bafejam,
Não o sabem revelar.

— Ora repare — disse, interrompendo-me a senhora de Entre Arroios — porque me parece que esta flor, de que aqui se fala, não é bem uma flor.

Sorri-me à observação, e continuei:

Há tanto que corro os prados
Por sobre viçosas relvas!
Tantas flores pelas selvas,
Tantas no monte encontrei!

Há tanto! e porque só hoje,
Alva cecém da campina,
Quis a minha ingrata sina
Que te encontrasse? Não sei.

— Vê, não lhe parece estranho? — ponderou de novo a senhora de Entre Arroios — mas leia, leia.

Não sei. O peito agitado
Os seus segredos não revela.
Se o ver-te foi minha estrela,
Se é sorte pensarem ti...

Pensarei, sim; tua imagem
Há de seguir-me incessante,
Em ti só, flor vicejante,
Pensarei, já que te vi.

Novo gesto de D. Margarida; eu continuei:

À noite nos arvoredos,
Onde formas vaporosas
Vagueiam misteriosas,
Irei procurar-te, a sós,
De manhã quando no outeiro
Surja a chama matutina
Já o teu nome...

Havia aqui um espaço deixado em branco e completava a estância: Repetirá minha voz.

— Tenho-me matado para ver se adivinho o nome da flor, que aí falta, mas não vejo.

Eu que, como o leitor deve supor, não encontrei grande dificuldade em completar o verso, disse, sorrindo-me para a senhora de Entre Arroios:

— Preciso seria que primeiro assentássemos se, como Vossa Excelência disse há pouco, esta flor é bem uma flor — e preparava-me para continuar a leitura, quando se abriu a porta de par em par, e deu passagem à figura rubicunda e esférica do abade, que saudou a assembleia com o seu habitual:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Amém — respondeu a Sra. D. Margarida, enquanto que, apertando-me o braço com vivacidade, tacitamente me instava a esconder o fatal papel revelador do delito poético de Tomás.

Este sentimento de delicado pudor, que inspirava àquela mãe o ocultar dos olhos dos seus prosaicos convivas os devaneios literários de uma imaginação de quinze anos, devaneios cujo sentido, quase enigmático, ela própria mais adivinhara do que compreendera, tinha o que quer que era de tocante, que me comoveu.

Apressei-me pois a esconder o papel, como se partilhasse também dos mesmos tenores, e respondi ao abade, que me havia dirigido não sei que pergunta, que por insignificante me esqueceu já.

O médico havia neste momento acabado de se pôr em dia com os acontecimentos europeus.

Depois de esvoaçar por todas as nações do mundo civilizado, aquele pensamento repousava agora, talvez, a ponderar nos destinos do Grão-Sultão e da Porta.

O abade odiava os jornais políticos, como odiava todas as coisas cujo uso não se remontasse ao antigo sistema governamental, de que era, e se confessava, aferrado partidário.

Entre ele e o médico, que militara no cerco do Porto, e fora ferido num ataque às linhas, ao saltar um muro para observar o espetáculo de mais de longe, ferida que provavelmente hoje lhe valerá uma pensão vitalícia, havia constantemente hostilidade súbita, que se traía nas mais pequenas coisas e que a menor faísca fazia rebentar em terríveis explosões, as quais só o ânimo pacificador de D. Margarida conseguia apaziguar.

Quid curas, doctor? — disse o abade, aproximando-se do antagonista com afabilidade felina.

O doutor, com os olhos no chão, as pernas cruzadas e os beiços fazendo tromba, parecia calcular mentalmente a área do pavimento da sala; às palavras do abade levantou a cabeça.

— Oh! reverendíssimo! pensava agora numa importante medida, que atualmente se discute nas câmaras: é relativa aos morgados.

Uma tosse seca e significativa foi a resposta do reverendo egresso.

— As câmaras! — continuou, acentuando a palavra com ênfase — era de uma vez um dragão de cem cabeças... Não sabe o que diz a fábula?

— Sei só o que diz a história — respondeu o doutor, já um pouco desabrido.

— Que muitas vezes é fabulosa — redarguiu o abade, saboreando com delícia uma pitada.


D. Margarida, pressentindo a tempestade iminente, acudiu a interrompê-los.

— Sabe, Sr. Fr. Domingos, que temos hoje uns ovos de recheio, que espero há de apreciar?

— Ovos de recheio! Deveras? Oh! minha rica senhora D. Margarida; semper honos, nomenque tuum, laudesque manebunt, com mais razão do que a honra, o nome e os louvores de Dido, que afinal de contas... não se lembrou de apresentar a Eneias ovos de recheio. Ah! ah! ah! — acrescentou, rindo-se ainda mais pela promessa dos ovos, do que pela graça que dissera.

— E hoje, meus senhores — continuou D. Margarida — havemos de acabar de decidir a respeito do Tomasinho. Aqui está o Sr. D... que nos ajudará com o seu conselho.

O médico que naquele momento limpava os óculos, colocou-os de novo sobre o nariz e olhando para mim diretamente, como ainda até aqui o não tinha feito, perguntou-me:

— O senhor é formado? Tem algum curso?

— Não, senhor — respondi imediatamente.

Pareceu-me que no seu conceito desci cinquenta por cento, depois da resposta... Voltou-me as costas sem cerimônia, e, com a familiaridade que lhe dava uma convivência de longos anos, tirou do bufete um par de ameixas secas e foi saboreá-las para a janela.
O abade encarregou-se de continuar a inquirição começada.

— Mas vossa senhoria — disse-me ele com voz melífica — tem seguido alguns estudos?

— Possuo leves rudimentos de alguns.

— Cultiva a literatura?

— Aprecio-a imperfeitamente.

— Quem são os seus autores favoritos?

— Encontro sempre grande dificuldade em responder a uma interpelação desse gênero. Não sei. Admiro tanto Balzac, como Walter Scott, como Alfred de Vigny; extasio-me com uma das mais arrojadas estrofes de Byron, de Vítor Hugo ou Musset, tanto como me extasio com um dos sentimentais poemas de Lamartine.

Respondi com a maior ingenuidade e vi a estupefação desenhar-se no rosto do abade a cada um dos nomes que ia pronunciando, para ele mais indecifráveis que os do festim de Baltasar. Quando cheguei ao último carregou o sobrolho e preparou-se para falar. Escutei.

— Que disse? Lamartine? Não é um jacobino? Parece-me que tenho ideia de...

Não pude responder com receio de perder a gravidade.

Vendo o meu silêncio, continuou:

— Sim, não tem que ver, é o próprio; um dos vermelhos, um pedreiro-livre, dos tais senhores da égalité! — e acentuou sarcasticamente a sílaba final. — Com que então... admira isso?

Aqui abriu a caixa de rapé, fungou uma abundante pitada, assoou-se e, depois de soltar um suspiro ab imo pectore, voltou-me as costas, murmurando não sei que verso de Virgílio ou de Horácio, que provavelmente não me lisonjearia muito se fosse ouvido.

Neste momento a Sra. D. Margarida anunciou a chegada do terceiro conviva. Era o Dr. Teófilo, personagem exótico, cujos olhos pardacentos, como que envergonhados de se verem tão feios, fugiam um do outro, confinando-se no ângulo mais externo de umas escalavradas órbitas.

O Dr. Teófilo, acalentando de há muito as mais fagueiras esperanças na mão em segunda mão da senhora de Entre Arroios — trocadilho da sua lavra, muito festejado pelo autor — cada dia inventava novas finezas, sem nunca atinar com aquela que esperava lhe havia de valer a entrega da praça e da guarnição.

Desta vez trazia pendente da mão esquerda uma trouxa que prometia grande surpresa para o dessert, ocasião escolhida sempre por ele para as suas ofertas amorosamente ambiciosas.

— Já era retardatário ao que veio — exclamou o doutor, ao encarar com os outros dois frequentadores dos jantares de Entre Arroios.

— A justiça é sempre a última a chegar — resmungou o médico, explorando de novo, e com igual sucesso, o bufete, que exercia sobre ele uma manifesta atração.

O Dr. Teófilo, imperturbável por índole e por cálculo profissional, respondeu amavelmente:

— Onde a ciência e a religião existem, não se faz esperar a justiça.

O doutor era uma espécie de mediador plástico, perdoem-me os filósofos se rebaixo o termo, entre os dois elementos heterogêneos do abade e do médico.

A Sra. D. Margarida, à imitação dos fabricantes de instrumentos de física, que entremeiam o ouro entre a prata e a platina, na construção de certas lâminas, para podê-las sujeitar à ação do calor, servia-se do doutor para que a soldadura do abade e do médico não rompesse também no calor da discussão.

Era a vez do advogado se dirigir a mim.

— E como vai o hóspede?

— Belíssimo! — disse o doutor, pronunciando esta palavra portuguesa como se tivesse necessidade de ser italiana.

D. Margarida, no ânimo de quem eu havia conquistado terreno, depois da nossa rápida conversa, encetou ao meu respeito uma apologia, que a modéstia me obriga a calar, e que teve um efeito exatamente contrário ao que talvez a boa senhora esperava. De fato o doutor, ao notar o fogo com que a D. Margarida fazia o meu panegírico, mostrou-se inquieto: olhou para mim de um modo particular, depois para ela, depois de novo para mim, e, como sem consciência do que fazia, aproximou-se da mesa e bebeu até à última gota um copo de água que encontrou à mão. Caso realmente extraordinário na sua vida, porquanto o doutor nunca pudera concordar com Píndaro a respeito das excelências da água.

Percebi que o ciúme aguilhoava o coração do erudito intérprete do Digesto.

Que popularidade! Em poucos minutos conseguira tornar-me antipático aos três comensais de D. Margarida!

Mas o meio-dia chegara enfim, hora consagrada desde tempos imemoriais em Entre Arroios à solenidade gastronômica a que se dá o nome de jantar.

No campo o meio-dia adivinha-se independente de relógios. Um silêncio mais profundo, um não sei que particular na luz do Sol, uma cor uniforme que parece tingir a paisagem, no-lo anunciam. Depois temos a voz do estômago, esta poderosa voz mais real do que a do sangue, a qual os romancistas contudo admitem como fato incontroverso. O estômago quer aos seus hábitos, como víscera burguesa que é; uma vez afeito a comer ao meio-dia, exaspera-se quando lhe tardam e agitando-se no abdômen dá a conhecer à economia as suas necessidades imperiosas.

Foi a razão pela qual o abade, escutando o apetite, este irmão mais novo da fome, jovial como criança, mas cujo humor se azeda com a idade, se aproximou da janela, contemplou os ares, e, voltando-se, soltou estas palavras, que vieram dar a razão dos bocejos continuados do médico, das suas frequentes visitas ao bufete e dos suspiros, melodiosamente melancólicos, do doutor:

— Isto deve ser meio-dia.

— Há de ser — disse D. Margarida — vou mandar tirar o jantar; Tomás provavelmente janta mais tarde.

Estas palavras foram acolhidas com geral satisfação.

E o jantar veio para a mesa; rompeu a agradável orquestra de garfos e facas, para muito boa gente mais harmoniosas do que as melhores partituras de Bellini ou Donizetti; e todos empreendemos, como aliados, uma batalha cujos destinos não podiam ser duvidosos.

O médico e o abade esqueceram por um pouco a recíproca antipatia; contudo esta afabilidade diminuía na razão direta do apetite. À sopa, eram quase amigos, ao cozido tolerantes apenas; mas quando chegou o prato de meio, já os primeiros assomos de hostilidade começavam a transparecer. Um frango guisado foi o pomo da discórdia.

Eis o caso:

A entrada triunfal da ave de Marte fora saudada com verdadeiro entusiasmo, e, depois de a admirar em globo, cada um em detalhe a admirava no prato.

— Excelente molho! — disse o abade, embebendo nele enormes fatias de pão-trigo, galicismo gastronômico que, seja dito de passagem, causa delícias a muitos severos puritanos.

— Eu sou partidário dos molhos — exclamou o doutor, seguindo o exemplo dado pelo vizinho.

O médico, para contradizer, disse-os anti-higiênicos; mas não ficava atrás dos antagonistas na gloriosa cruzada contra este inimigo dos estômagos humanos.

— A história dos molhos — acrescentava o abade, limpando ao guardanapo os beiços besuntados — anda a par da civilização. Os heróis de Homero desconheciam o verdadeiro molho; Virgílio fala-nos da carne assada no espeto, veribus que trementia figunt; scilicet viscera, mas nunca em molhos. Anacreonte...

— O abade podia muito bem empreender uma obra em que provasse...

— Os molhos? É a obra que estou empreendendo. Eh! eh! eh!

— Não; porém que a florescência dos estados prendia nos aperfeiçoamentos dos molhos — terminou o médico, sorrindo.

O doutor, que previu tempestade, tomou a palavra:

— Mas de fato, há aqui uma fusão de substâncias, que formam um todo delicioso.

— É o gosto do cravo, da pimenta, do açafrão, da salsa, do alho; tudo e não é nada disto — parafraseou o abade.

— E um verdadeiro sistema constitucional — disse o médico, que tomava posse do seu temperamento; e acrescentou: — O absolutismo, a predominância de um elemento único é sempre mau em molhos, como em política. — Grave imprudência!

O abade tremeu.

O doutor concedeu uma risada de aprovação à burlesca comparação do médico.

Isto acabou de transtornar o egresso:

— Bem me parecia, doutor, que vós outros avaliais as coisas em política pelas leis de gastronomia! Bom é tudo aquilo que satisfaz o estômago.

— Sem causar indigestão — respondeu o médico, com imperturbável sangue-frio.

 A cólera do abade subia ao seu auge. Estava fulo.

— O vosso sistema de molhos em política, doutor, tem só o inconveniente de encher o governo de nódoas.

O abade, superior à sua época, manejava já então o calembourg, em que muito pouco se falava ainda por cá.

Como ninguém se rira do gracejo, acompanhou-o ele de uma gargalhada fradesca, de grau superior à homérica.

D. Margarida, inquieta pela ausência prolongada de Tomás, não dava fé da tempestade, que se aglomerava sombria, nem pensava em intervenção.

Ensaiou-a o doutor e, enchendo os copos:

— Vá — exclamou — à saúde da fusão dos partidos e dos...

O abade não deixou de concluir.

— Também o doutor!

Isto fez-me lembrar o tu quoque de César.

O doutor sentou-se desanimado.

Frei Domingos perdera de todo a cabeça; os olhos injetados caíram sobre mim; não lhe escapei, inocente vítima que era!

— Falta o senhor lá, o que me disse que preferia aos poetas antigos as poesias de... Robespierre ou não sei que outro herói.

D. Margarida compreendeu enfim a necessidade de intervir e não lhe foi difícil.

— Abade, eis os ovos de recheio.

Foi água que caiu na fervura.

Tudo serenou e cedo os ovos foram, no rigor da palavra, absorvidos.

O resto do jantar correu sem outra novidade, a não ser a saudação geral que vitoriou a surpresa do doutor, a qual, desta vez, consistiu num a dúzia das decantadas frigideiras de Braga, a mais apetitosa concepção dos pasteleiros da augusta cidade Cesária.


CAPÍTULO 5

Acabado o jantar e dita a oração de graças, a senhora de Entre Arroios, depois de nos dar as boas-tardes do estilo, chamou a atenção dos circunstantes, pedindo que se passasse a discutir o futuro de Tomasinho.

O médico, depois de fazer uma última provisão de ameixas secas, que ele sustentava serem estomacais, deu o assentimento; imitou-o, em ambas as coisas, o abade, apesar da mútua animadversão, e contentando-se o doutor de se prover de palitos, passamos todos para o salão contíguo, que era o lugar de honra da casa e escolhido pela Sra. D. Margarida de propósito para aumentar a solenidade do ato.

A senhora de Entre Arroios tomou a cadeira da presidência; todos se sentaram, só eu, que, preocupado pela súbita doença do pai de Paulina, tinha pouca vontade de entrar na discussão, me conservei um pouco de lado, sem que ninguém se lembrasse de me chamar, nem a senhora de Entre Arroios, a qual provavelmente me quis facilitar a oportunidade de terminar a leitura da poesia de Tomás.

O aposento em que nos achávamos era uma vasta sala retangular, forrada por um papel de cor escura que, absorvendo os raios luminosos, lhe dava um aspeto sombrio e triste, apesar das duas amplas janelas de peitoril, que abriam sobre o pomar; por cima do fogão de lousa artisticamente cinzelado, pendia um espelho de moldura dourada, mas já em parte enegrecida pelo tempo; toda a mobília era pesada e antiga; o tapete que forrava o pavimento revelava longos anos de serviço nas cores, meio desbotadas e no fio da urdidura já nalgumas partes descoberto. Numa das paredes laterais, fronteira à porta por onde entráramos, notava-se, em caixilho cuidadosamente conservado, um retrato a óleo de grandeza natural e de correto desenho.

Representava um velho de nobre fisionomia, vestido com a farda da marinha portuguesa e em cujo peito se divisava, distintivo de lealdade e valor, uma pequena fita azul em fivela de prata.

Era o retrato do pai de Tomás, velho militar, que havia combatido sob o comando de Napier, e voltara à terra onde nascera coberto de anos e de cicatrizes honrosas, para procurar no seio da família uma morte sossegada.

A pintura era de um discípulo de Vieira portuense, amigo íntimo do velho marinheiro e o seu hóspede durante uma viagem que fizera pelo Minho. Não quisera o artista perder a ocasião de reproduzir com o pincel um desses tipos de soldado do mar, que de dia para dia mais se vão perdendo na nossa terra, outrora berço e escola de navegadores.

D. Margarida tinha para com este retrato uma veneração quase supersticiosa. Amara extremamente o marido; porém, como de ordinário acontece entre caracteres de força desigual, este amor fora nela misturado com um sentimento de respeito, que ainda conservava pela memória dele.

Aquele olhar grave e severo, tão perfeitamente reproduzido na tela, parecia ainda exercer sobre a senhora de Entre Arroios a mesma influência que exercera em vida.

Se, por acaso e involuntariamente, fazia chorar o pequeno Tomás, já não ousava erguer os olhos na presença deste retrato, como se temesse encontrar-lhe mais severidade na expressão: mas se, pelo contrário, alguma coisa acontecia que fizesse sorrir o filho — se as carícias lhe estancavam as lágrimas, olhava-o, esperando quase vê-lo sorrir também. De pequeno costumara Tomás a vir todas as manhãs saudar a imagem do pai; e dir-se-ia estranhar que este lhe não retribuísse a saudação em bênçãos.

Neste momento a mãe carinhosa parecia invocar a memória daquele que lhe fora tão caro para que velasse pelo interesse do filho; na presença deste retrato, sob os olhares melancólicos daquela nobre figura, que se dissera contemplá-la ainda com amor, a pobre senhora achava-se mais forte; era este o templo onde a sacerdotisa recebia a inspiração que lhe iluminava o espírito: fora deste recinto a senhora de Entre Arroios sentia-se apeada do pedestal, e despojada de não sei que auréola que a circundava ali.

Desde que nos viu todos dispostos a escutá-la, disse-nos que enfim se achava decidida, ainda que com o coração despedaçado, a cumprir a vontade do marido, o qual sempre revelara desejos de que Tomás seguisse os estudos; que julgava ser a idade a que chegara o filho aquela em que convinha pensar na realização deste projeto, e que por isso pedia aos seus amigos, os quais folgava ver ali reunidos, que assentassem por uma vez qual das carreiras conviria ao Tomasinho e quando se deveria marcar o dia da partida. E, ao dizer isto, a voz trêmula e lacrimosa da pobre mãe revelava uma profunda comoção.

Houve silêncio na sala.

— Então? — continuou ela, conseguindo dominar o sentimento — que decidem? O que deve estudar o Tomasinho?

— A medicina.

— A jurisprudência.

— A teologia.

Bradaram a um tempo o médico, o advogado e o abade.

— Jesus, Maria! mas... concordem numa coisa. Ele não há de estudar tudo isso. A sua opinião, dada por essa forma, de nada me vale. Decidam-se por uma.

— Pela jurisprudência.

— Pela medicina.

— Pela teologia.

Repetia o coro.

— Valha-me Deus — dizia a senhora de Entre Arroios, toda aflita.

O advogado continuou:

— A jurisprudência, Sra. D. Margarida, é o sustentáculo da sociedade!

— A medicina, minha senhora — replicou o médico — é a âncora da humanidade!

— A teologia é o esteio da religião! — disse pela sua vez o abade, em tom de oráculo.

— E disso tudo que é que se tira? — exclamou a mãe desesperada.

— O que se tira? — balbuciou o abade.

— Pois que se há de tirar? — redarguiu o médico.

E ambos pareciam repetir silenciosamente a si mesmos a pergunta, sem atinarem com a resposta desejada.

— Tira-se, minha senhora — respondeu enfim o advogado, que era homem para estes apertos — que a jurisprudência é a mais nobre das profissões, a ciência mais útil, o mais valioso conhecimento. O jurisconsulto é um benemérito da pátria e da humanidade, cuja o devera glorificar e render-lhe preito; — quem mais útil do que ele, já, quando instituindo leis que devam regular os povos, já, quando...

Eu estava resolvido a conservar-me mudo espectador deste conciliábulo, que tinha muito de soberanamente ridículo; porém a perspectiva das legiões de já quando que antevira no discurso do orador, e um olhar expressivo da senhora de Entre Arroios fez-me mudar de resolução, e decidi-me a intervir.

— Dá-me licença?

O doutor parou, visivelmente contrariado.

O humor dos outros membros do conselho não me foi, ao que pude julgar, mais favorável; para eles era um intruso e atrevido.

— Não sabemos se... foram as palavras que acolheram a minha intervenção, ao passo que, olhando para D. Margarida, os três pareciam emprazá-la tacitamente a conter a minha ousadia. A senhora de Entre Arroios mostrou porém desta vez uma firmeza nela pouco vulgar e que espantou os eloquentes oradores além de toda a medida.

— O Sr. D... — disse ela — é um homem de bem e digno de toda a minha confiança. Julgo que a opinião dele merece ser escutada, visto que há tanto tempo os senhores discutem esta matéria sem que ainda fosse possível aproximá-los de um acordo, que desejo, e a que, de qualquer maneira que seja, hoje é preciso chegar. Fale, Sr. D... a qual das opiniões se inclina?

— A nenhuma, minha senhora.

Sensação na assembleia: eu não cedi a palavra. — E peço a vossa excelência — continuei — que de maneira nenhuma suponha que intervenho com o intuito de me pronunciar a respeito de uma carreira que possa convir a Tomasinho. Conhecendo-lhe as inclinações, pela natural penetração de mãe, melhor do que nós o poderá vossa excelência decidir. Mas nem eu penso que se trate aqui de uma criança incapaz de julgar por si das próprias conveniências e aptidões. O filho de vossa excelência tem quase dezesseis anos, e é ainda uma inteligência adulta; parece-me por isso extravagante que se esteja agora aqui talhando um futuro, talvez já concebido bem diferente pela principal pessoa interessada. Eu voto que, em vez de nos consultar, consulte vossa excelência diretamente a Tomasinho.

Estas palavras levantaram uma celeuma tal na assembleia, que me não foi possível ouvir a resposta de D. Margarida.

— Que extravagância!

— Que singular opinião!

— Pois um menor...

— O senhor é tão criança como ele.

— Onde se ouviu semelhante coisa?

Quae te dementia cepit!

Esta era do abade.

— São doutrinas perigosas.

— Subversivas.

— Antissociais.

— Republicanas.

Outra do reverendo.

— Mostra ignorância do código.

— Uma criança senhora sua!

E a vozearia era já tal, que fazia estremecer a sala.

Em vão tentava defender-me, em vão D. Margarida se esforçava a pedir silêncio; a irritação fazia bramir os três argumentadores, ligados excepcionalmente contra o inimigo comum, que, por graça especial, tinham encarnado na minha pessoa.

Durava e prometia perpetuar-se esta algazarra infernal, quando a porta do salão se abriu violentamente e Tomás apareceu no limiar, fazendo de súbito, e como por encanto, cessar todo o ruído.

A cena era de um efeito teatral.

Tomás, mais que nunca excessivamente pálido, com os lábios trêmulos, e os olhos como pisados de chorar, parou por algum tempo à entrada da sala e correu com a vista os circunstantes, que todos permaneceram mudos debaixo do olhar daquele que momentos antes tratavam de criança. Naquela fisionomia enérgica tinham pela primeira vez reconhecido o homem.

A expressão do pai acentuava-se profundamente nas feições do filho. A senhora de Entre Arroios, vendo-o, juntou as mãos e elevou os olhos ao retrato do marido. Dir-se-ia que acreditava num a aparição.

Tomás entrou para a sala.

— Sei do que se trata; — disse com voz alterada — agradeço o incômodo que têm tomado pela minha causa, meus senhores; porém dispenso tal intervenção.

E voltando-se para a mãe:

— Minha mãe, o meu destino está nas suas mãos. A mãe sabe que tudo quanto de si me vier eu o receberei, como costumo receber as suas bênçãos, de joelhos e com gratidão. — E ajoelhando diante dela beijou-lhe afetuosamente a mão.

As lágrimas saltavam pelas faces da pobre senhora.

Tomás ergueu-se e, enxugando os olhos também, continuou:

— Mas não falemos por agora nisto. De uma coisa mais grave lhe vinha falar, mãe.

Eu quis deixar o quarto e consegui que os outros fingissem imitar-me.

— Não, não, fiquem — exclamou Tomás, detendo-nos com um gesto — o que eu tenho a dizer a minha mãe não me envergonha; antes estimo tê-los por testemunhas.

— Jesus, meu filho! que tens tu, que me assustas?

— Não é nada — disse Tomás cada vez mais dominado por uma comoção desconhecida; e depois continuou: — É que o seu doente, doutor, acaba de me expirar nos braços. Paulina está órfã.

Passado um momento de silenciosa hesitação, acrescentou com voz lenta e firme:

— E Paulina é desde hoje minha desposada.


CAPÍTULO 6

Não sei de coisa alguma que pudesse determinar nesta ocasião um espanto igual ao que produziram as palavras de Tomás. A mais viva surpresa se desenhava no rosto dos circunstantes. Eu mesmo, que tinha motivos para menos do que os outros me maravilhar, não pude reprimir um gesto de admiração, ao ouvir aquelas poucas palavras pronunciadas com voz tão segura, que bem denunciava a resolução inabalável que as ditara.

A senhora de Entre Arroios olhava para o filho, como se ainda lhe parecesse um sonho o que tinha ouvido, e desejasse assegurar-se da realidade.

— E uma dívida sagrada, minha mãe — continuou Tomás — contraí-a junto do leito de um moribundo, e sobre a cabeça de uma órfã; contraí-a invocando o nome daquele que parece dacolá olhar-me e compreender-me — e apontava para o retrato do pai; depois continuou mais baixo: — Contraí-a inspirado pelo amor.

Estas últimas palavras explicaram melhor a D. Margarida o acontecido; mas a revelação assustava-a, sem talvez bem saber porquê. A pobre senhora escondeu a cabeça entre as mãos, murmurando com voz sumida:

— Jesus, meu Deus! — E assim se conservou alguns minutos.

Tomás não despregava os olhos da mãe, como se das primeiras palavras que ela pronunciasse lhe dependesse a vida.

O resto das personagens desta cena, entre as quais me incluo também, não se sentia à vontade.

Tudo se devia decidir entre a mãe e o filho. Há nas famílias acontecimentos em que toda a intervenção de um estranho é inconveniente.

Nenhum de nós ousava falar e conservávamos a imobilidade de um quadro vivo.

No fim de alguns minutos, D. Margarida ergueu a cabeça. Impressionou-me o ar de nobreza e de resolução que se lhe lia no gesto. Era uma nova metamorfose desta mulher singular.

— E promessa sagrada, meu filho — disse ela — há de cumprir-se.

E fitou os olhos no retrato do marido, como se daí lhe viera a inspiração.

— Ó minha mãe! — exclamou Tomás, ajoelhando diante dela.

D. Margarida susteve-o com a mão.

— Não sejamos todos crianças, Tomás. Escuta, que não consinto sem condições.

— Não preciso sabê-las para me sujeitar a elas.

— O Sr. D... — continuou D. Margarida, olhando para mim — disse-me ter de partir amanhã já para o Porto; hás de acompanhá-lo; e daí tu próprio escolherás a carreira que mais te agradar seguir.

— Amanhã? já!

— É preciso. A vontade do teu pai é tão sagrada como a tua promessa, filho. É tempo de a cumprir: e há mais que o devera ter feito.

— Seja... mas...

Tomás hesitou ao continuar; a mãe porém adivinhou o resto; atraiu-o a si, estreitou-o nos braços, e, beijando-lhe a cara com o maior carinho, disse-lhe a meia voz:

— Descansa; ela será minha filha.

Estas palavras fizeram rebentar as lágrimas a Tomás.

— Oh! obrigado; o coração dizia-me que a mãe me não havia de querer mal por isto.

— Querer-te mal, filho! — E depois, afastando-o:

— Não é verdade, Sr. D... que nos fará o obséquio de acompanhar Tomás?

— Tudo em que a puder servir, minha senhora.

E de novo recaímos em silêncio.

Os convidados apressaram-se em abandonar esta casa, onde respiravam uma atmosfera de constrangimento.

À noite todos na aldeia sabiam do ocorrido, e cada qual comentava ao seu modo a criancice de Tomás, como eles diziam, e a leviandade da mãe. Outros viam na resolução de D. Margarida, em mandar viajar o filho, um meio de desfazer as dificuldades; porque era impossível que esta paixão despropositada, pensavam eles, resistisse a uma ausência de anos.

De mim não sei que disseram, mas é de crer, atendendo a que os propaladores dos boatos eram os três meus afeiçoados, que não fosse muito cristãmente tratado.

Ficando sós, a mãe, o filho e eu, não rompemos o silêncio, que se manteve durante horas; todos talvez pensando no ocorrido, e todos à porfia evitando a menor alusão que pudesse recordá-lo.

Tomás despediu-se às nove horas da mãe, que o beijou com o afeto costumado. Dispunha-me também a deixar a sala, quando um sinal da senhora de Entre Arroios me obrigou a ficar.

Tudo revelava nela uma serenidade de espírito que me fazia pensar. Depois de assegurar-se de que ninguém escutava, D. Margarida sentou-se junto de mim e perguntou-me:

— Então que lhe parece tudo isto?

— Para lhe falar a verdade, minha senhora, conquanto receie que este acontecimento seja talvez funesto ao futuro do seu filho, não posso deixar de admirar-lhe a nobreza de caráter.

— Está como eu. Pode crê-lo? Isto que a outra mãe traria a desesperação talvez, quase que me dá júbilo. Contudo reconheço que é um passo grave, e preciso impedir que tenha graves consequências.

— Eu julgo ter compreendido os projetos de vossa excelência.

— Talvez não — disse ela, quase sorrindo.

— Uma ausência demorada amortece certos sentimentos, e faz esquecer promessas que num momento de exaltação...

— Não o espero, e se por acaso meu filho se esquecesse, cumpriria a mim lembrar-lho; e eu lho lembraria, acredite. Se foi loucura, tanto pior, que tem de ser escravo dela.

— Mas Paulina mesma, talvez...

— Esquecer Tomás!

Havia tanta candura neste brado de vaidade maternal, que não tive coração para continuar a exprimir-lhe as minhas dúvidas.

— Não, não; o meu desígnio é outro — continuou ela — mas por enquanto é secreto. O que lhe peço é que use de toda a sua influência com Tomás para o decidir a partir para o estrangeiro. Que vá estudar a França, à Inglaterra, à Alemanha, onde quiser e o que quiser, mas que saia do reino e se demore por fora. Quatro, cinco a seis anos. E essencial.

— Não posso compreender com que vistas...

— E o meu segredo — disse ela, sorrindo. — Promete?

— Tudo quanto desejar, minha senhora. Reconheço em vossa excelência uma superioridade...

— Nada de lisonjas, se não quer perder a minha confiança.

— vossa excelência deve ter notado que é a primeira vez que lhe falo assim; é porque há pouco ainda comecei a compreendê-la e a admirá-la.

— Bem; façamos aliança. Mas, antes, quero perguntar-lhe uma coisa: que me diga o que lhe parece mais para recear nesta resolução de Tomás?

— Receio que aquela paixão seja nele uma das muitas ilusões de uma idade tão tenra como a sua; e que cedo...

A senhora de Entre Arroios interrompeu-me com um gesto de impaciência e negação.

— Cedo não; tarde, tarde, que é pior! Olhe, aí vai o que eu penso: Tomás ama sinceramente Paulina, acredito-o. Esta paixão, longe dela, aumentará talvez. As cenas que a santificaram, numa alma como a dele, deixam vestígios que o tempo não desfaz. O meu filho, verá, há de voltar-nos tanto ou mais amante do que partiu. Mas depois? Paulina pode satisfazer-lhe ao coração, e enquanto o coração reinar, Tomás será feliz. Porém, quando chegar a vez da inteligência? e olhe que há de chegar também; como poderá a pobre rapariga bastar àquela cabeça, que eu já suspeitava, e agora vejo claramente ser toda de fogo? Creia-me, Sr. D... a infelicidade destas ligações desiguais está toda aqui.

— Estou inteiramente de acordo, minha senhora, e admiro tanta penetração.

E dizia a verdade. Esta mulher, como as aparições de certos contos de fadas, de momento para momento assumia aos meus olhos maiores proporções. Ela, que na véspera me parecera vulgar no meio de quase ridículas tribulações da vida doméstica, que já momentos antes admirara quando, incitada pelo amor maternal, se esforçava em penetrar o sentido das expressões vagas e figuradas de uma poesia amorosa; agora surpreendia-me pela profundeza de vistas com que antevia no futuro os sentimentos do filho; a mãe, cujos dotes vinham todos do coração, previra que a inteligência não se satisfaz só com sentimentos e, na desigualdade de educação de Tomás e Paulina, encontrava a causa da futura infelicidade de ambos.

E que tentava ela para evitar o mal? E o que não pude saber então, baldados os esforços que fiz para o adivinhar.

Depois de mais algumas palavras, trocadas entre ambos, a senhora de Entre Arroios levantou-se, e, estendendo-me a mão afetuosamente, disse com um sorriso:

— Vá dormir, Sr. D... que eu vou pensar no futuro do meu filho.

Não me foi muito fácil conciliar o sono. O ânimo, sobressaltado pelas cenas que tinha presenciado, mal me permitia o repouso.

No dia seguinte levantei-me cedo. Desci à sala, onde já encontrei D. Margarida fazendo preparativos para a partida de Tomás.

Exigências, a que não podia faltar, me obrigavam de fato a partir naquela manhã para o Porto, bem mais depressa do que contava, e, direi até, do que desejava.

A senhora de Entre Arroios mostrava-se preocupada, mas não aflita. A despeito das leves rugas que lhe sulcavam a cara, entrevia-se-lhe um fundo de serenidade na fisionomia, que me fez julgar que a noite fora fiel desta vez à sua fama de boa conselheira. Ao ver-me, D. Margarida exclamou:

— Que pressa de nos deixar Sr. D... são seis horas e já erguido!

— E porque não há de antes dizer vossa excelência que foi para gozar por mais tempo da sua companhia que assim madruguei?

— Por que é tão lisonjeiro que me custa a acreditar. Passou bem a noite?

— Otimamente. Vossa excelência é que, se me não engano, dormiu pouco.

— Não dormi nada.

— E aproveitou ao menos a vigília?

— Espero que sim.

Tomás juntou-se conosco. As faces abatidas, os olhos vermelhos, as feições decompostas, denunciavam que ele também não havia dormido.

À vista dos preparativos da partida não pôde reprimir um suspiro. Depois de cumprimentar a mãe, dirigiu-se à janela para ocultar as lágrimas que lhe vieram aos olhos.

D. Margarida saiu igualmente comovida.

Eu reuni-me a ele.

— Deve-lhe ser custosa esta separação?

Abanou a cabeça afirmativamente. A comoção impedia-lhe o falar.

— São alguns anos de provação — continuei — para depois apreciar melhor a ventura.

— Alguns anos! Como diz isso! E que hei de eu fazer durante esse tempo?

— O estudo o distrairá.

— O estudo! Pois julga que, assim como estou, poderei entregar-me a algum estudo sério?

— E por que não?

— Se soubesse... Pano com o desespero no coração.

— Não diga desespero; pois não tem a esperança no futuro?

A senhora D. Margarida terminara enfim os preparativos de jornada, sem que a menor omissão se pudesse notar à sua previdência maternal. E quanta resignação lhe não fora precisa!

Passamos à sala do almoço e cada vez a tristeza a tornar-se maior! Fazia lembrar um destes dias de Inverno em que a escuridade cresce, cresce cada vez mais, até rebentar a chuva.

A mãe e o filho surpreendiam-se por vezes, olhando um para o outro, com os olhos arrasados de lágrimas.

Enfim o momento chegou.

Tive eu de anunciá-lo; de outro modo quando chegaria?

— Vamos? vi-me forçado a dizer.

Um olhar, dolorosamente expressivo, trocado entre os dois, seguiu-se a esta palavra.

— Adeus, meu filho! — disse a senhora de Entre Arroios, desfalecendo-lhe a voz.

O resto imaginai-o como a experiência vo-lo terá mostrado, se não sois privilegiados do destino.

Um abraço prolongado, em que mãe e filho se cobriram de lágrimas e beijos, anunciou aquela primeira separação.

— Então, então, Tomás, mostra-te homem — dizia a senhora de Entre Arroios, sufocada em choro — isto é uma criancice. Dentro em poucos anos voltarás e... hás de ser feliz, prometo-te.

— Adeus, mãe, adeus. Pense em mim e lembre-se de... de Paulina.

— E qual é a mãe que se não lembra dos seus filhos?

Tomás desprendeu-se-lhe afinal dos braços e dirigiu-se comigo, que não partia também sem saudades, para a próxima estação das diligências do Porto.

Da casa de Entre Arroios avistava-se, numa grande extensão, o caminho que seguíamos ambos, e assim, a cada passo, parávamos na carreira para que Tomás lançasse mais uma vez um olhar de despedida àquelas janelas, com as quais tantas recordações deixava, e donde a mãe lhe enviava o último adeus.

Perdemo-las enfim de vista e por largo tempo caminhamos silenciosamente ao lado um do outro.

O caminho que seguíamos, estreito e orlado de silvas, conduziu-nos a um pequeno largo, coberto de relva, no centro do qual se elevava um cruzeiro de pedra. Frondosos carvalhos assombravam este lugar solitário e imprimiam-lhe um aspeto verdadeiramente pitoresco. Quando nos aproximávamos, pareceu-me divisar no pedestal da cruz um vulto, que a meia obscuridade, que se conservava ali, me não deixou reconhecer logo. Tomás, com os olhos abaixados, não atentara nele. Mais perto percebi esta forma mover-se, atraída, ao que parecia, pelo ruído dos nossos passos; ao ver-nos, ergueu-se subitamente e reconheci-a.

Era Paulina.

Se na véspera já admirara a figura graciosa da pequena leiteira, tingida com o rubor da modéstia, mais me surpreendeu desta vez a sua fisionomia, verdadeiramente bela, desmaiada pela palidez do sofrimento. Os cabelos soltos, as mãos juntas, nas faces vestígios de lágrimas recentes, assim naquele lugar e aos pés da cruz, recordava uma dessas virgens cuja fé e martírios valeram tantas páginas de verdadeira poesia aos anais da religião cristã.

Tomás, como se escutasse uma voz interior, elevou nesse momento a cabeça e contemplou com amor a aparição.

Paulina, rápida como o relâmpago, correu para ele e cingiu-o com os braços, cuja alvura, pouco vulgar no campo, mais realçava ainda sobre o escuro dos vestidos de luto.
A minha presença não reprimiu este acesso de violenta paixão.

— Sei tudo! — disse ela, sufocada pelo choro. — Sei tudo, Tomás! — Olha, até aqui amei-te com um amor de criança, mas agora — acrescentou, desviando-lhe da cara os cabelos com movimentos quase febris — agora, hei de amar-te como uma mulher, adorar-te... como escrava.

E, unindo os seus lábios aos dele, confirmou esta singela confissão por um ardente beijo.

— Paulina! — disse Tomás quase em delírio.

— Mas para que partes? — continuou Paulina em tom de voz repassada de meiga exprobração.

— Era vontade do meu pai.

— E eu, Tomás, que farei eu só aqui? — disse a pobre rapariga, afastando brandamente de si a cara do amante e olhando-o com expressão de saudade inquieta.

— Então, Paulina, queres tirar-me o ânimo de...

Estas palavras operaram súbita transformação em Paulina. Estremeceu, como se acordasse de um sonho importuno, ergueu a cabeça, enxugou os olhos com as mãos, e afastando para trás as negras tranças, disse com um sorriso forçado e a voz abafada e trêmula:

— Não, parte, pane! — E, como receando comover-se de novo, desprendeu-se por gracioso movimento dos braços de Tomás, e desapareceu.

— Paulina! — exclamou Tomás, como tentando segui-la.

— Deixe-a partir! — disse-lhe eu — não tornará menos amarga a despedida, prolongando-a.

— Oh! meu amigo — murmurou Tomás, apertando-me a mão.

Era a primeira vez que me concedera este título que nunca depois me negou.

Dentro de alguns minutos partíamos silenciosos para o Porto, sentados um ao lado do outro num dos lugares da diligência da manhã.


CAPÍTULO 7

Tomás demorou-se pouco tempo no Porto. Indiferente a tudo, desde a sua partida de Entre Arroios, facilmente se resolveu a embarcar para Paris, quando, cumprindo a recomendação de D. Margarida, o animei a seguir ali um curso qualquer, demorando-se com esse fim os anos que lhe fossem necessários. Dentro de um mês, acompanhei-o a bordo de um navio que partia para o Havre de Grace.

Tomás parecia deixar em Portugal as esperanças de felicidade. Ao despedir-se de mim, o seu desalento era completo.

Escrevi à senhora de Entre Arroios a dar-lhe pane do acontecido, e relatando-lhe até à menor particularidade a partida do filho.

Recebi em resposta uma carta, na qual ela, depois de me agradecer exageradamente este pouco que eu tinha feito por Tomás, me dizia que, achando a casa de Entre Arroios insuportável, depois da partida do filho, resolvera fazer uma excursão durante a ausência dele, para iludir saudades. Não sabia ainda para onde iria, e que tempo demoraria na viagem, e por isso me avisava que não lhe escrevesse, antes de primeiro receber carta sua.

Esta carta nunca chegou. Negócios particulares me impediram de voltar a Entre Arroios, e as minhas próprias canseiras, reunidas à ação do tempo, foram combatendo em mim cada vez mais a memória das cenas que, no curto espaço de três dias, eu presenciara, e que me tinham feito participar dos sentimentos de uma família pouco antes para mim desconhecida.

De Tomás nada mais pude saber do que da sua mãe.

Depois de uma carta, ainda repassada de saudades, em que me noticiava sua chegada a Paris e a resolução que tomara de seguir o curso na faculdade de medicina, enchendo o resto a falar-me de Paulina, não soube mais notícias dele.

Alguns portugueses chegados de Paris, a quem interroguei, não o tinham visto, ou davam-me ao seu respeito informações inexatas.

Assim se passaram seis anos.

Um dia, chegando a casa, recebi uma carta que me viera pelo paquete; trazia o carimbo de Saint-Nazaire.

Abri-a, ignorando quem me escrevia, tão remota, confesso-o, me andava já a ideia do pequeno Tomás, em quem me habituara quase a não pensar.

Contudo, a carta era dele, e concebida assim:

Meu caro D...

Com razão me deve supor uma criatura bem desagradecida.

Nem eu sei como justificar-me do conceito. Contudo não me chame volúvel, não pense que os fulgores de Paris puderam ofuscar na minha memória as cenas da pátria, e principalmente as últimas, que num momento decidiram do futuro da minha vida inteira. Não julgue, se não quer ser injusto também. Ainda a saudade me fala delas, e a esperança me faz palpitar o coração, mostrando-me próxima a época de ver realizados aqueles meus antigos sonhos — sonhos que nunca me abandonaram, felizmente. Não lhe tenho escrito, não me pergunte porquê, que mal lho poderei dizer. Não me absolverá sem penitência? A esperança faz parte da bagagem do pecador; eu não desanimo.

Estou em Saint-Nazaire. Não me foi possível partir, como desejava, neste paquete, o que espero fazer para o seguinte.

Conto, pois, abraçá-lo dentro em pouco, convidando-o desde já a acompanhar-me a Entre Arroios, para assistir à inauguração da minha felicidade.

Paulina espera-me. A minha mãe tem-me escrito e informado, mês por mês, do viver de toda a minha gente em Entre Arroios. Os dias continuam a correr-lhe ali naquela santa placidez em que eu fui criado e onde só vejo a minha felicidade, se nisso não consiste a felicidade de todos.

Adeus; breve conversaremos mais.

P. S. — Que cabeça a minha! Ia-me esquecendo participar-lhe que me formei em Medicina. Satisfiz a vontade do meu pai. Pude relacionar-me com algumas das principais capacidades literárias e científicas de Paris, e acho-me um pouco pior de uma impertinente doença que daí trouxe — a poesia. Adeus, adeus; hei de falar-lhe com mais vagar das minhas viagens pela França, e de outras ainda mais do meu gosto, por um mundo menos real.

Seu afeiçoado,
Tomás de Avelar.

 Esta carta trouxe-me novamente à recordação todas as cenas passadas em Entre Arroios.

Seis anos tinham decorrido, os seis anos que D. Margarida marcara à ausência de Tomás. O que se passara durante esse tempo e o que se ia passar agora?

Tomás via eu, com verdadeiro prazer, que se não esquecera em Paris da sua desposada de Entre Arroios.

Mas o que sobretudo me maravilhou foi o ter D. Margarida escrito ao filho por todos os paquetes, descrevendo-lhe a vida de Entre Arroios, a qual correra, segundo me dizia Tomás, com a placidez costumada.

Logo não havia ela, como me tinha dito, abandonado a aldeia. Por que não me escreveria então?

Por mais que pensasse, não me foi possível encontrar explicação satisfatória, e não pensei mais nisso.

Passado um mês, entrava Tomás no meu quarto e apertava-me nos braços com verdadeira alegria.

Algumas alterações sofrera nele a fisionomia durante os anos que vivêramos separados. O rosto perdera a expressão infantil que tinha ainda em Entre Arroios, quando pela primeira vez o conheci; era agora uma face mais varonil, mas tão nobre e inteligente como dantes.

— Então, mon cher docteur — disse-lhe eu — ei-lo de volta? e sem que toda a sua ciência, ao que parece, tenha conseguido curá-lo de uma doença de coração com que partiu.

— Venho pior, muito pior respondeu-me sorrindo.

— Deveras? Pois confesso que receei nos aparecesse curado. Receio bem pouco lisonjeiro para o meu caráter. Isto não é questão de caráter. São mistérios do coração que eu desculpo e respeito quase.

— Seja o que quiser. Agora vamos a saber: está disposto a acompanhar-me a Entre Arroios?

— Da melhor vontade.

— Partimos amanhã?

— Hoje que queira.

— Seja hoje.

Passamos o dia juntos. Contou-me a sua vida em Paris, vida exemplar para um rapaz daquela idade; seus felizes sucessos na Escola de Medicina, onde fora reputado entre os melhores, e as suas pequenas fortunas literárias, como afrancesadamente ele dizia.

Tomás voltava com uma instrução sólida, uma superioridade de vistas, um gosto apurado, que me fizeram lembrar dos receios da senhora de Entre Arroios.

Como poderia, de fato, esta inteligência satisfazer-se com o espírito inculto de uma rapariga aldeã, depois de saciados os primeiros ardores da paixão?

O plano de D. Margarida piorara a situação, ao que me parecia, exagerando a desigualdade.

Dei a entender isto mesmo a Tomás, ele sorriu:

— Sossegue — respondeu-me vi lá por fora muitas mulheres a quem o espírito havia estragado, alienando-as aos gozos de família para me inquietar por tão pouco.

Conquanto reconhecesse algum fundo de verdade nestas palavras, as minhas apreensões não se desvaneceram totalmente.

Estivemos à noite no teatro, onde pude admirar ainda melhor a extensão e variedade dos conhecimentos artísticos de Tomás.

Saindo do teatro, introduzimo-nos num coupé e por aquele mesmo caminho que, seis anos antes, seguíramos em direção oposta e com bem diversos sentimentos, dirigimo-nos para Entre Arroios.

Ao romper da manhã avistávamos os telhados das primeiras casas da aldeia.

O teto elevado de Entre Arroios, com a sua alta claraboia, não tardou também a despontar no horizonte.

O olhar de Tomás brilhava neste momento, o sangue afluía-lhe às faces, palpitava-lhe o coração com violência.

— Conheço-vos! conheço-vos dizia ele árvores da minha infância! Conheço-te, berço dos meus primeiros anos e que espero serás o descanso dos últimos. Nenhum monumento, nenhum espetáculo grandioso das capitais que percorri me fez esquecer de vós, testemunhas da minha ventura e dos meus primeiros sonhos de amor. Oh! meu amigo! continuou apertando-me a mão — sou verdadeiramente feliz. Parece-me que deixei aqui a minha vida, e que a adquiro de novo ao respirar estes ares conhecidos, estes perfumes férteis em memórias de outros tempos.

E emudeceu, caindo em lânguida contemplação.

Estas cenas também me recordavam o passado; e o passado mostra-se-nos sempre através de um véu de saudades.

A aldeia, como todas as aldeias, sofrera poucas mudanças no espaço de seis anos.

As mesmas árvores, as mesmas sebes, os mesmos ribeiros e pontes, tudo fazia reviver em Tomás a memória dos primeiros anos.

Apeamo-nos para melhor gozar destas cenas, que tanto nos impressionavam.

Ao chegarmos ao lugar onde Paulina ultimamente nos aparecera, Tomás parou a contemplar o humilde cruzeiro com um fervor quase religioso.

— Lembra-se? — disse-me, sorrindo.

— Como se fosse agora!

— Tem razão. Ao chegar aqui parece-me impossível que tenham já passado seis anos da minha vida! E como se acordara de um sonho de momentos.

Continuamos no nosso caminho até o portão da quinta de Entre Arroios; ao levantar o braço para tocar a sineta, as forças abandonaram-no e deixou-o pender como exausto por esforço prolongado.

A comoção dominara-o completamente.

Toquei eu. Respondeu-nos a voz conhecida dos mesmos cães. Seguiram-se-lhe os passos trôpegos de um velho criado, o mais antigo na casa de Tomás, e companheiro do pai nas tormentas do mar e na refrega dos combates. Hoje imitando Cincinato, deixara a espada pela enxada, que o bom homem pensava, com o poeta, ser:

Morgado e não pena dos filhos de Adão.

Ao encarar-nos, o velho hortelão fez um gesto de surpresa e levou a mão ao chapéu para nos cumprimentar; mas afirmando-se melhor em Tomás, reconheceu-o, e arrojando a incrível distância o chapéu que já empunhava, gritou abrindo os braços:

— Ai o Sr. Tomasinho!

E esquecendo toda a etiqueta, levantou-o ao ar, como lhe fazia em criança. Tomás correspondeu com efusão ao cumprimento.

— Minha senhora! minha senhora! — bradou o velho. — Aqui está o senhor...

A mão de Tomás interrompeu-lhe as palavras. Ele meditara uma surpresa.

Mas que era preciso para avisar o coração de mãe?

A porta da casa abriu-se e, com uma agilidade superior à sua idade, D. Margarida percorria num momento a avenida que a separava de nós e caía nos braços do filho.

Eu, que naturalmente nem fora ainda notado, vi então avançar-se não menos alvoroçada, porém mais tímida, a poética aparição do cruzeiro, Paulina. Vestida ainda à camponesa, porém com um gosto e elegância pouco vulgares, parecia-me uma dessas pastoras ideais que sonhava a poesia do século de Luís XIV, sonho tantas vezes contado em idílios, sonetos e madrigais.

Não direi que Paulina fosse mais bela do que quando a deixáramos, mas o que havia era um não sei que particular naquela fisionomia, que me impressionava, sem poder dar a razão disto.

O sangue dos vinte anos, que animava agora em mulher a criança de então, explicava muito, mas não me explicava tudo.

Em vez de saltar, como outrora, ao colo de Tomás com uma confiança toda infantil, parara interdita, trêmula, contemplando-o com ar apaixonado, invejando talvez aqueles beijos que D. Margarida lhe roubava, mas não ousando disputar-lhos. Esta, porém, depois de dar expansão ao próprio júbilo, abriu o coração a sentimentos menos egoístas e pôs em prática o que eu considero como a décima quinta obra de misericórdia: reunir os que se amam. Assim, depois de um último beijo, a boa mãe tomou pela mão Paulina e impeliu-a para os braços de Tomás, dizendo simplesmente:

— Ei-la.

Tomás pareceu fascinado pela beleza da sua desposada. Talvez que experimentasse ao vê-la a mesma impressão que eu já sentira. Não foi com a antiga confiança, antes com um sentimento de respeito que a cingiu ao seio e a beijou na cara, beijo que, apesar de tudo, não deixou de a fazer corar excessivamente.

O resto desta cena adivinha-se, que eu sou tão incapaz de descrever as alegrias da volta como as tristezas da partida.


CAPÍTULO 8

Satisfeitos os primeiros transportes do amor materno, D. Margarida concedeu-me atenção, e mostrou-se para comigo tão afetuosa como dantes.

Desculpou-se, como pôde, de me não haver escrito e não tocou nos seus projetos de viagens, evitando habilmente falar-me nisso, quando eu para ali tentava dirigir as minhas investigações.

Tomás veio encontrar algumas mudanças nos hábitos da casa.

Faltava ali o abade, que havia um ano tinha morrido de ataque apoplético, consecutivo a uma indigestão de lagosta. Pobre homem! vivera para o estômago e o ingrato sacrificou-o! Era destino! Ele pertencera a um mosteiro de Beneditinos, célebres por um invento gastronômico.

Melhor que ninguém aprendera ali a preparar a decantada farinha de São Bento, substancial gulodice, com que os bons monges de Santo Tirso aplacavam, segundo diz a lenda, as iras estomacais de um monarca português e, segundo o bom senso afirma, as iras, não menos temerosas, das suas próprias vísceras monásticas.

Seja-lhe mais leve a terra do que lhe foi o último banquete.

Notava-se também a falta do doutor Teófilo, que, desesperando de levar a efeito o consórcio com D. Margarida, dirigia atualmente as suas amáveis atenções a uma rica brasileira das proximidades, nutrindo o amor com mandioca e banana.

O médico era dos três o único presente e, se não receasse abusar da força da concessão do leitor, pedir-lhe-ia que o imaginasse mais magro ainda do que quando pela primeira vez lho apresentei. Empregava ele os maiores esforços para não falar diante de Tomás em assuntos de medicina. Renovava de algum modo a fábula do estatuário e...

…on le vit frémir le premier
Et redouter son propre ouvrage

…que obra sua dizia ele ser a formatura de Tomás.

A aldeia não ficou pouco surpreendida quando, passados dias, se anunciou o próximo casamento de Tomás com Paulina...

Julgava-se já isso coisa esquecida. A nova estalou pois no meio do círculo como uma bomba, e conjuntamente, em frase vulgar, estalou uma castanha na boca a muitos pais e mães de família, produtores e expositores de jeunes filies à marier, nesta pequena exposição de Entre Arroios.

O médico, visivelmente contrariado, informou-se logo se Tomás tencionava persistir na aldeia, depois de tomar novo estado. Tomás respondeu que sim, porém, como para o acalmar, acrescentou que não estava disposto a exercer a clínica, a não ser gratuitamente aos pobres.

O nosso Esculápio não morria de amores por esta parte da clientela e por isso louvou excessivamente a caridade do novo doutor e esquecendo até o habitual laconismo, citou, no ardor do entusiasmo, Hipócrates recusando os presentes de Artaxerxes, fato da vida do médico de Cós que o bom homem, lá para com os seus botões, julgava redonda parvoíce.

A família de Entre Arroios passou a viver uma vida toda anterior e a gozar de uma serenidade que me deliciava.

Paulina mostrava-se terna, sensível e ingênua como dantes. Tomás parecia idolatrá-la. Ao serão, enquanto ela trabalhava em costura e a Sra. D. Margarida, cuja vista cansada já lhe não permitia essas folias, dobava medas com os movimentos regulados de um autômato, Tomás, sentado em frente delas, descrevia, até os mínimos pormenores, a sua vida em Paris. A mãe escutava-o encantada. Por vezes as duas mulheres suspendiam o trabalho, para seguirem a narração nos pontos mais interessantes; por vezes D. Margarida trocava com Paulina, a quem votava uma afeição verdadeiramente maternal, um olhar e um sorriso, cuja significação eu não podia decifrar.

Conservei-me nesta casa até o casamento de Tomás, que se efetuou passados quinze dias.

Foi um fato notável na aldeia.

Não se falou noutra coisa por muito tempo senão no jovem doutor, e na fidalga, conduzindo pela mão ao altar a Paulina, vestida ainda com os costumes do lugar, apenas mais artisticamente dispostos que os das outras raparigas, em quem esta particularidade, compensada pelas maneiras modestas da noiva, longe de lhe atrair invejas, antes parecia despertar simpatias.

A senhora de Entre Arroios andava nesse dia visivelmente satisfeita.

— E os seus receios, minha senhora? — disse-lhe eu, num momento que estivemos sós.

— Cuida que os perdi já? — respondeu-me sorrindo.

— Pois acaso?...

— Receio como dantes.

— Então...

— Acabe.

— Mal compreendo a alegria de vossa excelência neste momento, porque...

— Pareço-lhe uma mãe desnaturada; não é isso?

— Não digo tanto, mas...

— Com o tempo falaremos.

E riu-se.

Na tarde deste mesmo dia, que era um domingo, percebendo que havia alegria suficiente naquela casa para que a minha ausência pudesse ser muito sentida, despedi-me dos noivos e da senhora de Entre Arroios e montei a cavalo para o Porto.

Ao sair de uma encruzilhada ouvi atrás de mim passos de cavalgadura. Voltei-me; era a tradicional mula do médico, com o seu descarnado senhor, cujas pernas retesadas e divergentes lhe davam aparência de um ípsilon voltado.

— Então já de partida, meu caro? — exclamou de longe, ao avistar-me.

Esperei-o e caminhamos a par pela estrada.

E verdade. Deixei a felicidade a substituir-me. Espero que se não queixarão da troca.

— Então sempre casou o Tomasito? Eu não pude assistir; tive um recado com pressa. E então que me diz de toda esta história?

— Digo que Tomás fez a sua felicidade.

— Ora não me venha com isso. A rapariga não tem nada do seu, e aquele rapaz podia aspirar a um bom casamento.

— Bom em que sentido?

— Essa é boa! Olhe que isto de casar é uma coisa séria.

— Não duvido e nem julgo que o Tomás o fizesse a rir. O doutor sabe tão bem como eu os pormenores deste casamento...

— Romances! O que me admira é a D. Margarida! Nunca esperei dela...

— Ora, meu caro senhor, isso não é assim. A mãe e o filho tiveram muito tempo para pensar nisto. Não foi um passo inconsiderado.

— Mas se eu lhe digo que D. Margarida não tem a cabeça no seu lugar!

— Ah! não sabia!

— Pois é fato. Não me dirá o senhor o que ela fez durante cinco anos?

— O que ela fez?

— Sim; debalde penso nisto. Quebro a cabeça e não acho nada!

Sorri-me da ingenuidade da confissão.

— Então não acha nada?

— Nada.

— E quebra a cabeça?

— É verdade.

— É mau sinal — não pude deixar de observar a meia voz.

— Mas o senhor não me diz o que fez D. Margarida? — teimava ele.

— Mas o que havia ela de fazer? O que dantes fazia.

— E aquela viagem!

— Que viagem?

— Uma viagem de cinco anos.

— Ah! pois D. Margarida...

— Um mês depois do pequeno partir, saiu também da terra com a Paulinita e lá andaram cinco anos... sabe Deus por onde.

— É singular! mas ela disse-nos que...

— Se eu lhe afianço que ela não tem o juízo no seu lugar!

Nisto chegamos ao ponto onde nos devíamos separar. O doutor despediu-se de mim, firmemente convencido de que a família Entre Arroios não era forte em senso comum, e que aliás abundava nele.

Conquanto eu não adotasse absolutamente esta opinião, nem numa nem na outra parte, não podia deixar de refletir no caráter excêntrico da senhora de Entre Arroios e na causa deste segredo, que ela parecia querer manter a respeito da sua viagem; segredo que só a sua muita tática e o isolamento em que vivia a família lhe poderia assegurar por muito tempo.

Cheguei ao Porto com as melhores disposições, e em breve deixei de pensar no caráter e mistérios da senhora de Entre Arroios, os quais me satisfiz em explicar por um dos muitos caprichos de mulher; explicação que, à semelhança de muitas teorias em ciência, deixava o fato na mesma obscuridade.

Tomás, todo absorvido pela sua felicidade, não me escreveu por muito tempo. Nem tive, durante um longo período, notícias de Entre Arroios.

Um dia apareceu-me finalmente uma carta de Tomás, na qual ele se dizia extremamente venturoso; só lamentava não me ver ao seu lado e pediu-me que o visitasse em breve.

Não me foi possível aceder então ao convite.

Pouco tempo depois recebi segunda carta. Os mesmos protestos de felicidade e lastimava que não houvesse nas imediações ninguém com quem se conviver. Havia aí um parágrafo que me deu que pensar; era assim:

“...e agora o Inverno aproxima-se. Já mo andam a anunciar estas pesadas nuvens de mau agouro, que obscurecem a cada passo a limpidez do céu. Confesso-lhe que me assusta um pouco esta perspectiva. Com o Inverno vêm as noites compridas. Não me dirá no que as hei de passar aqui?”

— Noites compridas? — disse eu comigo ao ler, e lembraram-me as apreensões da senhora de Entre Arroios.

A estas seguiram-se outras cartas, nas quais Tomás me falava largamente de assuntos de literatura, de artes e de ciências. Eram verdadeiras expansões de um homem de talento que de ordinário se vê obrigado a sufocá-las.

Na última deixava-se entrever vagamente a ideia de uma próxima viagem ao Porto.

Estes sintomas começaram a inquietar-me, quando passados dois meses recebi uma pequena carta de D. Margarida, que continha estas palavras apenas:

Meu caro Sr. D...

Olhe que os meus receios começaram a realizar-se. Convido-o a que venha examinar o meu doente e talvez a presenciar a cura.

Sua dedicada,
Margarida de Avelar.

Esta carta, quase enigmática, excitou a minha curiosidade e foi com o mais vivo interesse que nessa mesma tarde tomei bilhete nas diligências e parti para Entre Arroios.

A primeira pessoa que encontrei foi Tomás, passeando numa alameda vizinha com um livro na mão.

Ao ver-me deu quase um grito de surpresa e abraçou-me com efusão. A minha presença parecia satisfazer nele uma necessidade.

Apresentou-me logo à mãe, que, ao cumprimentar-me, sorriu e me fez sinal de não falar a Tomás na carta que eu recebera dela.

Paulina também me acolheu com agrado e, contra o que eu receava, pareceu-me intimamente satisfeita.

Era bela como sempre. Tomás mostrava-se em extremo afetuoso para com ela. As vezes contemplava-a numa tácita adoração e quase em êxtase, mas um suspiro vinha quase sempre terminar esta contemplação silenciosa.

Seria Prometeu ambicionando o fogo do céu para animar a estátua? A senhora de Entre Arroios, nestes momentos, olhava-me com um sorriso, como de vaidade satisfeita.

Ela via naquele suspiro realizada a sua profecia; mas eu avaliava muito bem a boa índole desta excelente senhora e a grandeza do seu amor maternal, para acreditar que isto lhe causasse o menor prazer, se ela não tivesse algum meio, meio que em vão tentei descobrir, para evitar-lhe as consequências.

Tomás saiu comigo, a instâncias da mãe e de Paulina, que ambas mostravam bastante empenho em que empreendêssemos este passeio.

Só com Tomás, que se despediu da sua mulher com um beijo afetuoso, eu tentei sondar a profundidade da doença, como lhe chamava a senhora de Entre Arroios.

— Vejo que se realizaram todos os seus votos; pode enfim dizer-se feliz.

— Sim: extremamente feliz.

— Não tem nada que o penalize?

— Nada. — Respondeu, em tom mais baixo e suspirando.

— Seja franco. Tem alguma coisa?

— Por que diz isso?

— Porque o acho preocupado. Triste quase.

— Oh! É engano.

— E quer que lhe diga o que o preocupa?

— Mas...

— Ouça e fale depois.

— Pois diga.

— Há de permitir-me a franqueza.

— Exijo-a.

— Um pouco rude.

— Não lhe admito outra.

— Não tem direito para tanto, porque também a não usa comigo.

— Prometo-lha depois de ouvi-lo.

— Seja, e aí vai o que eu penso; se vou cometer uma indiscriminação, perdoe-ma. O senhor casou por paixão e paixão violenta, que se não desvaneceu em seis anos de ausência. A sua mulher é bela, como poucas, extremosa e afável; possui um coração formado para simpatizar com o seu; saberá consolá-lo nas penas, exultar com as suas alegrias, receber e compreender as efusões de sentimento, mas...

— Mas? — interrogou Tomás, com olhar de inquietação.

— Mas uma alma como a sua, Tomás, é mais exigente.

— Não, não e.

— Ouça. Há momentos em que isso lhe basta, em que essa reciprocidade, essa harmonia de sentimentos lhe parece a suprema ventura; bem sei. Mas há outros em que a inteligência aspira a encontrar-se com uma inteligência que o aprecie; ambiciona voar, engrandecer-se, elevar-se e não quereria achar-se só no espaço, desejaria outra para marcharem unidas, e essa outra não pode ser a de Paulina.

— Podia, se...

— Se se dessem circunstâncias que se não realizaram.

— Há um fundo de verdade nisso que diz — respondeu Tomás — mas creia ainda assim que sou menos merecedor de exprobração do que lhe parece talvez. Sim, é certo; lamento às vezes que Paulina não tivesse recebido uma educação superior, não por ambicionar quem possa satisfazer-me a vaidade de ser compreendido, apreciado, como diz; de estranhos pouco me importaria isso, mas por desejar ser em tudo compreendido por ela, tornar mais íntima esta identificação das nossas existências. Não lhe parece menos egoísta este sentimento assim?

— Por certo.

— E depois, sabe o que me consola? É que esta necessidade de efusões é fictícia; as únicas verdadeiras e irresistíveis são as do coração. Eu creio que ele sobrevive à inteligência. Alguns médicos chamaram-lhe o ultimum moriens; assim o considero também referindo-lhe a vida dos afetos. Com a idade as exigências do coração duram ainda, enquanto as da fantasia amortecem e acabam por se extinguir. Isto em mim é uma crise que há de passar; Paulina é a única mulher que podia realizar neste mundo a minha felicidade.

— Acredito, mas isso não tira que a desejasse animada pela luz da educação.

Tomás ficou um pouco pensativo.

— Prometi ser franco — disse suspirando — hei de sê-lo. E uma verdade.

— Bem dizia a sua mãe. A cabeça domina agora o coração.

— Minha mãe!

— Há seis anos que previra isto mesmo.

— Ela? E verdade que certas palavras vagas, certos olhares me davam a entender... e contudo eu próprio o duvidava ainda.

— Ânimo! É preciso vencer esse sentimento.

— Hei de vencê-lo custe o que custar. Mas quando penso que aquela voz se perdeu para a música, aquela inteligência para a poesia!... que aquele gosto, naturalmente delicado, se não exerce em lides dignas dela!... quando me lembra de que aquele espírito, criado para voar, se não eleva por falta de asas...

— Agora recordo-lhe o que me disse quando chegou a França, lembra-se? — o espírito aliena às vezes a mulher da vida de família.

— Oh! mas Paulina... — e interrompendo-se subitamente. — Vamos para casa. É pecar contra Deus ser tão exigente, quando se é tão feliz.

Caminhamos muito tempo silenciosos e quase tristes.

Ao aproximarmo-nos do pomar, uma vaga harmonia chegou aos nossos ouvidos; eram os sons de um piano.

D. Margarida introduzira esta inovação em Entre Arroios depois que Tomás voltara de França, apesar de que só ele em casa tirava o instrumento do silêncio em que dias inteiros se conservava, encostado à parede da sala principal, onde eu já uma vez me encontrei com o leitor.

Ao ouvir os primeiros sons do piano, Tomás mostrou-se impaciente.

— Ao que me parece, minha mãe recebeu visitas durante a nossa ausência. Que impertinência!

Mas, à medida que nos aproximávamos, as notas do instrumento tornavam-se mais distintas. A execução revelava uma mão conhecedora. Tomás parou a escutá-las.

— Meu Deus! — exclamou surpreendido — quem pode tocar tão divinamente!

De fato, quanto mais perto, mais sensível se tomava a mestria com que as teclas, ordinariamente mudas, eram movidas então, produzindo verdadeiros milagres de execução.

Uma voz feminina cedo acompanhou as harmonias do instrumento; cantava uma destas toadas melancólicas que nos comovem até o fundo da alma.

Tomás apertou-me violentamente o braço, em que se apoiava.

— Escute! — e depois acrescentou a meia voz, e como para si mesmo:

— Paulina, se cantasse, devia cantar assim! Entremos.

Eu tive um sentimento de tristeza ao obedecer a este convite. Esta mulher, quem quer que fosse, ia talvez exercer na imaginação de Tomás uma influência funesta para Paulina. De fato, reparando para ele, ao abrir a porta do salão, vi-o excessivamente agitado.

Entramos.

A sala estava muito escura. Os últimos raios de um sol de Janeiro a custo podiam já atravessar as cortinas de fina garça que guarneciam as janelas.

Apenas me foi possível reconhecer D. Margarida, sentada ao lado do piano e parecendo não dar pela nossa chegada, absorvida como estava na contemplação da cantora.

Esta, voltada com as costas para nós, mostrava ser ainda jovem. As tranças negras, artisticamente penteadas, realçavam sobre o vestido branco, em que se viam realizados os mil caprichos da moda. A música parecia enlevá-la. Mostrava-se dominada pelos sentimentos que a canção exprimia. Cantando tristezas, a voz tinha modulações que revelavam lágrimas, e para o desespero era o grito partido do coração; para saudades dir-se-iam as notas maviosas da ave do crepúsculo, para esperanças o trinado das que anunciam alegres a madrugada.

A voz desta mulher fascinava!

Paramos à porta, a ouvi-la; a canção não se interrompeu e a letra tornou-se-nos inteligível. Fora semanas antes escrita por Tomás, num dos seus momentos de exaltação, e em breve esquecida depois, como a tantas outras acontecia. Ao ouvir assim exprimir pensamentos que concebera, e palavras que havia escrito, Tomás adiantou-se pouco a pouco para a cantora. As pernas vacilavam-lhe, a palidez aumentava, parecia sob a influência de uma fascinação poderosa.

Eu fiquei imóvel e inquieto por ele e por Paulina, cuja felicidade futura antevia ameaçada.

Tomás chegou junto desta cantora desconhecida, justamente quando ela acabava de entoar, com uma comoção mais profunda do que até aí e que se lhe denunciava no ligeiro tremor de voz, os últimos versos da canção, que diziam assim:

Mais vida! Meu Deus, mais vida!
Que a chama ainda arde violenta!
E a alma, de viver sedenta,
Outros sonhos concebeu.

Ainda as derradeiras notas vibravam no espaço, já um grito de surpresa, um grito inexprimível lhe interrompia as harmonias, e Tomás recuava, exclamando:

— Paulina!

A cantora, que efetivamente não era outra senão Paulina, afastou violentamente a cadeira em que estivera sentada e lançou-se nos braços de Tomás.

A senhora de Entre Arroios chorava de comovida.

— Paulina, sim, Paulina — dizia a gentil menina, cobrindo o marido de beijos. Paulina, que te compreende, que sempre te compreendeu, meu pobre poeta, meu quase mártir! Aspiravas dar expansão à tua inteligência e receavas fascinar-me; mas tu não sabes que é à chama do teu espírito que eu me alento? Querias elevar-te às regiões onde a fantasia te chamava, e receavas despenhar-me da altura, mas ignoras que há muito eu te sigo aí, que estou contigo onde te julgavas solitário? Pois sabe-o agora, quero dizer-to assim, com os meus lábios unidos aos teus, quero gravar-to no peito, quero... ser digna de ti. Os versos que de noite confiavas às brisas, os cantos que a paixão te inspirava, recolhia-os eu no coração, repetia-os de manhã como a oração matinal; a melodia que encantasse teus ouvidos guardava-a na memória, para a reproduzir mais tarde, para a extrair em notas sonoras deste piano, companheiro inseparável dos meus sonhos de felicidade, confidente das minhas esperanças no futuro; as paisagens que te agradavam pedia ao craião que as reproduzisse; os livros que de preferência escolhias lia-os e meditava-os na tua ausência, para me encontrar contigo também nas regiões do pensamento, para neles descobrir o caminho do teu espírito, como há tanto conheço o do teu coração, para um dia, entre beijos, te dizer como hoje, como agora te digo: Tomás, os teus pensamentos são os meus, as tuas aspirações são as minhas! Em qualquer direção que elas te apontem, eu te acompanharei. Partamos!

E o entusiasmo animava as feições de Paulina, que parecia inspirada.

— Isto é um milagre do Céu! — disse Tomás, dominado pela comoção.

— Não, não, Tomás. É um milagre de uma santa, é o milagre de tua... da nossa mãe!

— Da minha mãe!

— Não, meu filho — disse, banhada em lágrimas de alegria, a senhora de Entre Arroios, apontando para Paulina — é o milagre da inteligência dela.

— Minha mãe! Paulina! Oh! isto é de enlouquecer!

Eu aproximara-me da senhora de Entre Arroios com um movimento de admiração. Compreendera enfim o mistério.

Os cinco anos de ausência de D. Margarida estavam explicados.

Tomás parecia duvidar ainda da realidade do que se passava neste momento. Temia ainda um desengano depois da alucinação.

— Tu és Paulina?!... — dizia ele, contemplando a sua mulher.

A dúvida era fundada.

Paulina, a gentil camponesa, oferecia agora sob novos trajes, cuja elegância e gosto mostravam que não desprezara o estudo da toilette enquanto cultivara os dotes naturais do espírito, novo aspeto à sua beleza.

Vendo-a, todos a diriam criada de pequena num desses mimosos ninhos de rendas onde vivem a infância as mais delicadas mulheres, que surgem depois borboletas, fracas em vigor, mas fortes pela fascinação que exercem.

Tomás caía de surpresa em surpresa. Paulina levou-o ao seu pequeno gabinete de estudo, no lugar mais remoto da casa, elegante santuário por ignorado até então. Aí tudo o extasiou. A história dos seus poéticos amores ali renascia inteira; já em versos, que perdera ou deixara incompletos, já em mimosos desenhos, onde o lápis reproduzira os sítios mais queridos dos dois, todos aqueles onde se prendia uma recordação e uma saudade; em flores, em retratos, em mil pequenos nadas, com que se escreve a história de uns amores e que de futuro no-la recordam fielmente.

Enquanto Tomás e Paulina se esqueciam assim em amenas recordações, eu ouvia da senhora de Entre Arroios uma mais exata explicação do milagre.

Logo depois da partida de Tomás, D. Margarida, obedecendo ao pensamento que tivera desde que lhe fora manifesta a paixão do filho, chamou Paulina para junto de si e fez-lhe compreender a necessidade de se elevar pela educação até à altura de Tomás, para assegurar a felicidade do seu porvir. A inteligência de Paulina, esclarecida pelo amor, compreendeu e aceitou com efusão o oferecimento da senhora de Entre Arroios.

Foram viver para Lisboa, sem o comunicarem a Tomás, que pela astúcia de D. Margarida continuou a receber cartas, pouco verdadeiras, datadas de Entre Arroios.

D. Margarida não se poupou a despesas para tomar Paulina perfeita nas artes e nas línguas. A inteligência natural da pobre menina, o ardor com que se votava ao estudo excederam toda a expectativa e surpreenderam os mestres. Em Lisboa corria-se com avidez para as soirées, aliás raras, onde Paulina cantava.

A tarefa que D. Margarida começara, tendo só em vista a felicidade do filho, completou-a com todo o amor do artista que se revê na sua obra.

Dentro em cinco anos Paulina era digna de Tomas.

A senhora de Entre Arroios não quis revelar a metamorfose da pequena leiteira, que para todos se conservou mistério. Era um bem desculpável amor-próprio, que desejava fazer sentir assim mais a necessidade da sua obra.

— E ainda, quem sabe? — dizia ela, e eu admirava ainda neste ponto a sua penetração — quem sabe se Tomás sentiria então a mesma alegria que sentiu agora? Ele amava Paulina tal como lhe aparecera havia seis anos; se a visse outra, se a visse mudada, talvez interiormente sentisse certo desgosto. Hoje era outra coisa. Viu como ele aceitou a transformação? E depois, aqui para nós — continuava a boa mãe com um sorriso espirituoso — de vez em quando não são de todo más estas metamorfoses entre casados. Avivam a luz, que se amortece. Espero que não seja esta a última de Paulina, e a seguinte há de ser ainda mais poderosa. Verá.

— Outro mistério, Sra. D. Margarida? De que última quer falar?

— Não temos mistério nenhum, homem. A última é a que é de esperar. A metamorfose da esposa em mãe.

Nisto entravam na sala a nova Paulina, como lhe chamava a senhora de Entre Arroios, e Tomás, o qual se mostrou esta noite mais espirituoso que nunca.

Ele tinha razão. A inteligência de Paulina só precisava de asas para voar ao lado da sua. Era um espetáculo interessante vê-los agora librarem-se no espaço e pairarem nas mais elevadas regiões, e D. Margarida, permita-se uma comparação que então me ocorreu, como o inventor dos primeiros aeróstatos, vendo-os cá debaixo subir, orgulhosa da sua obra.

Passei alguns dias ainda com esta família, regenerada quase, e, ao partir, trazia mais saudades do que nunca.

Tomás é feliz ainda hoje. Agora escreve-me poucas vezes, e não se lembra de que são compridas as noites de Inverno.

Paulina satisfaz-lhe às ambições de glória, como às ambições de amor. Se às vezes aspira a um espaço mais vasto para escrever seu nome, algumas páginas dos seus escritos inéditos aparecem nas colunas dos jornais da época e são geralmente admiradas. Mas cedo se desengana, que esta glória é menos real do que a primeira, e volta contente à sua feliz obscuridade.

D. Margarida é venturosa; descansa hoje a inteligência de seis anos de esforços. É nas crises que toda a grandeza do seu caráter se revela; agora entretém-se já um pouco a apoquentar os criados e encarrega-me de dar parte às leitoras do nascimento de um menino, que ela sustenta ser a cara do pai.

Eu, pela minha parte, quando nos embates continuados da vida me sinto desanimar, vou passar oito dias com a família de Entre Arroios e venho curado.


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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)


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