7/05/2019

Bater nos dedos não vale! (Conto), de Brito Camacho



Bater nos dedos não vale!
Como os dias corressem quentes, de um sol abrasador, tinha-se construído uma barraca que abrigasse a multidão. Esperava-se que a concorrência fosse grande, maior que de costume, pois que o assumpto era de uma gravidade excepcional, como nenhum outro se ventilara ainda em assembleias populares, desde que fora implantado o constitucionalismo. Um cidadão flatulento tivera um descuido irreverente à passagem do cortejo real, no dia em que abrira o parlamento, e como Argus andasse por ali a farejar a hidra, com uma acuidade sensorial de hiperstesia nevropática, logo entrou no conhecimento do caso pela dupla via do nariz e dos ouvidos. Agarrado violentamente por um braço, o mísero cidadão lá marchou para o calabouço, confessando o crime, mas negando a intenção criminosa, oferecendo todas as desculpas e explicações que dele exigissem como expiação da sua falta involuntária.
Interrogado pelo comissário, jurou pela sua honra que o seu desabafo intestinal não obedecera a nenhum propósito de manifestação política, lamentando-se de não ter nos esfíncteres a mesma rijeza que tinha nas convicções. E a abonar os seus dizeres, tirou da algibeira do casaco um frasco de carvão Belloc, que ofereceu ao exame do comissário.
Quis, porém, a sua má sorte que, ao destapar o frasco, cometesse a mesma irreverência que o trouxera ali, agarrado pela mão de ferro de um Argus farejador. Enviado para juízo, respondeu em polícia correcional, e foi posto à disposição do governo.
O comício era para protestar contra a violência sem nome, havida para com um cidadão sem culpa, e reivindicar ao mesmo tempo os sacratíssimos direitos da Ciência, no que respeita às leis que regulam a expansibilidade dos gazes em recipientes mal fechados.
O calor era de rachar, de modo que foi fácil aos oradores aquecer a multidão. Nunca se vira espetáculo assim grandioso, milhares de bocas gritando num entusiasmo louco, e milhares de braços erguendo-se em gestos desesperados, como se fossem vingar ali mesmo o nefando crime do Poder. Se não somos um bando de cobardes, gritava um orador, é preciso que este crime não fique impune, que seja lavada em sangue esta afronta. O cidadão condenado tem de ser posto em liberdade, e no dia glorioso em que proclamarmos o reinado do direito e da justiça, erguendo o edifício esplendente do futuro sobre as ruínas sangrentas do passado, será esse mesmo cidadão quem dará as salvas do estilo... se ainda tiver flatulências.
Rasguemos o peito heroico, e ofereçamos ao abutre do despotismo o nosso coração generoso...
Nisto cai um barrote, e apanhando pela cabeça um cidadão que estava à frente, fez-lhe uma brecha larga e funda, pondo-lhe quase os miolos a descoberto. O orador interrompe-se, e como desse com os olhos na ferida, de bordos esfarrapados, escancarada como uma boca sem dentes, deixando ver no fundo um bocado de osso muito esburgado e muito branco, enfiado, a tremer, com bagas de suor fino a perlarem-lhe a testa, encostando-se à mesa, muito lívido — eu não sou para estas coisas!... não sou para estas coisas...
E desmaiou.

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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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