7/03/2019

Da instituição das Caixas Econômicas (Ensaio), por Alexandre Herculano



Da instituição das Caixas Econômicas
A origem das caixas econômicas, embora imperfeitamente organizadas, como todas as instituições nos seus começos, remonta apenas aos fins do século passado, e a Alemanha e a Suíça foram os primeiros países que as viram nascer. Hamburgo possuía uma em 1787, e a de Berna, instituída só para os criados de servir, apareceu em 1789. Seguiram-se poucos anos depois a do ducado de Oldenburg e a de Genebra. Todas as demais, nestes e noutros países, foram fundadas posteriormente, e pertencem ao presente século. Em Inglaterra, dizem alguns que a ideia das caixas econômicas ocorrera primeiramente ao célebre Wilberforce; mas os vestígios delas que aí se apontam anteriores a 1810 são de natureza duvidosa ou apenas tentativas obscuras. Data daquela época o banco de poupanças (saving's bank) de Ruthwell, fundado por Duncan, e que foi o primeiro que se constituiu naquele país com estatutos públicos e regulares. Os seus prósperos resultados foram poderoso incentivo para a difusão das caixas econômicas. Dentro de sete anos contavam-se no Reino-unido perto de oitenta estabelecimentos análogos, e em 1833 quase quinhentos, onde 470:000 indivíduos, pouco mais ou menos, tinham depositado a enorme soma de quase 16 milhões de libras esterlinas, ou acima de 160 milhões de cruzados, subindo nos quatro anos imediatos o número dos depositários a 636:000 e o valor dos depósitos a 20 milhões de libras ou mais de 200 milhões de cruzados. Ao passo que estes benéficos institutos cresciam e se multiplicavam na Grã-Bretanha, generalizavam-se e prosperavam também no meio das nações continentais. Em 1838 o número das caixas econômicas subia na Alemanha a 257, e na Suíça a 100. A França, onde só foram introduzidas em 1818, conta atualmente (1844) perto de 300, e na Itália quase não há cidade que não possua estabelecimentos desta espécie. À porfia, os governos e os povos têm concorrido para arraigar uma instituição, cuja ideia fundamental é, talvez mais que nenhuma, civilizadora e moral. Como todas as coisas verdadeiramente grandes e uteis, as caixas econômicas não tem encontrado uma única parcialidade política, uma única escola que ouse condená-las, uma só crença religiosa que as repudie. As monarquias absolutas, os governos parlamentares, as Repúblicas aceitam-nas, promovem-nas. Ao passo que o ministro protestante as aconselha como poderoso instrumento de morigeração e de ventura para o povo, o papa santifica esta formosa instituição, abençoando-a e propagando-a nos estados da igreja. Progresso verdadeiro, nascido no meio da terrível luta de ideias, de paixões e de interesses em que há meio século se debate a Europa, as caixas econômicas não têm custado à humanidade nem lágrimas, nem sangue. Evidentemente úteis por sua natureza; provadas tais pelos princípios em que se estribam e pelos seus esplêndidos resultados; simples no seu mecanismo, por toda a parte aqueles a quem os seus benefícios são especialmente destinados, os homens do povo, tem-nas compreendido e abraçado. Simplicidade, clareza, utilidade reconhecida são as principais condições de todo e qualquer pensamento social que tenda a popularizar-se. As caixas econômicas ostentam no mais subido grau estes caracteres de todas as instituições que devem vir a encarnar-se na sociedade e a viver a larga e robusta vida das nações, a vida dos muitos séculos.
Este consenso unânime, não de países ignorantes, mas dos que estão na dianteira da civilização, e aí, não de uma classe de indivíduos, mas de homens de todas as jerarquias; tal consenso, dizemos, é o julgamento mais completo, o testemunho mais irrefragável da utilidade nunca desmentida das caixas econômicas. Onde quer que elas apareceram, a moralidade das classes inferiores e pobres melhorou em breve, e a miséria, perspectiva permanente que o jornaleiro e o assalariado tem diante dos olhos para o último quartel da existência, deixou de ser para eles uma fatalidade inelutável. A sobriedade; a poupança, as virtudes, em suma, de homem do povo deixaram de ser van precaução contra o seu negro porvir de mendicante velhice.
A Família, sobretudo, essa imagem da sociedade e sua origem, que para o obreiro, às vezes escassamente retribuído, é, não raro, flagelo e maldição, pode deixar de ser desgraça, ao menos para aquele a quem ou viva crença religiosa, ou a natural bondade da índole induzem a preferir à satisfação de vícios ignóbeis o próprio bem-estar futuro e o bem estar de seus filhos.
Que é, pois, a caixa econômica, essa árvore que produz tais frutos de bênção? É a coisa mais conhecida e trivial. É o mealheiro; é esse velho alvitre de poupados que desde pequeninos todos nós temos visto usar aos pouco opulentos, e que nossos pais e avós já conheceram; é a astúcia do pobre para fugir a superfluidades tentadoras (é longa a lista das superfluidades do pobre: encerra quase todo o necessário do rico) e à custa delas achar em si próprio socorro nos dias de inatividade forçada, da carestia ou da enfermidade. É o mealheiro, mas o mealheiro tornado produtivo, fecundado pela inteligência e pelo princípio de associação: é uma grandiosa, e por isso singela, invenção do senso comum, que durante muitas eras ficou, por assim dizer, no estado de sementinha perdida, até que a luz do progresso e da civilização a fez rebentar, crescer, bracejar, florir e gerar frutos preciosos, que dela colhem em abundância as sociedades modernas.
A este batismo de regeneração, que, bem como ao do evangelho, são principalmente chamados os pequenos e humildes, só tarde nós concorremos. Não que ignorássemos a sua existência, mas por essa espécie de destino mau que nos arrasta após novidades de pouca monta ou contrarias à razão, ao passo que desprezamos o que nas instituições estranhas há conforme com os nossos costumes ou acomodado às nossas precisões reais. Debalde um dos primeiros economistas portugueses propôs há anos na câmara dos deputados a criação das caixas econômicas, oferecendo a lei que as devia regular, e mostrando as suas vantagens num largo relatório, onde à vasta ciência se ajunta a eloquência que vem da convicção profunda. Entretidos com teorias, ou com interesses de partidos ou de pessoas, os homens Políticos lançaram no esquecimento as boas e sinceras diligências do deputado que desempenhava uma das mais graves obrigações do seu mandato. Até hoje nada fizeram a semelhante respeito aqueles a quem mais que a ninguém isso incumbia; e se a existência da primeira caixa econômica portuguesa se realizou, deve-se o fato a uma associação particular.
É sabido que, por via de regra, as caixas econômicas são uma espécie de depósito, onde qualquer indivíduo pode ir ajuntando lentamente e em quantias pequenas ou grandes as sobras da sua receita, salvas das despesas necessárias à vida; — que, em vez de ficarem inertes as somas ali depositadas, começam logo a produzir juro, o qual, passado um ano, se converte em capital e se acumula ao capital primitivo para com ele produzir novos juros; — que esta acumulação, bem como a formação do capital primitivo, é perfeitamente indeterminada e sem acepção nem exceção de tempos e de quantias, uma vez que não sejam estas inferiores ao diminuto mínimo de cem réis; — que o depositante pode quando lhe aprouver levantar o juro ou o principal no todo ou em parte, ou transmiti-lo por testamento ou por sucessão a seus herdeiros ou legatários; — que, finalmente, o homem laborioso e poupado tem ali as suas economias seguras pelas garantias positivas que lhe presta uma associação poderosa e respeitável, em vez de as conservar improdutivas e arriscadas no mealheiro doméstico, ao qual, supondo-lhe a índole previdente e poupada que tantas vezes falta ao operário e, em geral, a todos os que vivem de pequenos lucros eventuais, teria necessariamente de recorrer.
"Com razão se tem apontado, diz De Gerando, a utilidade moral que esta instituição produz, favorecendo as inclinações para o arranjo e economia. Ela é propícia às virtudes que se ligam com essas inclinações, ou que daí nascem. Excita ao trabalho; habitua o homem laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os afetos domésticos; concorre para multiplicar tanto os estabelecimentos industriais como as Famílias, proporcionando meios de formar e conservar o cabedal necessário para abrir uma oficina ou ajuntar um dote para casamento; ensina ao pouco abastado como em si próprio pode achar recursos e como se pode remir na miséria, na doença e na velhice. As caixas econômicas, ao passo que diminuem o número dos indigentes, concorrem também para nobilitar o caráter do homem pobre e para lhe dar aquela honrada altivez que nasce da maior independência. Aos que vivem na estreiteza faz-lhes saber quanto é grato o sentimento da propriedade, estabelecendo-lhes uma que é real e que, apesar de modica, frutifica e se perpetua. Além disso, são proveitosas em subido grau à sociedade, porque são conjuntamente sintoma e instrumento da quietação pública."
Veio o sucesso justificar as previsões do ilustre moralista. Tem-se observado em França e em Inglaterra, que não há indivíduo que tenha feito depósitos nas caixas econômicas que fosse acusado nunca perante os tribunais, ao passo que as listas de criminosos feitas em diversas épocas provam que as três quartas partes dos indivíduos sentenciados eram pessoas inclinadas ao jogo, às loterias, ou a bebidas espirituosas.
Os fatos citados pelo virtuoso De Gerando são, de feito, as consequências forçosas da ideia fundamental das caixas econômicas. Das classes populares saem, não só absolutamente, mas também relativamente, a maior parte dos criminosos. Tem-se atribuído isto à falta de educação nessas classes: sob certo aspecto e até certo ponto a causa é verdadeira; não é, porém, a única, nem a principal. Se indagamos quais foram os primeiros passos dos mais célebres malvados, achamos que partiram dos simples roubos até chegarem à máxima ferocidade no crime. Poucos entre os assassinos famosos escreveram logo com sangue as páginas malditas da história da sua existência. Na estatística da criminalidade popular predomina o roubo: é coisa trivialmente sabida, como o é que a miséria das classes laboriosas produz principalmente esse fato. Mas o que a sociedade parece ignorar ou esquecer é que ela é a culpada de que a pobreza do humilde se converta facilmente em miséria; miséria extrema, desesperada, terrível; miséria que impele quase forçadamente pela estrada da imoralidade o homem do povo, para quem os legisladores há muito inventaram as masmorras, os desterros, os suplícios, em vez de alevantarem barreiras morais que lhe obstem a precipitar-se no abismo.
Para o indivíduo sem propriedade, para o obreiro, o artífice, o criado de servir; para aquele, enfim, que só tem por capital os próprios braços, e cuja renda é apenas um salário contingente, a imprevidência e o hábito de procurar cada dia os meios de viver esse dia nascem naturalmente da sua situação precária. Nada espera no futuro, e por isso nada teme dele: probabilidades, contingências, não as calcula nem previne. Assim, vemo-lo aceitar com facilidade os encargos de pai de Família. Satisfez o apetite momentâneo; que importa o futuro àquele para quem isso não existe?
Depois vem os filhos, vem a doença, vem a falta de trabalho: as afeições domésticas enraizaram-se no coração do desgraçado. A natureza, a religião, os costumes, tudo lhe diz que esses entes que gerou, que essa mulher a quem se prendeu devem achar nele o seu abrigo, a sua providência. Ao passo que a má organização da sociedade o inabilita absolutamente para em certos casos poder suprir os seus, a mesma sociedade lhe diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem de coisas, falsa, violenta, contraditória, resulta que as mais leves tendências para o crime se excitam e dilatam até chegarem a produzir tristes frutos, cujo desenvolvimento a sociedade crê impedir com as algemas, cárceres, grilhetas, desterros e patíbulos, enquanto ela própria, com o seu desprezo pelas classes pobres, com a falta absoluta de instituições verdadeiramente moralizadoras e benéficas, alimenta a árvore mortífera que produz as ações criminosas.
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As caixas econômicas são o primeiro e agigantado passo para a solução do problema que as leis ainda não tentaram resolver: as caixas econômicas são o contraste, a negação do patíbulo. Matam a perversão popular nas suas causas, em vez de a punir nos seus efeitos. Criam o futuro para milhares de indivíduos que nunca imaginaram tê-lo, criando-lhes o gozo da propriedade, e nesta um recurso para a hora da aflição e escassez, tão próxima, entre as almas vulgares, da hora do crime. O fato de não aparecer o nome de um único depositante das caixas econômicas nas listas dos sentenciados em França e em Inglaterra é a consequência natural dos princípios em que esta instituição se estriba.
A sua influência moral vai ainda mais longe. Os vícios são, depois da miséria, a origem de frequentes atentados. O jogo e a embriaguez estão por toda a parte mais ou menos nos hábitos do povo: a embriaguez, sobretudo, é para o maior número de jornaleiros como refrigério, como prazer lícito nos dias de repouso. Quem, todavia, ignora que estes dois vícios são quase sempre a causa de rixas entre os operários, de desordens domésticas, e de se agravar cada vez mais a miséria das classes laboriosas? As caixas econômicas guerreiam, geralmente com vantagem, a propensão para as bebidas fermentadas e para o jogo. Inimigas da penalidade feroz e sanguinária que ainda governa a Europa, não o são menos da taberna, que muitas vezes é a porta fatal por onde o homem de trabalho enceta o caminho que tantas vezes o conduz às galés, ao desterro e, até, à morte.
Mas, dir-se-á, como podem as caixas econômicas desarreigar os vícios inveterados do povo? Como correrá este a depositar nos escritórios das caixas a exígua quantia que ia aplicar à embriaguez e ao jogo? A esta pergunta responde a experiência dos países onde esta espécie de depósitos estão instituídos e vulgarizados há certo número de anos. A princípio a concorrência era diminuta e lenta; mas cresceu gradualmente, e vai tomando hoje um incremento que passa além de todas as previsões dos amigos da humanidade.
Entre nós mesmos há um triste exemplo de como o povo, quando descortina ainda a mais duvidosa perspectiva de melhorar a sua condição, dá de barato o satisfazer os outros apetites para correr após essa incerta esperança. São as loterias o exemplo: é exemplo essa deplorável invenção de especular com a cobiça e com o desejo ardente que as classes menos abastadas têm de conquistarem, seja como for, fortuna independente.
É de ver a ânsia, diríamos quase o delírio, com que o vulgo concorre a lançar no sorvedouro das loterias quantos reais lhe sobram do que lhe cumpre gastar nas mais estritas precisões da vida. Muitos há que até cortam pelo necessário a si e à família para o irem dar a devorar à loteria, a essa fatal banca de jogo em que se joga à luz do dia, no meio da praça pública, embora haja a certeza de que a grandíssima maioria dos que apontam hão de forçosamente perder; circunstância que caracteriza esta instituição pública de modo, que, se fosse uma especulação particular, os tribunais puniriam severamente o especulador. Mas o fato demonstra que, apenas clareia algum tanto o negro horizonte do porvir; apenas lá reluz uma esperança tênue, improvável até, a de um prêmio avultado, o povo corre para essa esperança; porque antevê as dolorosas consequências da sua precária situação e busca esquivar-se a elas.
É para tornar profícua e moral esta previsão que se instituíram as caixas econômicas. Fazendo convergir para si as sobras escassas dos pouco abastados, as quais aliás se desbaratariam provavelmente em vergonhosos deleites, ou no que vale quase o mesmo, na loteria, elas não apresentam esses engodos fementidos, essas promessas mentirosas com que se desperta a cobiça popular; não prometem mil por dez com a condição de, em cem casos, perderem-se noventa e nove vezes os dez e não se obterem os mil. Não! As caixas econômicas oferecem unicamente um juro modico, mas constante, e além disso a certeza de reaver o depositante o seu capital, aumentado com o juro, no momento em que dele careça: oferecem uma coisa simples, clara, possível: não prometem milagres, nem sequer maravilhas; porque o maravilhoso muitas vezes, e o milagroso sempre, nas coisas humanas, são a característica do charlatanismo.
Como os descobridores de tesouros encantados, como os viciosos de loterias, como os alquimistas, os que desenvolveram e aplicaram o pensamento desta instituição calcularam também com a insaciabilidade da cobiça humana; com a cobiça que pode estar dormente ou subjugada por outros afetos, mas que existe em todos os corações. O primeiro sentimento que deve levar o obreiro, o Familiar, o caixeiro, o artífice a ir entregar na caixa econômica alguns tostões que forrou do produto do seu trabalho será a ideia de que virão de futuro as ocasiões da enfermidade, da falta de ocupação ou de outro qualquer contratempo, e a reflexão de que, reservando os sobejos de hoje para as faltas de amanhã é, sem questão, mais judicioso acumulá-los no mealheiro seguro e público, onde não corre uma hora, um minuto, em que a soma poupada não produza seu lucro, e em que este lucro não se esteja transformando em capital produtivo, do que metê-los no mealheiro particular, que pode ser roubado, e onde, no momento da precisão, nem mais um ceitil se achará daquilo que aí se meteu. É este o sentimento que, no povo, suscita desde logo a caixa econômica, e conforme a experiência de todos os países, basta ele para angariar extraordinário número de depositantes. Há, porém, um perigo: quando algum destes tiver acumulado certa quantia que repute suficiente para ocorrer a qualquer apuro inesperado, os costumes viciosos e desordenados que o temor do futuro e a esperança de remédio domaram, hão de provavelmente melhorar-se nessa luta entre o bem e o mal, e o homem de trabalho voltará aos hábitos de desleixo e dissipação que lhe absorviam as suas sobras, e que lhas tornarão a absorver de novo, e quem sabe se, até, as próprias economias que fizera. Obviamente o perigo é real e grandíssimo: há, todavia, no coração humano também a avareza; há essa paixão, que, ao contrário das outras, aumenta com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda na penumbra fria do sepulcro. Na instituição das caixas econômicas, contou-se com ela. Invenção que toca as raias do sublime é o aproveitar uma paixão má e ignóbil para fazer o bem; tornar instrumento da moral e da civilização a mais indomável, a péssima entre as nossas propensões. Perigosa, destrutiva, antissocial no rico, ela será útil ao pobre, que, sem desonra, a pode alimentar onde quer que existirem as caixas econômicas. E é o que deve suceder e sucede. O criado, o jornaleiro, o artífice que insensivelmente se achou transformado em pequeno capitalista e que vê, com o decurso do tempo, engrossar os tostões em cruzados, os cruzados em moedas, começa a amar o seu pecúlio e a fazer sacrifícios para o aumentar: esta ideia entranha-se no seu espírito, e não tarda a vir o exame severo das superfluidades e o corte em todas elas. E fazem-no desafogadamente, porque sabem que no dia ou no instante em que o excesso da poupança os conduza a algum apuro, é-lhes lícito ir levantar no todo ou em parte o juro ou o capital que possuem: e se tal aperto se não der, tem a certeza de que, quanto mais depressa ajuntarem um pecúlio de certo vulto, mais depressa realizarão o sonho constante da maioria dos indivíduos colocados na precária situação de assalariados, a existência independente. Um abrirá a loja de retalho, outro a oficina de pequena indústria: este irá plantar a vinha no outeiro escalvado; aquele arrotear o chão baldio na planície. Cada qual seguirá a senda que a sua inclinação lhe indicar, mas todos pensarão só numa coisa, a independência; a independência que nasce da propriedade, e que é o mais fértil elemento da moral, da paz e da prosperidade pública.
As considerações que temos feito são gerais; aplicam-se a todos os países, porque assentam sobre a índole dos afetos humanos, e sobre circunstâncias mais ou menos comuns nas sociedades modernas. Se, porém, há nação cujo estado social, cujas tendências entre as classes inferiores assegurem às caixas econômicas, mais que nenhuma outra, uma ação poderosa em melhorar a condição dessas mesmas classes, essa nação é a nossa.
Em Inglaterra e em França as caixas econômicas, apesar das suas grandíssimas e inegáveis vantagens, tem apresentado alguns inconvenientes: tal é o de servirem para especulações de gente rica, que, na falta de aplicações para os seus cabedais, ali os vão depositar com os juros compostos que deles devem auferir, sem correrem riscos e sem se onerarem com as despesas de administração. Procurou-se em muitas partes remover este inconveniente, estabelecendo máximos para as entradas e para o total dos depósitos de cada indivíduo; mas esta providência nem é geral, nem impede que a frequência das entradas supra a modicidade delas, e que repartindo uma quantia avultada por diversos membros da própria família, e fazendo todos estes ao mesmo tempo pequenos depósitos em diversas caixas, o abastado venha a abusar de uma instituição cujo fim não é, decerto, locupletá-lo.
Entre nós não existe e dificilmente existirá semelhante perigo. Portugal é um dos países da Europa, onde, graças à nossa antiga organização social e à natureza e condições das nossas indústrias, as fortunas são por via de regra medíocres, a propriedade territorial mui dividida nas províncias mais populosas, e por consequência os capitais raros e os grandes capitais raríssimos. Falecem eles às aplicações, não as aplicações a eles. Se a essa limitada força de capitais que possuímos faltasse o minotauro que os devora quase todos, a agiotagem, quase sempre infecunda, com o governo e com os particulares, ainda restavam as necessidades das indústrias fabril e agrícola, às quais por muitos anos não bastarão os que existem, sem que receemos sirvam para perverter uma instituição quase exclusivamente destinada às classes laboriosas e menos abastadas.
Tem-se ponderado que a ação benéfica das caixas econômicas é impotente contra a miséria do máximo número de obreiros, isto é, contra a miséria de quase todos os que pertencem à indústria fabril. Nos países onde as grandes fábricas são a principal forma, o mais comum sistema da indústria, essa observação é infelizmente verdadeira. O aperfeiçoamento das máquinas, a concorrência dos produtos nos mercados, a desproporção entre o fabrico e o consumo tem feito descer os salários a ponto que toda e qualquer economia é impossível para o operário, que ganha exatamente só o preciso para não morrer de fome. Depois, nos grandes focos de indústria fabril, principalmente na Grã-Bretanha, a depravação dos costumes é tão profunda, que, ainda quando a economia não fora materialmente impossível, sê-lo-ia moralmente. Aí, portanto, as caixas econômicas, são, sem dúvida, insuficientes para libertar o povo da miséria e da corrupção.
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Quando a organização de um país é viciosa e contrafeita; quando e onde a propriedade está mal e, digamos até, monstruosamente dividida: onde o capital anda em guerra viva com o trabalho; onde a condição do obreiro é relativamente pior que a do servo da Idade Média, a caixa econômica decerto não pode remediar os efeitos desta situação absurda. Os distritos rurais da Inglaterra, nomeadamente os da Irlanda, são vítimas de uma constituição da propriedade territorial em que ainda está viva a conquista dos normandos, e nas cidades manufatoras o excesso dos aperfeiçoamentos mecânicos têm gerado o excesso de miséria dos proletários. Para estes, que pelas flutuações do comércio externo, tem repetidas vezes largas férias de trabalho, e se veem forçados a ir receber a esmola dos socorros paroquiais; para estes, a quem frequentemente faltam os objetos de primeira necessidade, a caixa econômica é como se não existisse. Em tal situação recomendar ao obreiro a economia e a previsão fora cruel escárnio.
Mas que há entre nós que tenha semelhança com tal estado de coisas? As nossas fábricas são poucas e acham-se ainda longe dos grandes aperfeiçoamentos. Por outra parte, não havendo superabundância de braços, os salários são razoáveis. Numa nação essencialmente agrícola a indústria manufatora dificilmente preponderará sobre a agricultura. Do modo como a propriedade está constituída, sendo avultadíssimo o número dos proprietários rurais, e predominando a pequena cultura pela grande divisão do solo, essa preponderância é e será por muito tempo impossível. A supremacia industrial dos ingleses devem-na estes, talvez quase exclusivamente, a que na Grã-Bretanha a terra, por assim dizer, foge debaixo dos pés ao homem de trabalho. País clássico dos latifúndios, os possuidores de vastos prédios, ou os seus opulentos rendeiros obtém facilmente simplificar as operações da cultura com engenhosos e potentes maquinismos, dispensando assim um grandíssimo número de braços, que vão aumentar a oferta dos que a indústria fabril utiliza. Essa, forcejando igualmente para os substituir pelas máquinas, ao que a obrigam as lutas intermináveis da concorrência, aceita-os, aceita-os sempre, mas com a condição inevitável do abaixamento indefinido do salário. Em Inglaterra a agricultura, adiantadíssima em extensão, em intensidade, em instrumentos, e em cópia de capital móvel, está restrita a operar dentro dos limites do solo cultivado. O principal instrumento de produção, a terra arável, não pode multiplicar-se. Quando a máquina ou um novo sistema agrícola expulsa o operário rural, expulsa-o para dentro das barreiras da indústria fabril. Para esta, ao contrário, o espaço onde labora é um dos menos importantes elementos da sua existência. Para produzir indefinidamente, só carece de uma condição essencial; é a que a faz triunfar da indústria das nações rivais, a do preço inferior ao do produto alheio com igual valor da utilidade. A máquina, ou aperfeiçoada ou nova, e a redução dos salários, ou o aumento de horas de trabalho, o que é perfeitamente idêntico, são os seus meios heroicos. Não lhe importa se o instrumento homem se quebra, porque o renovará sem custo no meio das multidões famintas. Vive de produzir barato, e os seus obreiros hão de viver de se afadigarem em procura da morte. Cumpre que a indústria inglesa triunfe na batalha incessante que se peleja entre as nações industriais, batalha onde se não vê o fuzilar da espingardaria, nem se ouve o troar dos canhões, mas descortina-se o revolutear do fumo das chaminés monstruosas e soa o murmurar confuso da máquina e do homem que lidam: terrível batalha, onde não corre sangue, mas corre o suor do trabalho, e depois o suor da agonia.
Desta situação, exteriormente esplêndida e interiormente violenta e dolorosa, estamos nós bem longe. Não receamos dizer que em Portugal será raro o operário válido que por meio de severa e inteligente economia não possa depositar anualmente na caixa econômica alguns cruzados, ou para ocorrer a desgraça imprevista, ou para criar um meio de subsistência na velhice, ou finalmente para adquirir a independência de proprietário. Com o modo de ser da população portuguesa, pode-se prever que, difundindo-se pelo reino as caixas econômicas, a estatística destas será bem diferente da estatística das de Inglaterra, e ainda das de França. Nestes dois países apenas a quarta parte das quantias depositadas pertence aos operários, e a classe que predomina como credora delas é a dos criados domésticos. Entre nós a proporção tem de vir a ser diversa. Os donos de pequenos prédios, os seareiros, os criados de lavoura, os operários, não só de oficinas, mas também de fábricas, hão de provavelmente predominar. E se assim acontecer, poderemos afirmar que a nação progride largamente no caminho da civilização material e moral.
Alguém achará, talvez, que estas sinceras esperanças na futura regeneração econômica do nosso povo são contraditas pelo fato da perfeita analogia que se dá entre a França e a Inglaterra, em serem tanto num como noutro país as mesmas classes as dos depositantes nas caixas econômicas. Na França, dir-se-á, a divisão da propriedade é facilitada até o último ponto pelas leis, e o número dos pequenos proprietários é proporcionalmente maior que em Portugal: a agricultura também lá predomina sobre a indústria fabril; finalmente a situação do rendeiro e do trabalhador rural é mais semelhante à dos nossos que à dos de Inglaterra. Como, pois, não dão as caixas econômicas na Franca resultados estatísticos diversos dos que subministram os saving's banks ingleses? Não se deve concluir daí que não tem a influência que se lhes atribui, e vice-versa, que no seu progresso ou na sua decadência não influi nem a situação relativa das classes sociais, nem o estado da propriedade?
Não. A analogia dos dois países na desproporção, contraria à ordem natural das coisas, entre os operários e as outras profissões, em relação aos depósitos nas caixas econômicas, tem causas em parte semelhantes, em parte diversas, mas iguais nos resultados. As fábricas francesas seguem o rápido progresso das inglesas, e nos grandes centros industriais da França notam-se já em larga escala a miséria e a dissolução das cidades manufatoras da Grã-Bretanha. Lille, Mulhouse, Rheims, Ruão, reproduzem o triste quadro de perversão que apresentam as classes laboriosas em Manchester, Birmingham, Leeds, Glasgow, etc. A pobreza extrema, sem esperança e sem limites, já aí golfa também das caldeiras de vapor. A indústria individual tende rapidamente a converter-se na indústria, digamos assim, coletiva. A oficina desaparece diante da fábrica, o homem diante da máquina. A questão de saber se isto é, em absoluto, um mal ou um bem, relativamente aos interesses gerais de qualquer país, não a ventilaremos aqui; mas é indubitável que esse transtorno completo na forma do trabalho torna altamente angustiosa a situação dos operários, e inabilita-os para depositarem nas caixas econômicas sobras de salários diminutos e frequentes vezes interrompidos.
Por outra parte, o modo de ser dos bens de raiz em França é exatamente o contrário da índole da propriedade territorial em Inglaterra. O solo inglês é, por assim dizer, um grande vínculo aristocrático; a França um vasto alódio popular. A terra neste país está retalhada em cento e vinte e cinco milhões de chãos ou courelas e tende a subdivir-se ainda mais. Dão-se casos já em que o preço da venda de uma parcela de terreno pouco excede o total das despesas necessárias para legalizar a transmissão. Muitos homens pensadores começam a ter sérios receios de que a extrema divisão do solo venha a impossibilitar em certas circunstâncias uma cultura remuneradora; e ainda os que julgam estes receios infundados confessam a conveniência de uma lei que, distinguindo na propriedade o seu modo de ser, quando este modo de ser importa à causa pública, do direito do indivíduo à mesma propriedade, consinta em todas as divisões possíveis deste direito, mas proíba que se retalhem indefinidamente os pequenos prédios. O sistema dos quinhões do Alentejo, que tem uma razão de ser, mas que está longe de ter a importância que teria quando aplicado às glebas de moderada grandeza, prova que a doutrina que distingue o modo de ser da propriedade do direito de propriedade é reduzível à praxe. Em França, porém, fora difícil entrar nesta senda que repugna a hábitos inveterados da vida civil da nação. No estado atual das coisas ali, o lavrador proprietário ou ainda o simples rendeiro acha facilidade em empregar imediatamente na aquisição de terras as suas economias, sem que lhe seja necessário acumulá-las por largos anos nas caixas econômicas. Quatrocentos, duzentos, cem francos que, lhe sobejem, deduzidas as despesas de cultura e domésticas, é quanto basta; lá encontra logo um prado, uma courela, um cerradinho, que comprado e cultivado com esmero, lhe produzirá um lucro maior que o limitado juro da caixa econômica: prefere, portanto, aquele expediente. Para ele esta bela instituição torna-se realmente inútil.
Eis, quanto a nós, a explicação da analogia entre a França e a Inglaterra pelo que respeita à proporção das diversas classes de contribuintes das caixas econômicas. A condição dos operários fabris é semelhante nos dois países. Quanto à população rural, essa, em Inglaterra não contribui, porque a sua situação pouco melhor é que a do obreiro da indústria, e o proprietário da pequena gleba é uma exceção pouco vulgar; em França, porque é facílimo para os pequenos capitais o transformarem-se em propriedade territorial. Assim naturalmente explicada, essa analogia não invalida as considerações anteriormente feitas.
Em Portugal o caso é diverso. Entre nós o modo mais comum de possuir a pequena propriedade é a enfiteuse. Para o sabermos não precisamos de estatística: basta olhar ao redor de nós. Nas províncias do norte, pode dizer-se, talvez, que é rara outra espécie de propriedade. Somados os prazos, os vínculos, as vias públicas, os terrenos chamados nulius, pouco faltaria para ter a medida superficial dessas províncias, e ainda ao sul do reino são por milhares os terrenos enfitêuticos tanto rurais como urbanos. Os vastos alódios só predominam no Alentejo, se é que os vínculos lhes não levam a palma. Ora a característica da enfiteuse é ser um meio termo entre o sistema de propriedade em Inglaterra, que não passa, na essência, de uma odiosa e antieconômica agregação de morgados, e aquele sistema ilimitadamente parcelário da França, que suscita as apreensões dos pensadores. A enfiteuse, colocada no meio destes dois extremos, se for simplificada e constituída de um modo acorde com as ideias e costumes das sociedades modernas, será sempre uma das mais sensatas e benéficas instituições civis, e os seus resultados imensos nas crises sociais que despontam no horizonte. Radicada nos hábitos nacionais, parece-nos que não corre o perigo de ser abolida; mas se alguém o tentasse e o obtivesse, faria um bem mau serviço ao seu país. O prazo fateixem hereditário realiza o desejo, por tantos manifestado em França, de que os terrenos que por sucessivas divisões desceram a um limitado perímetro, passassem indivisos, sem que por isso deixasse de ser divisível o direito de propriedade sobre eles.
É num país assim, se nos não enganamos, que a vantagem da existência de caixas econômicas é imensa. Em geral os prazos de certa grandeza excedem em valor as economias anuais que qualquer lavrador medíocre ou seareiro pode realizar; mas estas economias, acumuladas por alguns anos, bastarão não raro para a aquisição de um desses prazos, que diversas causas tão frequentemente atraem ao mercado. Quem conhece os hábitos do homem do campo sabe que, poupado durante a maior parte do ano, porque os recursos lhe não sobejam, quase sempre desbarata uma porção do produto do seu suor na ocasião das colheitas. Pagos as rendas, foros e impostos, reservadas as sementes, provida a sua parca dispensa, acha-se ainda com sobras mais ou menos avultadas. Ilude-se então por alguns dias e supõe-se rico. Quer gozar; e essas sobras, que poderiam constituir lentamente um pecúlio considerável, vão-se em luxo e em festas, quando não no jogo, na embriaguez ou na devassidão. Se houvesse, porém, um estímulo de cobiça que lhe excitasse o ânimo, essas sobras assim malbaratadas converter-se-iam em capitais uteis, e tanto mais úteis quanto, pertencendo ao mesmo homem de trabalho, iriam fecundar duplicadamente a terra.
Depois, num país coberto de baldios, para promover cuja cultura é impossível se não olhe seriamente quando pusermos tréguas à fúria das nossas paixões políticas, qual não deve ser o fruto das caixas econômicas?! Hoje, se estes baldios se oferecessem gratuitamente, libertando de todos os impostos diretos quem os cultivasse, achar-se-iam, provavelmente, muitos que se aproveitassem do benefício. Mas, quem seria? Os grandes proprietários e lavradores e alguns dos raros argentários que as doçuras do ágio não trazem cativos. Os pequenos cultivadores, os rendeiros, os seareiros, aqueles, em suma, que, mais que ninguém, importaria se convertessem em proprietários do solo, esses justamente é que ficariam no máximo número excluídos, porque, por mais diminuto que suponhamos o cabedal necessário para o arroteamento de poucas jeiras quando é o próprio dono que o faz, sempre deve ser algum, e as classes trabalhadoras não possuem capitais nem grandes nem pequenos. É evidente, porém, que as caixas econômicas, estabelecidas, propagadas, favorecidas por todos aqueles que podem e devem fazê-lo, preparariam os elementos necessários para, com verdadeira utilidade social, se poder tomar tão importante providência.
Hoje entende-se que o melhor instrumento de moralização e de ventura social consiste em derramar entre o povo o desejo da independência e o amor da propriedade, associando por esse modo o capital ao trabalho em vez de os conservar em mutua hostilidade, como infelizmente os vemos. Se os modestos pecúlios se forem sucessivamente alistando no campo do trabalho, este há de frequentes vezes triunfar dos capitais, embora de maior vulto, mas combatendo isolados. Suponhamos que o rico concorre com o homem do povo para adquirir a courela, o prazo, a pequena vinha, o pequeno olival que se levou ao mercado. O primeiro calcula que soma lhe será necessária para instrumentos, para sementes, para pagar aos obreiros que hão de amanhar o prédio, e é por este cálculo e pelo lucro comparado com o de outras aplicações do seu dinheiro, que se regula para determinar o máximo que pode oferecer. O homem de trabalho, porém, que tiver o suficiente para viver até as primeiras colheitas, e ocorrer a poucas despesas prévias que não pode evitar, não compara lucros com lucros, não conta com os obreiros. Dono e obreiro é ele; são-no a mulher e os filhos. O lavor da família valerá o dobro do trabalho salariado que paga o rico, e o primeiro lucro do trabalhador proprietário será o seu jornal e o dos seus, ganho no próprio campo. Põe o sinal de mais, por assim nos exprimirmos, onde o abastado põe o sinal de menos. Do operário rural quando trabalha no seu prédio costumam dizer os outros: "anda consigo", expressão admirável de exação econômica. É isto que explica o fenômeno geralmente observado, de, no mercado, o valor proporcional da propriedade rústica ser na razão inversa da respectiva grandeza. O que não seria, se o homem do campo de humilde condição poupasse tudo quanto desbarata!
Sinceramente confessamos que o único meio simples, exequível, pacífico, não de coibir os abusos do capital pela negação das suas funções econômicas, e pela condenação da propriedade; mas de o coibir nos excessos com que muitas vezes oprime o operário, consiste em habilitar este para se transformar de proletário em modesto proprietário. O estabelecimento e o progresso das caixas econômicas é o instrumento mais poderoso de quantos se poderiam excogitar para obter, sem ofensa de nenhuns direitos e sem convulsões sociais, tão salutar resultado.
Que, pois, todos aqueles que se condoem das misérias populares: que desejam ver aumentada a prosperidade pública, reformarem-se os costumes, enraizar-se no ânimo do povo o aferro ao solo natal, protejam por quantos modos souberem esta bela instituição. Exigem-no o cristianismo, a filosofia, a moral e a política. Que as três grandes forças intelectuais da sociedade, o sacerdócio do altar, o sacerdócio da imprensa e o sacerdócio da escola se liguem para esta grande obra de civilização. Será traírem a sua missão negarem-se a fazê-lo; porque a ideia a cuja realização tendem as caixas econômicas é, embora ao primeiro aspecto o não pareça, um consectário do evangelho, da filosofia e da boa política. Essa ideia é a manifestação da caridade judiciosa, porque se encaminha a combater os vícios e a miséria, e a alargar a esfera da liberdade humana, contribuindo para a assegurar às classes laboriosas, tantas vezes escravas da necessidade do salário. A liberdade pode facilmente ser teoria, pode ser doutrina proclamada na constituição de qualquer país; fato, realidade, só o pode ser onde a maioria dos cidadãos possuam com que serem independentes.
Que a experiência das nações estranhas nos aproveite; que o pudor do patriotismo nos incite. Já que fomos a última nação da raça latina em plantar entre nós esta instituição benfazeja, não nos desonremos deixando-a logo definhar. Passaríamos aos olhos do mundo atônito por bárbaros, e todos os nossos protestos de querermos o melhoramento moral e material do país seriam havidos por hipocrisia insigne. Sem civilizar, morigerar e felicitar as classes populares, todo o progresso é fútil.
Dirigimos estas ponderações especialmente à classe média e ao clero. Naquela reside a ilustração, a riqueza e verdadeiramente o poder; nas mãos deste a preponderância que dá o predomínio sobre as consciências. Que tanto uma como outro usem da sua influência para atrair o povo ao caminho da previsão, da economia e das legítimas ambições e esperanças. Não só ele, hoje rude, pobre e inclinado a vícios ignóbeis, lucrará com isso; mas também as classes mais elevadas ganharão na paz e ordem públicas, que se irão firmando à proporção que as classes inferiores se melhorarem nos costumes e na ventura doméstica. Empreguemos o exemplo e a persuasão: uns poucos de cruzados postos nas caixas econômicas não produzirão, decerto, vantagens apreciáveis para o que possui uma fortuna avultada ou ainda mediana; mas frutificarão para o povo, gerando a confiança e despertando nele o instinto da imitação. Conspiremos todos para esta grande catequese; e que num país, onde o hábito da leitura ainda é limitadíssimo, a persuasão oral, as relações de família ou de dependência ajudem as diligências da imprensa nesta obra de alta moralidade. Deus abençoará os obreiros que semearem e cultivarem essa rica sementeira de regeneração na terra Pátria; e o povo, com a sua futura gratidão, dará testemunho da bênção da Providência.

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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1844, e publicado em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).

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