6/26/2019

Elogio Histórico de Sebastião Xavier Botelho (Ensaio), por Alexandre Herculano



Elogio Histórico de Sebastião Xavier Botelho
Senhores:
Honrado com o encargo de revocar hoje a memória de um nosso ilustre consócio que a morte nos roubou, não posso deixar de sinceramente lamentar que este Conservatório quisesse que eu, entendimento humilde, vá bater à porta do sepulcro para através dele citar uma nobre inteligência, que repousa no seio de Deus, e dizer-lhe — Vem ouvir o processo da tua glória, o julgamento sobre o modo porque desempenhaste a tua missão intelectual na terra.
Porque, Senhores, ou muito me engano, ou é esse o principal, diria quase o único mister que nos incumbe, aos que fomos escolhidos para falar neste dia e neste lugar dos nossos falecidos consócios. Em nome das letras, dessa revelação formosa e santa do engenho humano, nos ajuntamos neste recinto: por elas existimos como corporação: elas nos fizeram irmãos e iguais. Pelas letras as diferenças voluntárias e incertas do mundo — as riquezas, o poder, os nomes de avós, se convertem em palavras sem sentido. A democracia absoluta, sonho impossível, talvez, de realizar na sociedade civil, torna-se entre nós uma condição de existência. Nas associações literárias a vida é de certo modo imaterial, e as nossas distinções são unicamente as da superioridade do engenho. Mas a última instância onde tais preferências se julgam é o tribunal da posteridade. Só a morte abre de par em par as portas deste, e é aí que definitivamente se resolve se o nome do que passou será lançado na herança dos séculos, na memória perene dos homens, ou se tal nome deve esquecer como esquece o som derradeiro da loisa caindo sobre a borda do sepulcro, onde foi repousar o que não pode ou não soube conquistar a imortalidade.
É por este caráter democrático, de todas as corporações como a nossa, porque alheias inteiramente às condições da sociedade civil, que me parece não ser nos arquivos desse pobre mundo das vaidades, a que chamam realidade, onde hajamos de ir buscar documentos e testemunhos, que provarão muito para outro gênero de renome e glória, mas que de nenhum modo vem a ponto para as canonizações literárias, no momento solene em que devemos preparar o processo pelo qual a posteridade tem de julgar inteligências já livres deste sudário da vida. Antepassados, haveres, grandeza, cargos, que nos importam? Outra é a nossa missão: temos de perguntar ao que traçou algumas palavras no livro eterno e imenso da arte e ciência humana — Que foi o que fizeste? — Que era o que podias fazer? Isto é o que nos pertence, o resto à sociedade.
O nosso falecido consócio, que passando na terra escreveu nesse livro uma das suas formosas páginas, foi o Sr. Sebastião Xavier Botelho. Para se poder avaliar o mérito desta escritura de que preciso eu? — De lê-la.
Dificultosa é semelhante leitura; porque as palavras do homem de engenho são concisas e profundas: soletram-nas a custo os que não possuem esse dom de cima; e, sem humildade hipócrita, eu sei que pertenço a estes.
A culpa do mau desempenho será, pois, vossa, Senhores, que medistes erradamente as minhas forças pelos meus e pelos vossos desejos.
A história intelectual e íntima do Sr. Botelho divide-se em dois grandes períodos: corre o primeiro desde a época em que concluiu os seus estudos de jurisprudência na Universidade de Coimbra até àquela em que importantes e laboriosos cargos, que lhe foram confiados, o constrangeram a dedicar-se inteiramente ao cumprimento de suas obrigações, e a deixar os ócios literários da juventude: o segundo abrange o tempo que discorreu desde esta época até à da sua morte. O primeiro período foi para ele o do trato e cultura das boas letras: o segundo o do estudo dos homens e das coisas, da ciência, da história e do governo. No primeiro, o Sr. Botelho foi poeta: foi o homem do ideal: no segundo foi historiador, economista e político; foi o homem do mundo real. É nestes dois períodos que eu considerarei as obras da sua inteligência, e procurarei responder à pergunta — Que serviços fez o Sr. Botelho ao progresso do espírito humano?
As primeiras composições Poéticas do nosso ilustre consócio foram escritas nos fins do anterior ou nos começos do presente século: destas nenhuma viu a luz pública: as que se lhes seguiram, pertencendo pela maior parte à literatura dramática, tiveram o seu primeiro modo de publicação — o da cena: mas o único penhor de duradouras recordações e o único fiador da perpetuidade da glória, essa fonte de toda a ciência e civilização modernas — a imprensa —faltou-lhes como ainda há dez anos faltava comumente às obras dos nossos bons engenhos que nasciam e morriam sem a conhecerem; porque dois anjos maus a guardavam, os quais tinham por nome — censura e ignorância.
Por esses arquivos de teatros jazem sepultados os dramas do Sr. Botelho, dos quais apenas é imperfeitissimamente conhecida a tragédia Inês de Castro, e um pouco melhor a Zulmira, melodrama de que restam várias cópias.
Zulmira é, como todos os melodramas, uma composição hibrida, monstruosa, e falsa à luz dramática; mas considerada como um hino aos nobres afetos do coração humano ela nos revela quanto era poética e formosa a alma do Sr. Botelho. Poucos versos haverá da época em que foi escrita, a não serem os do melhor metrificador português —Bocage — nos quais se encontre tanta suavidade, melodia e arte e ao mesmo tempo tão generosas ideias, tão afetuoso sentir, expresso muitas vezes com admirável precisão. Não é um drama a Zulmira! — E que importa? Ester é uma elegia; Atália uma epopeia; mas elegia e epopeia sublimes de um poeta divino!
Mais bem salvas para a história das letras foram as numerosas versões dramáticas do Sr. Botelho — amparavam-nas, seus originais, largamente conhecidos no mundo. Além de muitas óperas de Metástasio e de quatro tragédias de Racine, BereniceMitridatesFedra e Bajaceto, ele transportou para a cena portuguesa quase todos os mais afamados dramas de Voltaire, como MaoméZaíraBrutoMarianaÉdipo e Semíramis, aos quais acresceram muitos outros de menos célebres autores dramáticos.
Já vedes, Senhores, quantas e quão largas vigílias o mancebo poeta consagrou ao teatro; as suas poesias volantes sabe-se que foram muitas, mas do naufrágio do tempo apenas salvou a imprensa a epístola a Bocage, a qual mereceu os extremados louvores que este grande poeta dá para me servir da linguagem arcádica daqueles tempos, ao vate Salicilo. Vate Salicilo era o Sr. Botelho, que ainda então os poetas, por obrigação de seu ofício, se desbatizavam do nome cristão, iam em espírito pastorear à velha Grécia, e voltavam de lá não poetas, mas pastores e vates.
Procurei, Senhores, lembrar-vos quão extensos foram os trabalhos poéticos do Sr. Botelho. Resta-me, todavia, mais dificultosa tarefa, o recordar-vos qual foi a significação literária deles — o averiguar como e quanto o nosso falecido consócio contribuiu para os progressos da arte nesta tão poética terra de Portugal.
Poeta elmanista, e um dos primeiros e mais distintos sectários desta escola, que rainha da poesia, e dispensadora de glória regeu sem partilha de império os domínios da arte, é no julgamento dessa escola brilhante que está o seu julgamento. Os juízos individuais em história literária são tão falsos como em história social: o indivíduo que vai à frente da sua época, não é mais que a ideia predominante dela encarnada no homem. Julguemos a ideia, e teremos julgado o símbolo humano que a representa. Se aquele que passou não a compreendeu, não o chamemos também ao tribunal da posteridade, e deixemo-lo repousar na paz de seu esquecido sepulcro.
Mas o pensamento progressivo que agitou uma geração ou um século não vem só: vem com ele os pensamentos dominadores das gerações ou dos séculos antecedentes que o produziram, e vem os que ele gerou. Sem isso o processo será incompleto: errada provavelmente a sentença. Expressão de uma série contínua e eterna de ideias, grandes porque veem de Deus, o progredir humano revela o elemento intelectual de cada uma das nossas transformações sucessivas em todas as fórmulas da vida. Esse elemento, essa ideia prolifica, busquemo-la em todos os aspectos da civilização, que em todos a havemos de encontrar. Nas instituições, e nos costumes, na ciência, e na arte, lá está escrita — escrita pela mão do anjo do Senhor, que deixa cair sobre a terra uma lágrima de dó, quando a mão de algum louco crê que pode apagá-la, ou a voz do insensato se ergue para a desmentir, e nela desmentir o brado do gênero humano.
É na arte, à qual foi completamente dedicado o primeiro período da vida literária do Sr. Sebastião Xavier Botelho, que eu buscarei principalmente o pensamento ou fato intelectual que caracteriza e explica a sua época e a sua escola, ligando esse fato com os que o precederam e com os que dele vieram. Oxalá que para animar-me em tratar um objeto acima de minhas forças me não desampare a vossa indulgência!
Vós sabeis, Senhores, que durante a primeira metade do décimo sexto século uma grande revolução se operou e completou no Meio-Dia da Europa. As sociedades feudais e municipais, estas, no seu crescer, aquelas na sua declinação, deram o último arranco aos pés da sociedade monárquica. Toda a vida anterior das nações do ocidente desabou após elas. Entre nós mudou tudo: socialismo, ciência, arte, caráter religioso. Ninguém curou disso. A robusta e inteligente monarquia desse tempo atirou à espantosa atividade de nossos avós três partes do mundo para esmagar: cevou-a em poderio, e saciou-a de glória. Compuseram-se então todos os aspectos da sociedade a exemplo da unidade monárquica: o senhorio feudal tornou-se dependência completa: o município delegação: os parlamentos letra morta. A crônica, essa forma tão viva, tão dramática, tão nacional da história, cedeu o campo aos Tucídides e Lívios modernos: o platonismo cristão e espiritual, fugiu, combatendo como os Partos, ante o aristotelismo argumentador e materialista: as artes plásticas seguiram de longe os destinos de suas irmãs de Itália, onde as iluminuras aéreas e incorretas dos missais e horas, desapareciam diante do pincel terreno e correto de Rafael e as catedrais misteriosas e simbólicas se desmoronavam ao altear do templo de São Pedro, prostituído à luz por Miguel Ângelo: todas as artes se confessaram vencidas, na sua imperfeição e rudeza sublimes, pelos monumentos da arte antiga. O próprio cristianismo se fez intolerante e sanguinário, como o politeísmo romano, o perseguidor dos mártires — e a inquisição restaurou o pretório. Finalmente a poesia nacional, balbuciante ainda, retraiu-se ante o fulgor da literatura latina. As instituições de Roma, a Roma dos imperadores, anularam as nossas instituições primitivas, e a poesia romana mudou o caráter da poesia moderna. A sociedade reproduzia o pensamento que guiava o século. Deixou de ser cristã e nacional, para ser pagã e peregrina. Roma que, viva e possante, não alcançara subjugar inteiramente este cantinho da Europa, cadáver já, profanado pelos pés de muitas raças bárbaras, conquistou-nos com o esplendor da sua civilização, que ressurgira triunfante. Netos dos celtas, dos godos, e dos árabes, esquecemo-nos de todas as tradições de avós para pedirmos às cinzas de um império, morto e estranho, até o gênio da própria língua!
Mas essa civilização violenta, enxertada em árvore de diverso gênero, devia tarde ou cedo ceder o lugar a outra mais homogênea com as tradições e costumes, com as crenças e hábitos dos povos modernos. O mundo antigo fora condenado por Deus: a sua condenação era o evangelho. O engenho humano pode vestir-lhe o trajo dos vivos; mas por baixo deste estava-lhe sobre o esqueleto mirrado o sudário dos mortos. Mais tarde ou mais cedo, repito, ele devia voltar à sua jazida.
E a reação não tardou os anos de três gerações. O seiscentismo foi uma reação.
Há aí acaso quem duvide de que ele era uma revolta, senão contra a essência da arte romana, decerto contra as formas exteriores dessa arte? Bem sabeis, Senhores, que não é difícil prová-lo, e que entre a poesia anterior ao renascimento e a dos seiscentistas há alguns caracteres análogos, e muitas tendências semelhantes. Não direi quais, porque melhor o conheceis que eu— e porque preciso de aproximar-me rapidamente à época em que viveu para honra das letras o Sr. Sebastião Xavier Botelho.
Qual foi a origem do seiscentismo? A história literária diz-nos que foram Marino, Gôngora, e não sei quem mais. É uma daquelas falsidades históricas, que nascem do curto pensar. Nunca um ou alguns homens puderam assim mudar nem a mínima das fórmulas sociais, em cujo número a arte decerto não é a última. São as gerações arrastadas e agitadas por ideias que nasceram e se derramaram insensivelmente, que fazem semelhantes transformações. Esses cabeças de escola são o verbo da ideia, são os intérpretes do gênero humano — e mais nada.
O seiscentismo foi uma resolução que falhou, uma tentativa de restauração da nacionalidade em literatura, que não sendo acompanhada pela restauração social completa do modo de existir português anterior às influências romanas, ficou aleijada e raquítica, e substituiu a uma arte antinacional, mas judiciosa e brilhante, outra falsa e além disso ridícula.
A célebre Arcádia, e a influência que esta corporação teve nas letras foi uma nova reação literária, e o dogmatismo em que se restauraram as doutrinas romanas, posto que reflexas já de Itália e de França, foi ainda mais intolerante e absoluto que na época do renascimento. O seiscentismo acabou às mãos dos árcades, que restabeleciam o predomínio da arte antiga e revocavam o pensar e o estilo dos poetas do tempo de D. João III e D. Sebastião, ao passo que o Marquês de Pombal procurava restaurar a esquecida robustez da monarquia com a austeridade dos seus princípios administrativos, e com a ação vigorosa do seu governo de ferro.
A monarquia do Marquês de Pombal era anacrônica em política: a restauração da arte romana era anacrônica em literatura. Ambas deviam necessariamente passar — e passar rápidas. Assim aconteceu. Além do anacronismo havia em ambas ainda outro elemento de dissolução. A fórmula política nunca fora tão absolutamente monárquica: a fórmula literária nunca fora tão mesquinhamente romana. Nunca o motu-proprio fora tão cabal explicação de todas as leis: nunca os nomes e exemplos de Aristóteles e de Quintiliano, de Horácio e de Virgílio, substituíram tão completamente o raciocínio na crítica. Mas o Marquês de Pombal começava por discutir com a aristocracia e com a teocracia, e a Arcádia com o seiscentismo; os homens do futuro tinham portanto também o direito de discutir com eles. É o que tem feito e fará o nosso século.
A Arcádia derrubara a poesia seiscentista: cumprira com sua missão. Depois dogmatizou e morreu. Foi de inanição. Esta sociedade, tão ativa, tão beligerante, tão ruidosa nos seus começos — expirou, e nem sequer o mundo literário deu tino disso. Era que a Arcádia nunca propriamente vivera, porque nunca representara uma ideia progressiva.
Foi depois dela que floresceu Bocage e a sua escola, um de cujos luminares era o Sr. Sebastião Xavier Botelho. Resta-me trazer à vossa memória o lugar desse poeta e dessa escola nos anais da arte.
Bocage vinha depois de duas restaurações clássicas, ou romanas; assistira ao derradeiro clarão da segunda, e fora educado por ela. Os seus primeiros poemas são moldados pelos dos árcades, mas já nesses poemas há mais inspiração, porque Bocage nascera e não se fizera poeta, com se haviam feito aqueles, se excetuarmos Garção. As variedades que gradualmente apareceram no seu estilo e pensar foram mui pouco distintas, salvo na metrificação em que escureceu completamente os árcades, e na tendência, visível nas suas melhores composições, para substituir a mitologia pagã pela alegoria, o que deveu talvez à influência dos poemas descritivos franceses, a que o materialismo e a incredulidade do século XVIII tinham reduzido a poesia daquela nação.
Mas é, Senhores, sob outro aspecto que importa considerar este homem extraordinário para avaliar a missão da sua escola, e saber qual transformação o aparecimento dela veio produzir na arte.
Na literatura dos árcades, como nas literaturas de época de D. João III e da época de Augusto; a poesia tinha sido essencialmente cortesã, aristocrática, altiva. Os pastores da Arcádia nunca assistiram aos mais sublimes espetáculos do universo, nunca sentiram no coração essas paixões violentas que devoram as existências. Que sabiam eles dos campos de batalha, das sedições, dos grandes crimes e das grandes virtudes? Eles ignoravam o que são lágrimas de desterro, o que são contentamentos de tornar a ter Pátria. Ódios, fanatismos Políticos, ânsia de glória popular, ambições, misérias humanas, não existiam para eles. Os mares e os seus terrores, as solidões profundas das serranias, o ruído das torrentes, o sibilar dos ventos por gandras bravias, não imaginavam o que fosse. As procelas enfim da natureza, e as mais terríveis ainda do espírito em que parece deleitar-se o poeta deste século grave e triste, porque o converteram à melancolia e ao cogitar profundo os seus destinos solenes — tudo isso era alheio à suave existência dos bons árcades. Sacerdotes, magistrados, e servidores do estado, o seu monte Menalo era uma sala adornada de sedas e rases; a sua lira ou rabil uma pena muitas vezes dourada; as suas inspirações uma vasta erudição. Assim os afetos e imagens dos seus poemas vacilavam entre a frieza e trivialidade, e a exageração e mentira — porque para eles as paixões e a natureza estavam nos livros. Os livros foram o seu universo.
Bocage porém não era árcade. Era um homem do povo que alimentava no espírito todas as paixões violentas, e muitas vezes frenéticas e desregradas do vulgo; e como o vulgo, ajuntava a feios vícios nobres e generosas virtudes. Era o trovador que improvisava os seus mais admiráveis versos no meio das multidões, à luz do sol ou dos astros da noite, nas orgias das cidades, nas festas campestres — em todos os lugares, a todas as horas. Depois de Camões, Bocage foi o nosso primeiro poeta popular; como Camões, foi pobre, foi criminoso, e foi malfadado; adormeceu, como ele, muitas vezes no balouçar das vagas do oceano, e como ele orvalhou de lágrimas o pão do desterro, e veio morrer na Pátria sobre a enxerga da miséria. Semelhante ao inferno do Evangelho passou pela terra abandonado, pobre, nu; mas como os antigos romeiros trovadores, alegrou ou comoveu os ânimos das classes não privilegiadas, às quais três séculos tinham feito esquecer que a poesia era também e principalmente para elas.
Bocage é o tipo mais perfeito da sua escola, e de feito devia sê-lo. Ela popularizou a arte, porque poetou principalmente para o povo, e embalou ao mesmo tempo com as melodias da linguagem, com o sonoro do metro, essas almas rudes mais atentas à harmonia da forma que ao poético do pensamento.
Feita assim a poesia plebeia, duas consequências deviam seguir-se desse passo gigante — a liberdade literária e o aparecimento do teatro. A poesia popular rejeita como o povo, quando começa a pensar e deixa de querer, todas as leis que se fundam em autoridade ou tradição e não em conveniências; e o drama é a forma mais completa da arte quando esta se faz burguesa. Não aconteceu todavia assim: a razão disso é óbvia.
A revolução literária que a geração atual intentou e concluiu, não foi instinto: foi resultado de largas e profundas cogitações; veio com as revoluções sociais, e explica-se pelo mesmo pensamento destas. Mas nem Bocage, nem os poetas que o imitavam ou seguiam suas doutrinas, se doutrinas havia nessa escola, curavam d'averiguar teorias estéticas; porque os tempos da grave discussão ainda não eram vindos. Poetas inspirados deixavam-se ir ao som das suas inspirações, viviam numa espécie d'excitamento intelectual; o estro, em que tantas vezes falam, era uma realidade, e o improviso a forma comum em que davam vulto aos seus pensamentos e afetos. Esses engenhos ardentes respiravam numa atmosfera de entusiasmo, de ebriedade poética. Semelhantes à avezinha que solta o seu gorjeio como o aprendeu da natureza e do gorjeio paterno, eles, no seu poetar espontâneo, aceitavam sem exame as regras que lhe ensinara a Arcádia. E que podiam fazer os pobres poetas peões senão curvar a cabeça ao voto dos mui eruditos e cortesãos pastores do monte Menalo?
Por isso a escola bocagiana preparou só metade da revolução artística: trouxe a poesia dos corrilhos e salões aristocráticos para a praça pública; mas não a fez nacional. Esta dificultosa empresa estava em grande parte guardada para um poeta tão romano em intenções e desejos, quanto português na índole do seu engenho. Francisco Manuel foi quem acabou o que Bocage começara, completando pela nacionalidade o plebeísmo da arte. Feito isto, seguia-se a revolução — e um poeta mancebo, desterrado como Francisco Manuel, rasgou a bandeira romana e hasteou a portuguesa. Os poemas — D. Branca e Camões —foram o sinal da revolta. As tradições da Arcádia estavam irremissivelmente condenadas.
Foi esse incompleto da escola elmanista que impediu nascesse no meio dela um teatro original. Deste houvera sido o fundador o Sr. Sebastião Xavier Botelho, se as suas tendências, o seu agudo engenho, e contínua aplicação a semelhante gênero de literatura fossem ajudados e acompanhados pelo espírito da época, e pelo caráter da escola a que pertencia. Debalde com a paciência e tenacidade de poeta, que são as maiores deste mundo, não levantou ele mão de uma empresa que era impossível levar a cabo, e em que tinha ficado vencido o incansável Manuel de Figueiredo e Garção, o poeta da Arcádia. A nacionalidade não existia ainda, e nacionalidade e teatro não há separá-los. O teatro é para as multidões, e o povo não entende senão quem lhe fala na sua linguagem e sobre as suas coisas; das suas tradições e crenças, ou das suas paixões e da sua vida atual.
Assim, com a lógica do gênio, o Sr. Botelho vira qual era a consequência da revolução literária para que ele contribuía; conhecera que feita popular a poesia, e tirada dos aposentos de senhores e poderosos, ou do seio das academias para ser lançada no mundo — porque ela é do mundo, devia tomar a forma mais adequada aos seus novos destinos; mas não viu, porque não podia ultrapassar as ideias do seu tempo, que a transição era incompleta. Foi por isso que se enganou nos meios, e pensou que trazendo à nossa cena as sublimes poesias líricas, épicas, e elegíacas, chamadas tragédias de Racine, e as dissertações dialogadas de filosofia incrédula, chamadas tragédias de Voltaire, o teatro ressurgiria; mas o teatro deixou-se ficar morto, porque não era a voz da individualidade nacional, que o revocava à vida.
Eis aqui, Senhores, a luz a que eu vejo a escola literária, a que pertenceu o Sr. Botelho no primeiro período da sua vida intelectual, e como me parece deve ser julgado ele próprio nas obras do seu engenho. A essa escola cabe um honrado lugar na história do progresso humano, ao Sr. Botelho toca especialmente o ter sentido, ou antes adivinhado, que, tornada popular a poesia, devia o drama vir a ser a sua mais completa expressão. Se não logrou seus desejos, segredo foi de cima. Não quis Deus que essa mente gigante viesse ajudar-nos a evangelizar a nova religião da arte com a eloquência da palavra, e com a mais veemente ainda, de obras dignas da imortalidade.
Vistes, Senhores, o nosso falecido consócio — lidando por honrar as letras portuguesas, e restaurar o teatro; viste-lo consagrando à poesia os anos próprios dela porque são os do imaginar; vê-lo-eis agora aplicando na idade madura a meditação, a energia do seu vigoroso talento, e a experiência alcançada no serviço da Pátria, a estudos positivos, ao desenvolvimento das mais graves questões sociais. O poeta afetuoso, delicado, harmonioso, converteu esse engenho de que a natureza tão prodigamente o dotara, à filosofia política, e nesta nova carreira do mundo positivo, quase posso dizer, escureceu a reputação que anteriormente adquirira no mundo da idealidade.
Foi na sua demorada residência na banda oriental das nossas desprezadas colônias africanas, como governador de Moçambique e dos vastos territórios adjacentes, que o Sr. Botelho coligiu os apontamentos e notícias para a sua Memória estatística sobre os domínios portugueses na África Oriental. Juiz incompetente, nada direi, Senhores, quanto à matéria do livro: escrito por um homem da capacidade do Sr. Botelho, e talvez em grande parte naquelas mesmas províncias, fácil é de supor qual seja o seu valor intrínseco. Violentamente acometida a obra em um dos principais periódicos literários de Inglaterra, a Revista de Edimburgo, tal e tão cerrada de razões e provas foi a resposta do Sr. Botelho, que não houve mais replicar, não sei se com quebra do orgulho inglês. Acerca da doutrina do livro, é esta em meu entender a mais cabal defensão.
O que porém, naquele precioso volume chega a causar uma dessas invejas que não desonram, porque são nobres e honestas, é o estilo e a linguagem dele. Tão sua tinha feito o Sr. Botelho esta formosa língua portuguesa, tão elegante e fluente é o seu descrever e narrar, que dificultosamente lhe levarão vantagem os nossos principais prosadores. Há no livro do Sr. Botelho uma circunstância que muitos têm notado: páginas inteiras das relações dos naufrágios, principalmente das que escreveu o célebre Diogo do Couto, se acham aí reproduzidas textualmente. Estas páginas, o mais exercitado leitor do Couto não será capaz de as distinguir entre as do nosso ilustre consócio, tão irmão-gêmeo é o seu estilo e linguagem com os daquele admirável historiador. Ou esse aparente plagiato fosse uma prova incontestável, que o Sr. Botelho nos quisesse dar, de que o seu talento e saber o igualavam com os nossos melhores clássicos, ou fossem reminiscências involuntárias (que não precisava ele d'alheios haveres para ser abastado) é indubitável que tal circunstância basta para caracterizar a alteza a que chegara como prosador aquele de quem como poeta dissera Bocage:
O solene idioma, o tom dos numes,
A voz que longe vai, que longe sobe,
Que soa além do mundo, além dos tempos.
Esta importante Memoria foi coordenada e concluída no período que discorreu desde 1828 até 1833, em que o Sr. Botelho esteve inteiramente afastado dos negócios públicos. Precedeu pois a sua composição aos opúsculos Políticos do nosso falecido consócio, por isso a mencionei primeiramente. Estes opúsculos são, a Carta a Sua Majestade I. o Duque de Bragança, impressa em Londres em 1833, e as Reflexões Políticas publicadas sucessivamente no seguinte ano. Escritos com a singeleza e sincera liberdade de homem que sentia bater dentro do peito um coração português, esses opúsculos são, literalmente considerados, uma nova coroa para o Sr. Botelho pela gravidade do estilo e pelo pensar profundo que neles transluz. Versam sobre importantes sucessos da época em que foram publicados. Nesse tempo de paixões violentíssimas, tais escritos pareceram talvez revelar em seu autor demasiado apego às coisas do passado, e ainda hoje assim pareceram a muitos. Todavia, confesso-vos, Senhores, que não vejo eu aí senão novos motivos de venerar a memória do nosso ilustre consócio, e de admirar a sua consumada prudência, e o seu amor de Pátria. É um filho extremoso que treme e desmaia vendo aplicar a seu pai velho e inferno, medicina violenta, que pode salvá-lo ou arremessá-lo ao túmulo. E quem ousaria condenar receios e hesitações de um filho, nesse arriscado momento?
A época de 1833 foi a única época revolucionária porque tem passado Portugal, neste século. Nem antes, nem depois, quadra tal epíteto aos sucessos Políticos do nosso país; porque só então foi substituída a vida interina da sociedade por uma nova existência. As forças sociais antigas desapareceram para dar lugar a novas forças; destruíram-se classes; criaram-se novos interesses, que substituíram os que se aniquilaram: os elementos Políticos mudaram de situação. — Podia esta mudança fazer-se lentamente e sem convulsões dolorosas, ou cumpria que a revolução fosse rápida e enérgica? Nem saber, nem vontade tenho eu para o resolver. O Sr. Botelho julgou que o mais conveniente método era o primeiro; disse-o sinceramente, e procurou prová-lo. Eis a substância do que nesses opúsculos pode parecer menos progressivo a esses cujo espírito vai após o futuro. Mas, na verdade, nem um só dos grandes princípios de reforma, que então se converteram em fatos, foi combatido pelo Sr. Botelho. A questão que ele tratou era a do tempo, e era a prudência quem movia a sua pena. As diligências para conter o rápido desabar das velhas instituições e costumes, era dever dos homens, cuja idade grave e capacidade extraordinária abonava d'experimentados. Inquieto e ardente é por natureza o espírito da mocidade neste século de grandes ideias e de grandes transformações. Aos velhos, aos que, melhor que nós mancebos, conheceram a sociedade que expirou, incumbe apontar-nos o que ela tinha respeitável e bom, e o que há em nossas opiniões exagerado ou perigoso, e a nós incumbe escutá-los com respeito. Esses homens falam-nos com a mão sobre o coração, porque entre eles e o julgamento de Deus, e da posteridade medeia só a grossura de uma loisa. Eles nos admoestam encostados à borda da sepultura, e raro será que até lá a hipocrisia ou a lembrança de mesquinhos proveitos acompanhem os que viveram sem mancha uma larga vida. Solenes e venerandas julgo eu as palavras da velhice, porque a velhice é uma espécie de sacerdócio, e quando o ancião se ergue para soltar um brado de reprovação, se escutarmos esse brado, ele poderá contribuir mais para o verdadeiro progresso do que se os últimos homens da sociedade extinta saudassem covardemente a vitória das novas ideias; se caminhando para a morte, imitassem os gladiadores de Roma, nos circenses do triunfo, que nesse momento supremo saudavam os Césares vencedores com aquelas horríveis palavras: "Salve, Cezar! Os que vão morrer te saúdam!" Arriscar-se-ia com isso a ser despenho o nosso progresso, e ao despenho segue-se ou o perecer no abismo, ou um doloroso retrogradar.
Considerados a esta luz, os opúsculos Políticos do Sr. Botelho não são mais que o complemento de dilatados trabalhos encaminhados constantemente ao aperfeiçoamento intelectual dos seus compatrícios. Poeta na mocidade, bem mereceu da arte: historiador e estadista na idade grave, mais bem mereceu da Pátria por escritos próprios dessa época da vida. Nós que o tratamos, que o vimos no meio de nós, que com saudade nos lembramos do seu mérito, fazemos-lhe inteira justiça. Far-lha-á também a posteridade — e mais completa; porque se como homem da arte e da ciência tão honrado nome deixou entre nós, que será para o mundo, que além dessas razões de lhe venerar as cinzas, tem a rica herança dos exemplos de virtudes domésticas, de amor de Pátria, de serviços ao estado, enfim de um nobre proceder — como homem, como pai de Família, e como cidadão? Os vindouros, que não nós, porão o cimo e remate ao formoso monumento da sua glória. — Disse.


---
ALEXANDRE HERCULANO 
Escrito em 1842, e publicado em: Opúsculos, tomo IX, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...