6/18/2019

O Cruzeiro da Via-Sacra (Conto), de Pedro Ivo



O Cruzeiro da Via-Sacra
CAPÍTULO 1
Quem hoje percorrer Portugal, e muito especialmente a nossa província do Minho, poderá presenciar milhares de cenas idênticas à que vamos descrever, se bem que esta há bons vinte anos que se passava numa das aldeias vizinhas de Braga.
Então, como hoje, rara seria a família que não chorasse a ausência de um filho levado ao Brasil pela ambição, ou antes, pela vista dessas casas forradas de azulejos, que hoje se contam por centenas, já orlando as estradas do Minho, já olhando para elas — do alto de uma rua ensaibrada, coberta pela folha verde da viçosa parreira, através das grades de vistoso portão de ferro.
Então, como hoje, no Brasil, nesse país a um tempo Capitólio e Tarpeia, deserto e terra da promissão, mãe e madrasta de tantos felizes, e ainda de maior número de infelizes, filhos desta velha terra portuguesa, então, como hoje, repito, grassava com cruelíssimo furor a febre-amarela, terrível nivelador, que não conhece jerarquias e vai ferindo às cegas.
Quem então, como hoje, nos serões de Inverno, colasse o ouvido à porta de qualquer das modestas casas em que se visse brilhar a mortiça luz da candeia, ouviria, depois da coroa, botada pela voz sonora do lavrador e rezada em coro pelo resto da família, uma enfiada de orações por vivos e falecidos, e por "tôdolos que andam por soblas águas do mar", e o que, com toda a certeza, havia de ouvir era a salve-rainha, que a voz do lavrador gradualmente tornada mais trêmula oferecia "à Virgem Mãe Santíssima, para que pedisse ao seu divino e amado Filho que desse vida e saúde"ao Manuel, Pedro, Paulo, Sancho ou Martinho, por quem sangravam os corações ali reunidos. Deixemos, porém, estas divagações e descrevamos o quadro, tal qual nos lembramos de o ter visto.
Estamos em casa de um modesto lavrador. A dona da casa, mulher dos seus quarenta anos, que os cuidados e trabalhos fazem parecer mais velha, tenta, agachada sobre o lar, acender um punhado de carqueja, e sopra inutilmente sobre algumas brasas quase extintas. A carqueja vai ardendo; mas, em vez de chama, apenas produz fumo, que obriga a pobre mulher a enxugar os olhos a miúdo.
Sentado no chão e quase nu, um pequenito de onze meses, que, se não tivesse a carita tão suja, faria lembrar os anjos louros e carnudos de Rubens, ri e baba-se de gosto, puxando os cabelos emaranhados de outro diabrete de nove anos, que, deitado de bruços no chão, em frente dele, lhe está fazendo cócegas nas pernas.
A um canto, numa cadeira, a que serraram os pés, metida entre uma arca enorme e a parede, vê-se uma pobre velha cega e surda. Se não fora um sorriso travesso, filho destes sonhos que iluminam de repente, como tênue raio de sol, o cérebro dos velhos e o das crianças, e veem, de espaço a espaço, refletir-se-lhes no rosto, julgá-la-ia morta.
Via-se que a dona da casa, em que já falamos, além da impaciência que lhe causava a má vontade — do lume, tinha alguma ideia que a afligia.
— Vai ver se teu pai vem, Joaquim — disse ela, erguendo a cabeça, ao ver por fim brotar a chama, e introduzir-se, brincando, por entre a carqueja.
— Já com esta faz quatro vezes! — rosnou o pequeno, levantando-se, pouco satisfeito, de ao pé do irmãozito.
Mal tinha, porém, transposto a porta, voltou-se para dentro, dizendo:
— Ele lá vem, minha mãe!
Viu-se que o primeiro impulso desta foi correr; de repente, porém, parou; em seguida caminhou a passos lentos para a porta e encostou-se à umbreira.
Não é possível descrever as mil sensações que vinham espeolhar-se-lhe no rosto!... Esperança e medo, ansiedade e desânimo, tudo isso traíam à porfia os olhos, que brilhavam para logo se empanarem de lágrimas, as rugas que o medo traçara na fronte e que a esperança desfazia, os lábios, que ora tremiam, ora se cerravam, como que obedecendo a uma resolução tomada mentalmente. Apenas o marido chegou a alcance da voz, bradou-lhe ela:
— Não há nada?
Mas como ela disse aquilo! Não sabia a gente se era pergunta, se dúvida, se afirmativa. Havia de tudo isso na inflexão.
— Há, há, mulher! Descansa; não traz obreia preta! — respondeu-lhe o marido, dissipando desta forma o receio principal que havia tanto tempo os trazia com a morte na alma.
A pobre mãe levou primeiro as mãos ao peito, como que receosa de que o coração lhe estalasse; depois, erguendo-as e cravando no céu olhos de inexcedível gratidão, exclamou:
— Louvado seja o Senhor.
E as lágrimas, esse sangue destilado que mana de uma chaga sempre viva no coração das mães, rolavam-lhe quatro a quatro pelas faces, zombando da ponta do avental com — que ela tentava estancá-las.
A nossa gente do campo é, em geral, para poucas expansões. Sentem bem, mas exprimem mal. Ainda assim, quando o marido chegou à porta, a mulher não teve mão em si que lhe não lançasse os braços em volta do pescoço, dando então livre curso ao pranto.
— Então que é isso... que é lá isso, mulher?... Tens-me andado sempre a animar, e hoje, que a obreia vermelha nos diz que o rapaz está fero e de saúde, pões-te para aí a chorar como uma criança!... Cara alegre, mulher!... Bota-me esse coração ao largo!... Jesus, Senhor!... — continuou ele, tirando-se dos braços da mulher. — Lembrar-me eu que meu pai— Deus te tenha lá! — me não mandou aprender a ler, e que, por isso, trago eu aqui uma carta de meu filho e tanto faz isso como nada, pois, se não fosse o bocadinho da hóstia vermelha, ainda agora estaria para saber se o meu Antônio,é vivo ou morto!... Anda cá, ó Joaquim, anda cá ler esta carta, meu homem!...
Lembrando-se, porém, de repente da ceguinha, chegou-se a ela, tirou o chapéu, e, beijando-lhe a mão, gritou-lhe ao ouvido:
— A sua bênção, minha mãe... Temos aqui uma carta do seu neto, do nosso Antônio!...
— Está bem, está bem... — respondeu a velha, de cujo coração a esponja do tempo tinha apagado todas as imagens.
— Vamos a isto, Joaquim, vamos a isto!exclamou por fim o lavrador, febril de ansiedade.

CAPÍTULO 2
Acabava o feliz pai de dizer isto, quando, do lado da porta, se ouviu uma voz que dizia:
— Ora louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo... Dá licença, vizinho?
O lavrador voltou-se, meio contrariado; reconhecendo, porém, o recém-chegado, reprimiu o gesto de impaciência e respondeu:
— É vossemecê, Sr. José? Pode entrar... Trouxe da cidade carta do nosso Antônio, e íamos ver o que ele diz... E o seu Francisco?... Não escreveu?...
— Não — redarguiu o outro com voz sombria.
— Pois então... escute — disse o dono da casa, que compreendeu imediatamente os tormentos que ralavam, naquele instante, o coração do vizinho. — Escute... Os rapazes foram no mesmo navio e recomendados à mesma pessoa, e então... pode ser que o meu Antônio fale no seu Francisco.
A cena que eu vou desenhar, faria a felicidade de um pintor!
No seu cantinho e indiferente a tudo, a cega; sentada numa rasa de medir o milho, curvada para diante, com as mãos apertadas entre os joelhos, toda ouvidos, toda lágrimas e risos, a mãe do ausente; sentada na arca, com as mãos fincadas nas costas de uma cadeira de pinho, pálida de comoção, com os olhos cerrados para esconder o pranto, o lavrador; encostado à umbreira da porta, triste e sombrio, indiferente aos sentimentos dos outros, e quase que acusando o filho do lavrador por não falar do dele, que nem sequer pedira a alguém para lhe escrever, o vizinho; e, formando centro, alvo de todos os olhos, encanto de todos os ouvidos, senhor de distribuir o sol ou a chuva a todos aqueles corações, o pequeno, que, ora só sobre um pé, ora coçando a cabeça, lá vai silabando a preciosa mensageira de boas novas.
Dizia a carta... o que dizem todas as primeiras cartas de uma criança que se vê longe dos seus. Contava que tinha chegado a salvamento; que o Senhor Capitão o tratara muito bem; que tinha sido perfeitamente recebido ~e que o senhor da casa, onde estava, lhe tinha dito que ficava com ele. Acrescentava que estranhara muito as comidas; que não se podia acostumar a ver tantos pretos; e aqui começavam as letras apagadas a denunciar as lágrimas de quem as traçara, porque, logo em seguida, principiava o rosário das saudades e das recordações, os beijos para a mãe e para a avó, o pedido da bênção do pai, as recomendações ao Joaquim para não bater no Pastor, cão de guarda da casa, todas estas pequeninas coisas, em que o coração se deleita, quando a saudade o estorce. Afinal em "post-scriptum" lá vinha que o patrão não sabia como havia de arrumar o Francisco, por ele não saber ler, e acrescentava que este lhe pedira para escrever por ele, mas que não tivera tempo para isso, e, portanto, que dissesse o pai ao Sr. José que o filho estava com saúde e lhe mandava muitas lembranças.
Quando se chegou a este período, o vizinho franziu o sobrolho e disse:
— Teve que fazer!... teve preguiça... é o que foi.
— Pode ser-retorquiu o lavrador, ferido no seu orgulho de pai. — Pode ser, mas... a culpa é sua, Sr. José. Se vossemecê tivesse feito como eu e mandasse o Francisco à lição, já ele não precisava do meu filho.
— Melhor sorte lhe dará Deus!... nem nós lá vamos tão depressa!... — respondeu o outro. — Lá porque o seu Antônio sabe ler, não se segue que o meu Francisco venha a precisar das sopas dele! — insistiu o pai, despeitado, envenenando de propósito o sentido das palavras do vizinho. — E, demais — prosseguiu ele — as mãos não servem só para escrever!... Haja saúde e vontade de trabalhar, que aqui estamos nós, que temos ganho a nossa vida sem ter aprendido a ler!
— Não me torça o bico ao prego, Sr. José!... Vossemecê não seja ruim!... Ninguém lhe disse que o seu Francisco viesse a precisar das sopas do meu Antônio!... Isso é vontade de pegar! — redarguiu o lavrador, reagindo contra a má interpretação do que dissera.
— Está bom, está bom! — atalhou a mulher, assustada pelo aspecto que a conversa ia tomando.
— Não é com essas! — insistiu o vizinho. — Eu bem sei onde vossemecê quer chegar... Tem graça!... Lá porque o menino sabe ler, já aí há de vir para o ano, feito brasileiro, e, quando Deus quer, traz o meu Francisco como criado dele!... Tem graça!
— Bem, bem... Vossemecê tem desculpa... Não teve carta do rapaz... entende que o meu Antônio tinha obrigação de escrever... não dá desconto às coisas... Acabou-se!... Pense lá o que quiser! — replicou o lavrador, encolhendo os ombros, mas visivelmente impaciente.
— Penso, sim senhor! — retorquiu o Sr. José, irritado pela afetada bonomia do vizinho. — Penso que a racha sai a acha!
— Vossemecê que quer dizer? — perguntou o lavrador, apertando convulsivamente a cadeira a que estava fincado.
— Quero dizer, que filho de peixe sabe nadar!
— Mas que quer dizer isso? — perguntou o
lavrador, saltando abaixo da arca.
— Quer dizer que, neste mundo, é preciso saber levar a água ao seu moinho... Ora o meu Francisco... não sabe... não sabe fazer mesuras; só sabe trabalhar... Aí está o que lhe faz falta... mais do que não saber ler nem escrever... Já ao pai lhe tem sucedido o mesmo... O Antônio teve melhor mestre... Lá isso teve! — acrescentou o Sr. José, dirigindo-se para a porta.
— Alto! — bradou o lavrador, estorvando-lhe a passagem. — Vossemecê não sai daqui sem explicar o que quer dizer na sua!
— Quero dizer — replicou o outro, dando largas à bílis — quero dizer que foi vossemecê quem, pela feira de Março, ficou com os bois que eu já tinha apalavrados!
— Sr. José, eu já lhe disse que não sabia que vossemecê queria os bois, e logo então lhos ofereci pelo custo! — exclamou o lavrador, dorido da injustiça.
— Nem que eles fossem de ouro!... — replicou — o Sr. José desdenhosamente. — Eu não preciso das migalhas de ninguém!... Mas é melhor calar-me... — continuou, dirigindo-se para a porta. — Ainda há mais do que isso...
— Então que mais há? — exclamou arrebatadamente o acusado.
— Quem traz hoje de renda o campo da Valeira?... E quem o trazia antes?... Não é vossemecê?... Não era eu? — perguntou, rubro de cólera, o acusador.
— Sr. José — redarguiu o lavrador, exasperado — vossemecê bem sabe que foi pelos dares e tomares que teve com o Antônio da Quinta, que este lhe não tornou a arrendar o campo... Que mal havia em que eu o arrendasse, uma vez que lho não arrendavam a si?... Tenha vergonha!... Não seja invejoso!
— Pois não seja vossemecê intriguista! — replicou o outro violentamente.
— Vossemecê não me faça perder a cabeça! — vociferou o lavrador, agarrando maquinalmente a cadeira e mexendo-a com mão nervosa.
— Perder a cabeça, o quê?... — perguntou o Sr. José, entre irônico e ameaçador. — Esteja quedo com a cadeira, homem!... Olhe que eu nunca morri de medo, nem vossemecê é homem que me meta medo, louvado Deus!
— Saia! — exclamou o dono da casa, brandindo a cadeira.
A mulher agarrou-se-lhe ao braço, sem se importar com as vozes de "deixa-me, mulher! deixa— me!", a que ela respondia pedindo ao marido que se não deitasse a perder.
Neste meio-tempo o outro saíra, e desafiava o vizinho a que fosse, lá fora, dar-lhe com a cadeira. A mulher correu então à porta e fechou-a; mas ficou aterrada, por o vizinho rosnar, ao retirar-se:
— Deixa que tu pagá-las todas juntas!
E assim se anuviaram tantas alegrias!
O lavrador passeava agitado, com a testa franzida e as mãos atrás — das costas; a mulher lidava nos arranjos do jantar, lançando de vez em quando olhares furtivos para o marido, enquanto que o pequeno, que lera a carta, calado e quieto, pela primeira vez na sua vida interrogava alternativamente o rosto do pai e o da mãe, perguntando a si próprio se teria por acaso alguma culpa em tudo aquilo. E, alheios ao que se passava, o pequenito, com um dedo na boca, tentava pôr-se a pé, agarrando-se — com a mão livre à saia da cega, ao passo que esta continuava a perseguir em sonho uma recordação do passado ou visão do futuro, pois o presente nada lhe dizia já.

CAPÍTULO 3
Ao leitor, bondoso e bem-intencionado, deve ter-lhe custado — a compreender que um homem — um pai! — angustiado pela incerteza, pelo receio do flagelo que semeara o luto no seio de tantas famílias, só encontrasse ironias, ouvindo ler uma carta que lhe retirava de sobre o peito o enorme peso da dúvida... Aí vai a explicação:
Se, quando ouvimos uma frase que nos ofende, pudéssemos ler no coração de quem a profere, veríamos muitas vezes lá dentro tanta amargura e tão intenso sofrer, lutas tão tremendas, chagas tão vivas e fundas, tão dolorosas contusões de amor-próprio e mal fechadas cicatrizes de reais ou supostos agravos, que, longe de repelirmos a frase com aspereza, talvez só encontrássemos em nós profunda e sincera compaixão pelo ofensor! E, demais, quem pode prever o alcance da primeira palavra que nos sai dos lábios?!... Haverá quem não conheça o efeito dessa embriaguez da palavra, embriaguez mais poderosa, exaltada e terrível em seus efeitos do que a causada por outro qualquer agente?!... O som da própria voz é uma espécie de aguilhão, que nos excita, que nos arrasta, que nos aplaude, que nos grita aos ouvidos:
"Bem, muito bem! Continua!..."
O mau é soltar a primeira palavra; solta ela, vem a necessidade da justificação, a recordação de todos os pecados velhos, a ânsia da desforra, o choque violento das más paixões, o obscurecimento da razão, e — vai-se sempre mais longe do que se queria ir.
O Sr. José, mestre carpinteiro, não era o que vulgarmente se chama um homem de maus fígados. Não era! tinha apenas essas fumaças de valente, desgraçada mania da nossa gente do Minho, que tanto tem dado que fazer aos cirurgiões e sobretudo aos endireitas.
O pior defeito, porém, do mestre carpinteiro era o espírito de contradição, que quase se poderia dizer que se havia encarnado nele. Em alguém dizendo: "Acolá vai um gato branco", era contar que ele só via um gato preto! E era contar que o gato nunca mais se tornava a lavar e ficava preto para todo o sempre, pois ali estava ele, o Sr. José, pronto para sustentar a murro, a pau e a tiro, entre as paredes de uma cadeia ou pregado numa cruz, que era preto o gato e não branco, como toda a gente dizia. Este desgraçado vício tinha-lhe sido causa de um sem-número de desgostos, o mais severo dos quais vamos contar, por prender diretamente com esta narração.
Antônio, o filho do lavrador, era cerca de um ano mais velho do que Francisco, filho do carpinteiro. Inteligente e estudioso, no fim de um ano de escola, não havia aí livro impresso, nem, o que mais era, sentença manuscrita, que o pequeno não lesse, como se costuma dizer, de fio a pavio. Uma noite em que o carpinteiro estava em casa do lavrador, este, com a santa e respeitável vaidade dos pais, chamou o filho e fê-lo ler meia dúzia de páginas do Catecismo, para o vizinho ouvir. Durante a leitura entrou o Francisco e foi sentar-se ao pé do pai. Quando o rapazito acabou de ler, virou-se o dono da casa para o vizinho e perguntou-lhe:
— Que lhe parece?... Olhe que, a não ser o Senhor Abade e o mestre-escola, não há aí quem leia melhor do que ele!
O Sr. José, por deferência para com a mania querida, esteve quase a dizer que o rapaz não sabia ler; conteve-se, porém, e rosnou um "lê bem"pouco animador. O lavrador, agarrando então uma das orelhas do filho do carpinteiro, perguntou-lhe, gracejando: 
— E tu, meu rapagão, não queres saber ler como o Antônio?... Diz ao teu pai que te mande à lição, meu rapaz... Olha que candeia que vai adiante, alumia duas vezes, e, quanto mais depressa souberes, melhor será para ti.
Aqui entendeu o Sr. José que era chegada a ocasião de satisfazer o seu gostinho, e declarou, portanto, que não havia doutorices, como ele chamava ao saber, que valessem um bom par de braços.
Como é fácil de prever, travou-se a discussão, e tanto se deixou ir o Sr. José atrás da paixão de contradizer que, depois de negar as vantagens da instrução, acabou por declarar que filho seu não aprendia a ler.
E se bem o disse, melhor o executou!...
Executou; mas, como não há argumentos de amor-próprio que destruam a rigorosa lógica da razão, que severa punição lhe era, agora que o filho estava longe, pensar que entre eles não poderia haver segredo em que não tivesse parte um terceiro, carícia que não fosse feita por mão de outrem, abraço que recebesse, a não ser por procuração!
Duro castigo!
Quando regressara da cidade sem carta do filho, todas estas ideias lhe haviam lanceado por tal forma o espírito, que, quando chegara a casa do vizinho, já ele mentalmente o tornava culpado do seu infortúnio, e, ao ouvir ler a carta, cujo post-scriptum afirmava que, por causa do signatário dela, ficava ele sem notícias mais íntimas do filho, operou-se-lhe no cérebro uma revolução singularíssima!
O egoísmo teve traças para o convencer de que em virtude da suposta culpa do pai, o filho do vizinho tinha obrigação de ler e escrever pelo dele. Pertencia-lhe metade daquela aptidão; tinha direito a ela; não compreendia que Antônio se recusasse a satisfazer o desejo de Francisco, sem o lesar na sua metade de saber!
Juntem a isto o caso dos bois, e o do campo, e aí está dada a explicação, que consumiu mais tempo e papel do que merecia.

CAPÍTULO 4
Tinham passado quinze dias depois da ruptura que se dera entre os dois vizinhos. O Sr. José, contra o seu costume, não tinha dado mostras de querer confiar ao marmeleiro, seu advogado usual, a vitória da sua causa, e a mulher do lavrador, a quem as últimas palavras do carpinteiro "deixa que tu pagá-las" tinham feito perder o sono, começava a respirar mais livremente, confiando em Deus, que tudo faria pelo melhor.
Amanheceu afinal um dia formoso, e ela, que até ali, já com um pretexto, já com outro, pudera obrigar o homem a não se afastar da aldeia, não pôde achar razões convincentes para o impedir de ir à cidade. E lá foi ele, mas não sem prometer um bom centro de vezes que não voltaria de noite.
Só quem as tem sentido pode avaliar as angústias de quem espera, com a mente povoada de sinistros pressentimentos, a chegada de um ser estremecido, quando paira sobre ele uma ameaça de perigo!
O assobio, que se ouve ao longe, é dele; os passos, que fazem estalar lá fora as folhas secas, são dele; o mocho que pia no campanário da aldeia, o cão da casa uivando dão-no em perigo!
E ninguém com quem desabafar! De um lado a cega imóvel e indiferente, do outro os filhos sorrindo sem preverem nem o perigo nem o alcance dele! E então vêm as razões com que procuramos conjurar o fantasma do terror, restituindo a tranquilidade à nossa alma:
"Teve que fazer na cidade... O carpinteiro é assomado, mas não é mau... Já lhe passou... A estas horas está ele a cear ou... talvez a dormir..."
E aí se vai à porta pela milésima vez; e a vista perturba-se, tentando penetrar as trevas, e começa a ver assassinos escondidos atrás de cada tronco de árvore; e os ouvidos, cansados da aturada atenção, entram — de obedecer à voz interior e distinguem o som de passos precipitados, vozes irritadas, chegando às vezes a inventar gritos de socorro!
Como sofre quem espera sob a influência do terror!

CAPÍTULO 5
Serão oito horas da noite. O céu está recamado de estrelas, mas os corpos não projetam sombras, porque o luar só aparece às nove horas.  
O sítio incute respeito: é o monte da via-sacra. Se fosse de dia ou o luar brilhasse, poder-se-iam contar as cruzes que a partir da capela, ereta no cimo do outeiro, se erguem pelo monte abaixo, numa distância de vinte passos de umas às outras.
Numa pequena elevação, sobranceira ao caminho, a cerca de trinta passos do primeiro cruzeiro da via-sacra, guiada a vista pelo brilho do lume de um cigarro, acabava-se por distinguir o vulto de um homem, sentado, como pau traçado sobre os joelhos. Era o mestre carpinteiro que esperava ali o vizinho, para lhe provar a justiça da sua causa.
Quem lhe pudesse ler no cérebro acharia isto:
"Muito mal... não... Quinze dias de cama é nada mais... Há de levar a sua dose para não tornar a ter o atrevimento de levantar uma cadeira para mim!"
E tão certo estava de si, que continuava filosoficamente a fumar o cigarro, esperando o lavrador com a pachorra com que um pescador de profissão espera horas até que uma truta se lembre de vir brincar com o anzol.
Por fim, lá lhe pareceu que ouvia ruído de passos, e ergueu-se. Não se enganara: era o lavrador. Subia este a ladeira apressadamente, estimulado pela lembrança do susto com que a mulher o estava esperando, quando o carpinteiro, de um salto, se achou defronte dele. O lavrador reconheceu-o imediatamente, mas não se deu por achado, e perguntou com voz cuja afetada segurança traía o sobressalto interior: — Quem temos por aqui?
O outro, rindo sarcasticamente, respondeu: — Alguém que vem ver-se você é homem para outro!
— É vossemecê, Sr. José? — redarguiu o lavrador, buscando ganhar tempo para achar saída àquele aperto.
— Um seu criado, para o servir com umas asas de pau!... Pode mandar dizer isto ao seu doutor, a ver o que ele de lá responde! — prosseguiu o carpinteiro.
— Ele que há de dizer? — retorquiu o lavrador, tentando levá-lo pelo brio. — Há de dizer que nunca pensou que o Sr. José viesse esperar um homem que nunca lhe fez mal, e que nem sequer traz um pau, como esse, para se defender.
— Pois dirá... dirá, sim senhor, mas... enganou-se!... Não traz pau?... Faz mal, se bem que nessas mãos, de pouco valia!... Mas leva rumor e acabemos com isto, que eu não vim cá para conversar!
E, fincando um pé um pouco mais atrás, ergueu o pau. O lavrador compreendeu que não havia compaixão a esperar, e, confiando com razão no vigor dos próprios músculos, deu um salto para diante, ao tempo que o adversário erguia o terrível marmeleiro, e estreitou-lhe o corpo com os braços. O carpinteiro, vendo-se abraçado, deixou cair o pau, já agora inútil, e arcou com o vizinho, murmurando apenas por entre — os dentes cerrados:
— Ah! cão, que me embaçaste!
Começou então uma luta horrível entre aqueles dois homens, ambos ainda jovens, ambos vigorosos. Depois de alguns minutos de esforços inauditos, para ver qual deles subjugaria o outro, o pé do carpinteiro encontrou uma velha raiz de árvore, que o fez cair de costas, arrastando na queda o seu contrário. Este, aproveitando a vantagem, desprendeu um dos braços e apertou vigorosamente o pescoço do inimigo, que espumava de furor, sem exalar um queixume. Não tardou, porém, que uma ideia horrível viesse paralisar o esforço do lavrador. Pareceu-lhe que o vencido tentava meter a mão no bolso, viu-se esfaqueado, passou-lhe diante dos olhos a imagem da mulher e a orfandade dos filhos, ergueu-se e fugiu.
Não se enganara. O carpinteiro lembrara-se, de repente, que trazia uma navalha no bolso, e, cego de furor, parecia-lhe ainda pequena vingança a morte daquele homem, que o estava ali estrangulando. Mal o lavrador largou a fugir, levantou-se também e correu atrás dele com a navalha aberta na mão.
Era horrível aquela corrida, a que um era estimulado pelo medo e o outro pelo ódio. O lavrador, porém, além de se ter ferido num joelho, quando rolara por terra abraçado com o carpinteiro, era também mais pesado do que este.
Ouvindo atrás de si os passos do inimigo e sentindo-se quase impossibilitado — de tomar fôlego, abandonou-o de todo a energia, e, correndo para o primeiro cruzeiro da via-sacra, abraçou-se com ele, e, voltando o rosto para trás, bradou:
— Pela cruz em que morreu Nosso Senhor, não me mate!
— Também nela morreu o mau ladrão, maroto!... — bramiu o carpinteiro, com os lábios quase colados ao ouvido do desgraçado, e comprimindo-o com a mão esquerda contra a cruz, ao passo que, com a direita, buscava cravar a navalha.
***
A mão, que se dispunha a embeber o ferro, caiu inerte, e o lavrador, sentindo afrouxar a presa do contrário, deu um salto para o lado, viu-o dar um passo para trás, cambalear e cair de bruços no chão, como atordoado. Depois — de o contemplar um instante, como quem não compreende, lembrou-se da mulher e, como se tivesse criado novas forças, correu em direção a casa, que ainda ficava a bons vinte minutos dali.

CAPÍTULO 6
Como o honrado lavrador o conta ainda hoje, nunca o caminho até casa lhe pareceu tão longo nem ele o andou em menos tempo! Quando chegou, ia por tal forma impressionado pelas diferentes peripécias, mas sobretudo pelo desfecho da luta, que, mal entrou, fechou instintivamente a porta da rua à chave e deixou-se cair ofegante numa cadeira.
A mulher, pensando naturalmente que alguém o perseguia, esteve quase a gritar por socorro; deteve-a, porém, a reflexão, e ficou extática e trêmula, toda curiosidade e medo, com os olhos cravados no marido, à espera que este se explicasse.
Dominada, por fim, a emoção, correu o lavrador para os filhos, beijando-os freneticamente, e, apertando em seguida a mulher contra o peito, num destes abraços mudos, que tanto dizem, que traem o receio de uma separação eterna, desfeito pelo prazer de tornarmos a ver quem já considerávamos perdido para nós, contou-lhe, afinal, o perigo de que se vira livre por modo tão sobrenatural.
— Olha que foi castigo do Senhor, por ele não respeitar a cruz, quando lhe pediste por ela!... Olha que foi, João!... — exclamou a mulher, ouvindo como o carpinteiro caíra fulminado.
— Foi, mulher... decerto foi... — concordou ele. — E louvado seja Ele, que se lembrou que eu tinha filhos para criar e uma santa, como tu, para me ajudar nesta tarefa!
A mulher, obrigando então o filho mais velho a ajoelhar diante do modesto crucifixo, aos pés do qual ardia a luz — de uma lamparina, elevou a Deus uma destas preces, em ação de graças, mais imponentes na santa singeleza e mudez com que sobem do coração aos lábios, do que o pomposo "Te-Deum" com que a ostentação vaidosa dos grandes costuma julga retribuir qualquer benefício recebido.
Nessa noite, a não ser o pequeno, ninguém tocou na ceia; havia, contudo, o que quer que fosse que embargava a fala dos dois cônjuges e os não deixava erguer da mesa. Conhecia-se que tinham medo de se ir deitar. De tempos a tempos, os olhares de ambos encontravam-se, para logo se esquivarem, como receosos de traírem o que os corações sentiam. Aquele silêncio, porém, aquele constrangimento desusado entre eles, pesava-lhes!
Afinal, a mulher, dando a conhecer o pensamento secreto, balbuciou com voz trêmula:
— Mas por que cairia ele?!... Ó João, e se ele está morto ou... para morrer?!...
o marido, fazendo um violento esforço para sair daquela espécie de adormecimento moral, ergueu-se e entrou de passear silencioso.
Após alguns instantes, a mulher, vencendo a natural timidez, perguntou, hesitando:
— Ó João, e... e se tu fosses pedir conselho ao Senhor Abade?... Ele é tão bom homem!...
— Tiveste a minha ideia, mulher!... Vou lá de caminho! — respondeu o lavrador.
E, pegando na espingarda que estava pendurada a um canto, fora do alcance dos filhos, abriu cautelosamente a porta, sondou com a vista as vizinhanças da casa, e partiu, com pé ligeiro e coração pesado, em direção ao passal.
Seriam dez horas, quando João bateu à porta da casa do abade. Já tudo dormia, de forma que teve de repetir a pancada.
Depois de alguns instantes de espera — os precisos para acender a vela e lançar um capote aos ombros — ergueu-se a meia vidraça da janela e apareceu a cabeça do padre, que perguntava em tom comovido:
— Quem é? Está alguém doente?
— Sou eu, Senhor Abade... e preciso muito falar-lhe... agora mesmo — respondeu o lavrador.
— Pois és tu, João!? — redarguiu o outro com manifesto espanto, reconhecendo a voz do freguês. — Que me queres, homem de Deus?!
— Abra, pelas almas, Senhor Abade! — insistiu João.
— Está bem, filho, está bem... Espera um instantinho que eu vou já abrir-disse o velho, que logo viu — que o assunto era grave.
A porta abriu-se e João entrou. Instantes depois sabia o abade tudo.
Bastava ver o padre uma vez, para se ficar com a certeza de que era um destes justos, que servem para afirmar a existência da virtude na terra, um destes sacerdotes que são uma espécie de bênção para o rebanho confiado ao seu cuidado; não admira, pois, que mulher e marido tivessem tido a mesma ideia. Aquele... era o padre como eu o concebo, e como Deus decerto os ama — pai e juiz, cireneu e confidente.
— Foi a cruz, filho!... Não foi outra coisa! — exclamou ele.— Mas é preciso lá ir, João... Vamos lá ambos... — prosseguiu o velho, a quem assaltara a ideia de que o carpinteiro fora vítima de uma apoplexia causada pela excitação, senão filha da rude carícia da mão do lavrador, quando lhe cingira o pescoço. — Vamos lá, homem... — continuou ele. — Mas, primeiro, põe-me já ali a espingarda naquele canto... Não é precisa...
O abade acabou de vestir-se, e, apoiado a um cajado, pôs-se a caminho, precedido pelo lavrador, a quem entregara um lampião.
Cantavam os galos quando os dois chegaram ao pé do cruzeiro onde caíra — o infeliz adversário do lavrador. Aterrado, e vendando os olhos com a mão esquerda, João estendeu a destra, que sustentava o lampião, para alumiar o sítio fatal, onde devia jazer o carpinteiro.
Oh! que alívio sentiu, quando o abade, depois de olhar, exclamou:
— Cá não está ninguém!... Tu sonhaste, João! Só então se atreveu este a retirar a mão dos olhos e a fitá-los no chão.
Não tardou que o abade, pegando no lampião para observar o solo, se convencesse de que o seu paroquiano não fora vítima de um sonho.
A primeira coisa que lhe feriu a vista, foi uma poça de sangue coagulado, rente ao tosco degrau que servia de base ao mal lavrado pedestal do cruzeiro. No meio do sangue jazia uma pedra.
O padre olhou atentamente para ela, e, erguendo em seguida o lampião, viu que o cruzeiro não era, então, mais do que um enorme T de pedra.
Baixando lentamente o braço, o sacerdote murmurou com voz contrita:
— O dedo de Deus!
E ficou por alguns instantes com a fronte pendida sobre o peito.
Saindo, afinal, daquele íntimo cogitar, voltou-se para o lavrador, dizendo:
— Vamos embora, João... Tu vais para casa, e eu, — de lá, vou ver se o infeliz precisa de mim.

CAPÍTULO 7
Vejamos agora o que foi feito do carpinteiro.
Quando recuperou os sentidos, não poderia dizer quanto tempo lhe durara o delíquo. O seu  primeiro movimento foi acudir com a mão à cabeça e viu que estava ferido. Sentou-se por terra,  diante da cruz, e começou a coordenar as ideias.  Passaram-lhe então, diante dos olhos, todos os  episódios da briga até ao momento em que intervenção estranha o prostrara por terra. Ecoaram-lhe nos ouvidos as preces de piedade, soltas com voz de indizível agonia pelo seu contendor, e acudiu-lhe à mente o cruel sarcasmo com que lhas abafara. Ao chegar a este ponto, ergueu-se, aterrado, e bradou:
— Foi a cruz!... Estou perdido!
Ninguém imagina os tormentos que abalaram então aquela robusta natureza, enérgica no bem como no mal, fiel na crença de Deus e de um mundo futuro, dividido em dois campos — Céu e Inferno!... E o desgraçado viu-se abismado no último pelo insulto feito ao símbolo que dá entrada no primeiro!... Quis rezar e não pôde! Perseguido por uma ideia fixa, com o cérebro enfraquecido pelo sangue que perdera, pôs-se a caminho para casa, mas uma singular coincidência veio redobrar-lhe o martírio!
Ia alta a Lua a essa hora, de forma que ao longo do caminho que tinha a percorrer até vencer o outeiro da via-sacra, os seus olhos só encontravam cruzes!... Se os erguia... via-as a prumo de vinte em vinte passos; se os baixava... lá estavam traçadas na terra pela projeção da sombra!
O que faz essa outra mais pesada de todas as cruzes — a cruz do remorso!... Que via-sacra!... que horrível subida do Calvário!
Deixara ele, finalmente, atrás de si o outeiro, quando avistou ao longe o lampião dos dois que vinham procurá-lo. Escondeu-se atrás de uma árvore e esperou que passassem.
Que recrudescer de remorso!
O seu adversário, o homem que ele duas horas antes quisera matar, em vez de se fazer acompanhar pelo homem da lei, fora bater à porta do homem de Deus; em vez da vingança — o perdão; em vez do — castigo-a absolvição!
Quando chegou a casa e olhou para dentro de si, teve horror de si próprio e caiu de novo sem acordo. O padre, na volta, foi encontrá-lo a debater-se contra os fantasmas que a febre lhe criava e fazia surgir ante os olhos da alma.

CAPÍTULO 8
Dois meses teriam decorrido, depois destes acontecimentos. O carpinteiro já se erguia da cama, mas ;ainda não saía à rua, e em casa do lavrador reinava a paz. Um domingo, depois da missa, quando João já ia a retirar-se — com a mulher e o filho, assomou o abade à porta da sacristia e disse com risonho semblante:
— Ó João!... Deixa ir a mulher, mas espera tu, pois preciso de te falar.
A mulher foi indo adiante e ele ficou. Saiu, por fim, o padre e, travando-lhe amigavelmente do braço, disse-lhe:
— Mal tu sabes onde eu te vou levar!
— Eu com o Senhor Abade vou até ao... fim do mundo! — respondeu o lavrador, que se conteve a tempo de não acompanhar o padre ao Inferno.
O ancião sorriu com bondosa malícia, por perceber a emenda, e continuou:
— Vá lá! Vou-to dizer!... Nós vamos em romaria à cruz da via-sacra!... Que dizes?
Ao lavrador arrasaram-se-lhe os olhos de água, e por única resposta, apesar da resistência do santo velho, beijou-lhe a mão.
E lá foram os dois.
Imagine, porém, o leitor qual seria a admiração do honrado homem, quando, ao chegar perto do cruzeiro, viu o seu inimigo, o Sr. José em pessoa, de chapéu na mão, contemplando melancolicamente o degrau da cruz onde batera com a cabeça?!...
O rosto pálido e emagrecido mostrava bem os sofrimentos que lhe haviam minado a alma, ainda mais do que o corpo, e o lenço vermelho, que lhe cingia a fronte, indicava que a cicatriz ainda não estava completamente fechada.
João, ao ver o carpinteiro, hesitou, mas a um olhar do padre continuou a andar. Chegados ao teatro da briga, os dois contendores miraram-se em silêncio: da parte do lavrador havia enleio, no carpinteiro percebia-se sincera comoção.
— Então, José!... — disse o padre, dirigindo-se ao último.— Foi para isto que me pediste que trouxesse cá o João?
— Esteja descansado, Senhor Abade... — respondeu o carpinteiro.
E, voltando-se em seguida para o lavrador, disse-lhe: 
— Vizinho, vossemecê é melhor do que eu... Conheço-o, tenho certeza disso... Quem vai buscar este santo homem, em lugar de trazer o regedor, para levantar do chão quem o quis matar, não é capaz de negar a sua mão a quem lhe pede, por esta cruz que o salvou, que lhe perdoe!...
O lavrador precisou de respirar para poder responder, tanto a emoção lhe tolhia a voz. Apenas, porém, pôde falar, estendeu francamente a mão ao arrependido, dizendo-lhe:
— Não falemos mais nisso, vizinho... O que lá vai, lá vai... Está perdoado!... Se o merecia, bem castigado foi!... Não falemos mais nisso, se é meu amigo!
— Fui castigado e ainda o estou a ser!... — redarguiu o outro, que, entregando uma carta ao padre, continuou: — Senhor Abade, faça favor de ler essa carta do meu Francisco outra vez, mas alto...
Dizia a carta que ele, Francisco, tinha tido a febre-amarela, e que, se escapara, o devia aos cuidados do seu amigo Antônio. Acrescentava ainda que este se recusara desta vez a escrever, dando como desculpa não querer fazer elogios a si próprio, sendo por isso escrita por outro companheiro, e terminava por anunciar ao pai que, como se fora pouco o que por ele fizera, o filho do lavrador o andava ensinando a ler.
Terminada a leitura, o carpinteiro, que se tinha sentado no degrau da cruz com o rosto metido entre as mãos, ergueu-se e disse, com as faces úmidas de pranto:
— Já vê, Sr. João, que o castigo continua!... Cada benefício, que me vem de si ou dos seus, torna mais feia a minha má ação!
— Ainda podia ser pior! — interrompeu o padre.
E, apontando para a cruz derrocada, prosseguiu:
— Dá graças àquela, que não quis que tu fosses a esta hora um assassino!

CAPÍTULO 9
O leitor está sentindo lá por dentro um malicioso prazer, imaginando que eu tenho andado a fugir à explicação do mistério — pois é, por enquanto, um mistério a intervenção da cruz na pendência; nem essa intervenção lhe parece ter explicação possível...
Ora enganou-se o leitor!... O verdadeiro, o real explica-se sempre, e este é um conto... que não é um conto: é um fato verdadeiro e acontecido, que o santo abade me explicou com toda a clareza, como vai ver.
A cruz, assente sobre o tosco pedestal, de que já falamos, era formada de três peças: a haste, os braços e o topo.
Em noite de medonho temporal, o fogo do céu baixara  — quem sabe se já intencionalmente!... —  e, lanhando o resto, cortara o topo da cruz em duas metades desiguais, ficando uma destas inclinada para diante, segura apenas pelas garras de vigorosa hera. Quando o carpinteiro comprimia o inimigo contra a cruz e apontava o ferro para lho cravar, o lavrador, por um movimento convulsivo, puxou com as mãos os ramos da hera, e estes, crestados pelo raio e mortos, cederam, estalando e fazendo cair, uma para cada lado, ias duas metades da pedra que formava o topo da cruz. A metade que pendia amparada pelos ramos, como já anteriormente dissemos, veio então bater na cabeça do carpinteiro, quando este proferia ao ouvido do adversário a sua feroz ironia:
— Também nela morreu o mau ladrão!
***
Eu estou — daqui a ver o leitor enleado por não saber dar um nome a esta intervenção da modesta cruz da via-sacra... Faça como o padre... e como eu... chame-lhe:
O DEDO DE DEUS!

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