Da instituição das Caixas Econômicas
A origem das caixas
econômicas, embora imperfeitamente organizadas, como todas as instituições nos
seus começos, remonta apenas aos fins do século passado, e a Alemanha e a Suíça
foram os primeiros países que as viram nascer. Hamburgo possuía uma em 1787, e a
de Berna, instituída só para os criados de servir, apareceu em 1789.
Seguiram-se poucos anos depois a do ducado de Oldenburg e a de Genebra. Todas
as demais, nestes e noutros países, foram fundadas posteriormente, e pertencem
ao presente século. Em Inglaterra, dizem alguns que a ideia das caixas
econômicas ocorrera primeiramente ao célebre Wilberforce; mas os vestígios
delas que aí se apontam anteriores a 1810 são de natureza duvidosa ou apenas
tentativas obscuras. Data daquela época o banco de poupanças (saving's
bank) de Ruthwell, fundado por Duncan, e que foi o primeiro que se constituiu
naquele país com estatutos públicos e regulares. Os seus prósperos resultados
foram poderoso incentivo para a difusão das caixas econômicas. Dentro de sete
anos contavam-se no Reino-unido perto de oitenta estabelecimentos análogos, e
em 1833 quase quinhentos, onde 470:000 indivíduos, pouco mais ou menos, tinham
depositado a enorme soma de quase 16 milhões de libras esterlinas, ou acima de
160 milhões de cruzados, subindo nos quatro anos imediatos o número dos
depositários a 636:000 e o valor dos depósitos a 20 milhões de libras ou mais
de 200 milhões de cruzados. Ao passo que estes benéficos institutos cresciam e
se multiplicavam na Grã-Bretanha, generalizavam-se e prosperavam também no meio
das nações continentais. Em 1838 o número das caixas econômicas subia na
Alemanha a 257, e na Suíça a 100. A França, onde só foram introduzidas em 1818,
conta atualmente (1844) perto de 300, e na Itália quase não há cidade que não
possua estabelecimentos desta espécie. À porfia, os governos e os povos têm
concorrido para arraigar uma instituição, cuja ideia fundamental é, talvez mais
que nenhuma, civilizadora e moral. Como todas as coisas verdadeiramente grandes
e uteis, as caixas econômicas não tem encontrado uma única parcialidade
política, uma única escola que ouse condená-las, uma só crença religiosa que as
repudie. As monarquias absolutas, os governos parlamentares, as Repúblicas
aceitam-nas, promovem-nas. Ao passo que o ministro protestante as aconselha
como poderoso instrumento de morigeração e de ventura para o povo, o papa
santifica esta formosa instituição, abençoando-a e propagando-a nos estados da
igreja. Progresso verdadeiro, nascido no meio da terrível luta de ideias, de
paixões e de interesses em que há meio século se debate a Europa, as caixas
econômicas não têm custado à humanidade nem lágrimas, nem sangue. Evidentemente
úteis por sua natureza; provadas tais pelos princípios em que se estribam e
pelos seus esplêndidos resultados; simples no seu mecanismo, por toda a parte
aqueles a quem os seus benefícios são especialmente destinados, os homens do
povo, tem-nas compreendido e abraçado. Simplicidade, clareza, utilidade
reconhecida são as principais condições de todo e qualquer pensamento social
que tenda a popularizar-se. As caixas econômicas ostentam no mais subido grau
estes caracteres de todas as instituições que devem vir a encarnar-se na
sociedade e a viver a larga e robusta vida das nações, a vida dos muitos
séculos.
Este consenso unânime, não
de países ignorantes, mas dos que estão na dianteira da civilização, e aí, não
de uma classe de indivíduos, mas de homens de todas as jerarquias; tal
consenso, dizemos, é o julgamento mais completo, o testemunho mais irrefragável
da utilidade nunca desmentida das caixas econômicas. Onde quer que elas
apareceram, a moralidade das classes inferiores e pobres melhorou em breve, e a
miséria, perspectiva permanente que o jornaleiro e o assalariado tem diante dos
olhos para o último quartel da existência, deixou de ser para eles uma
fatalidade inelutável. A sobriedade; a poupança, as virtudes, em suma, de homem
do povo deixaram de ser van precaução contra o seu negro porvir de mendicante
velhice.
A Família, sobretudo, essa
imagem da sociedade e sua origem, que para o obreiro, às vezes escassamente retribuído,
é, não raro, flagelo e maldição, pode deixar de ser desgraça, ao menos para
aquele a quem ou viva crença religiosa, ou a natural bondade da índole induzem
a preferir à satisfação de vícios ignóbeis o próprio bem-estar futuro e o bem
estar de seus filhos.
Que é, pois, a caixa
econômica, essa árvore que produz tais frutos de bênção? É a coisa mais
conhecida e trivial. É o mealheiro; é esse velho alvitre de poupados que desde
pequeninos todos nós temos visto usar aos pouco opulentos, e que nossos pais e
avós já conheceram; é a astúcia do pobre para fugir a superfluidades tentadoras
(é longa a lista das superfluidades do pobre: encerra quase todo o necessário
do rico) e à custa delas achar em si próprio socorro nos dias de inatividade
forçada, da carestia ou da enfermidade. É o mealheiro, mas o mealheiro tornado produtivo,
fecundado pela inteligência e pelo princípio de associação: é uma grandiosa, e
por isso singela, invenção do senso comum, que durante muitas eras ficou, por
assim dizer, no estado de sementinha perdida, até que a luz do progresso e da
civilização a fez rebentar, crescer, bracejar, florir e gerar frutos preciosos,
que dela colhem em abundância as sociedades modernas.
A este batismo de
regeneração, que, bem como ao do evangelho, são principalmente chamados os
pequenos e humildes, só tarde nós concorremos. Não que ignorássemos a sua
existência, mas por essa espécie de destino mau que nos arrasta após novidades
de pouca monta ou contrarias à razão, ao passo que desprezamos o que nas
instituições estranhas há conforme com os nossos costumes ou acomodado às
nossas precisões reais. Debalde um dos primeiros economistas portugueses propôs
há anos na câmara dos deputados a criação das caixas econômicas, oferecendo a
lei que as devia regular, e mostrando as suas vantagens num largo relatório,
onde à vasta ciência se ajunta a eloquência que vem da convicção profunda.
Entretidos com teorias, ou com interesses de partidos ou de pessoas, os homens
Políticos lançaram no esquecimento as boas e sinceras diligências do deputado
que desempenhava uma das mais graves obrigações do seu mandato. Até hoje nada
fizeram a semelhante respeito aqueles a quem mais que a ninguém isso incumbia;
e se a existência da primeira caixa econômica portuguesa se realizou, deve-se o
fato a uma associação particular.
É sabido que, por via de
regra, as caixas econômicas são uma espécie de depósito, onde qualquer
indivíduo pode ir ajuntando lentamente e em quantias pequenas ou grandes as
sobras da sua receita, salvas das despesas necessárias à vida; — que, em vez de
ficarem inertes as somas ali depositadas, começam logo a produzir juro, o qual,
passado um ano, se converte em capital e se acumula ao capital primitivo para
com ele produzir novos juros; — que esta acumulação, bem como a formação do
capital primitivo, é perfeitamente indeterminada e sem acepção nem exceção de
tempos e de quantias, uma vez que não sejam estas inferiores ao diminuto mínimo
de cem réis; — que o depositante pode quando lhe aprouver levantar o juro ou o
principal no todo ou em parte, ou transmiti-lo por testamento ou por sucessão a
seus herdeiros ou legatários; — que, finalmente, o homem laborioso e poupado
tem ali as suas economias seguras pelas garantias positivas que lhe presta uma
associação poderosa e respeitável, em vez de as conservar improdutivas e
arriscadas no mealheiro doméstico, ao qual, supondo-lhe a índole previdente e
poupada que tantas vezes falta ao operário e, em geral, a todos os que vivem de
pequenos lucros eventuais, teria necessariamente de recorrer.
"Com razão se tem
apontado, diz De Gerando, a utilidade moral que esta instituição produz,
favorecendo as inclinações para o arranjo e economia. Ela é propícia às
virtudes que se ligam com essas inclinações, ou que daí nascem. Excita ao
trabalho; habitua o homem laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os afetos
domésticos; concorre para multiplicar tanto os estabelecimentos industriais
como as Famílias, proporcionando meios de formar e conservar o cabedal
necessário para abrir uma oficina ou ajuntar um dote para casamento; ensina ao
pouco abastado como em si próprio pode achar recursos e como se pode remir na
miséria, na doença e na velhice. As caixas econômicas, ao passo que diminuem o número
dos indigentes, concorrem também para nobilitar o caráter do homem pobre e para
lhe dar aquela honrada altivez que nasce da maior independência. Aos que vivem
na estreiteza faz-lhes saber quanto é grato o sentimento da propriedade,
estabelecendo-lhes uma que é real e que, apesar de modica, frutifica e se
perpetua. Além disso, são proveitosas em subido grau à sociedade, porque são
conjuntamente sintoma e instrumento da quietação pública."
Veio o sucesso justificar
as previsões do ilustre moralista. Tem-se observado em França e em Inglaterra,
que não há indivíduo que tenha feito depósitos nas caixas econômicas que fosse
acusado nunca perante os tribunais, ao passo que as listas de criminosos feitas
em diversas épocas provam que as três quartas partes dos indivíduos sentenciados
eram pessoas inclinadas ao jogo, às loterias, ou a bebidas espirituosas.
Os fatos citados pelo
virtuoso De Gerando são, de feito, as consequências forçosas da ideia
fundamental das caixas econômicas. Das classes populares saem, não só
absolutamente, mas também relativamente, a maior parte dos criminosos. Tem-se atribuído
isto à falta de educação nessas classes: sob certo aspecto e até certo ponto a
causa é verdadeira; não é, porém, a única, nem a principal. Se indagamos quais
foram os primeiros passos dos mais célebres malvados, achamos que partiram dos
simples roubos até chegarem à máxima ferocidade no crime. Poucos entre os
assassinos famosos escreveram logo com sangue as páginas malditas da história
da sua existência. Na estatística da criminalidade popular predomina o roubo: é
coisa trivialmente sabida, como o é que a miséria das classes laboriosas produz
principalmente esse fato. Mas o que a sociedade parece ignorar ou esquecer é
que ela é a culpada de que a pobreza do humilde se converta facilmente em
miséria; miséria extrema, desesperada, terrível; miséria que impele quase
forçadamente pela estrada da imoralidade o homem do povo, para quem os
legisladores há muito inventaram as masmorras, os desterros, os suplícios, em
vez de alevantarem barreiras morais que lhe obstem a precipitar-se no abismo.
Para o indivíduo sem
propriedade, para o obreiro, o artífice, o criado de servir; para aquele,
enfim, que só tem por capital os próprios braços, e cuja renda é apenas um
salário contingente, a imprevidência e o hábito de procurar cada dia os meios
de viver esse dia nascem naturalmente da sua situação precária. Nada espera no
futuro, e por isso nada teme dele: probabilidades, contingências, não as
calcula nem previne. Assim, vemo-lo aceitar com facilidade os encargos de pai
de Família. Satisfez o apetite momentâneo; que importa o futuro àquele para
quem isso não existe?
Depois vem os filhos, vem a
doença, vem a falta de trabalho: as afeições domésticas enraizaram-se no
coração do desgraçado. A natureza, a religião, os costumes, tudo lhe diz que
esses entes que gerou, que essa mulher a quem se prendeu devem achar nele o seu
abrigo, a sua providência. Ao passo que a má organização da sociedade o inabilita
absolutamente para em certos casos poder suprir os seus, a mesma sociedade lhe
diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem de coisas, falsa,
violenta, contraditória, resulta que as mais leves tendências para o crime se
excitam e dilatam até chegarem a produzir tristes frutos, cujo desenvolvimento
a sociedade crê impedir com as algemas, cárceres, grilhetas, desterros e patíbulos,
enquanto ela própria, com o seu desprezo pelas classes pobres, com a falta
absoluta de instituições verdadeiramente moralizadoras e benéficas, alimenta a
árvore mortífera que produz as ações criminosas.
***
As caixas econômicas são o
primeiro e agigantado passo para a solução do problema que as leis ainda não
tentaram resolver: as caixas econômicas são o contraste, a negação do patíbulo.
Matam a perversão popular nas suas causas, em vez de a punir nos seus efeitos.
Criam o futuro para milhares de indivíduos que nunca imaginaram tê-lo,
criando-lhes o gozo da propriedade, e nesta um recurso para a hora da aflição e
escassez, tão próxima, entre as almas vulgares, da hora do crime. O fato de não
aparecer o nome de um único depositante das caixas econômicas nas listas dos sentenciados
em França e em Inglaterra é a consequência natural dos princípios em que esta
instituição se estriba.
A sua influência moral vai
ainda mais longe. Os vícios são, depois da miséria, a origem de frequentes
atentados. O jogo e a embriaguez estão por toda a parte mais ou menos nos
hábitos do povo: a embriaguez, sobretudo, é para o maior número de jornaleiros
como refrigério, como prazer lícito nos dias de repouso. Quem, todavia, ignora
que estes dois vícios são quase sempre a causa de rixas entre os operários, de
desordens domésticas, e de se agravar cada vez mais a miséria das classes
laboriosas? As caixas econômicas guerreiam, geralmente com vantagem, a
propensão para as bebidas fermentadas e para o jogo. Inimigas da penalidade
feroz e sanguinária que ainda governa a Europa, não o são menos da taberna, que
muitas vezes é a porta fatal por onde o homem de trabalho enceta o caminho que
tantas vezes o conduz às galés, ao desterro e, até, à morte.
Mas, dir-se-á, como podem
as caixas econômicas desarreigar os vícios inveterados do povo? Como correrá
este a depositar nos escritórios das caixas a exígua quantia que ia aplicar à
embriaguez e ao jogo? A esta pergunta responde a experiência dos países onde
esta espécie de depósitos estão instituídos e vulgarizados há certo número de
anos. A princípio a concorrência era diminuta e lenta; mas cresceu
gradualmente, e vai tomando hoje um incremento que passa além de todas as
previsões dos amigos da humanidade.
Entre nós mesmos há um
triste exemplo de como o povo, quando descortina ainda a mais duvidosa
perspectiva de melhorar a sua condição, dá de barato o satisfazer os outros
apetites para correr após essa incerta esperança. São as loterias o exemplo: é
exemplo essa deplorável invenção de especular com a cobiça e com o desejo
ardente que as classes menos abastadas têm de conquistarem, seja como for,
fortuna independente.
É de ver a ânsia, diríamos
quase o delírio, com que o vulgo concorre a lançar no sorvedouro das loterias
quantos reais lhe sobram do que lhe cumpre gastar nas mais estritas precisões
da vida. Muitos há que até cortam pelo necessário a si e à família para o irem
dar a devorar à loteria, a essa fatal banca de jogo em que se joga à luz do
dia, no meio da praça pública, embora haja a certeza de que a grandíssima maioria dos que apontam
hão de forçosamente perder; circunstância que caracteriza esta
instituição pública de
modo, que, se fosse uma especulação particular, os tribunais puniriam
severamente o especulador. Mas o fato demonstra que, apenas clareia algum tanto
o negro horizonte do porvir; apenas lá reluz uma esperança tênue, improvável
até, a de um prêmio avultado, o povo corre para essa esperança; porque antevê
as dolorosas consequências da sua precária situação e busca esquivar-se a elas.
É para tornar profícua e
moral esta previsão que se instituíram as caixas econômicas. Fazendo convergir
para si as sobras escassas dos pouco abastados, as quais aliás se desbaratariam
provavelmente em vergonhosos deleites, ou no que vale quase o mesmo, na
loteria, elas não apresentam esses engodos fementidos, essas promessas
mentirosas com que se desperta a cobiça popular; não prometem mil por dez com a
condição de, em cem casos, perderem-se noventa e nove vezes os dez e não se
obterem os mil. Não! As caixas econômicas oferecem unicamente um juro modico,
mas constante, e além disso a certeza de reaver o depositante o seu capital, aumentado
com o juro, no momento em que dele careça: oferecem uma coisa simples, clara,
possível: não prometem milagres, nem sequer maravilhas; porque o maravilhoso
muitas vezes, e o milagroso sempre, nas coisas humanas, são a característica do
charlatanismo.
Como os descobridores de
tesouros encantados, como os viciosos de loterias, como os alquimistas, os que
desenvolveram e aplicaram o pensamento desta instituição calcularam também com
a insaciabilidade da cobiça humana; com a cobiça que pode estar dormente ou
subjugada por outros afetos, mas que existe em todos os corações. O primeiro
sentimento que deve levar o obreiro, o Familiar, o caixeiro, o artífice a ir
entregar na caixa econômica alguns tostões que forrou do produto do seu
trabalho será a ideia de que virão de futuro as ocasiões da enfermidade, da
falta de ocupação ou de outro qualquer contratempo, e a reflexão de que,
reservando os sobejos de hoje para as faltas de amanhã é, sem questão, mais
judicioso acumulá-los no mealheiro seguro e público, onde não corre uma hora,
um minuto, em que a soma poupada não produza seu lucro, e em que este lucro não
se esteja transformando em capital produtivo, do que metê-los no mealheiro
particular, que pode ser roubado, e onde, no momento da precisão, nem mais um
ceitil se achará daquilo que aí se meteu. É este o sentimento que, no povo,
suscita desde logo a caixa econômica, e conforme a experiência de todos os
países, basta ele para angariar extraordinário número de depositantes. Há,
porém, um perigo: quando algum destes tiver acumulado certa quantia que repute
suficiente para ocorrer a qualquer apuro inesperado, os costumes viciosos e
desordenados que o temor do futuro e a esperança de remédio domaram, hão de
provavelmente melhorar-se nessa luta entre o bem e o mal, e o homem de trabalho
voltará aos hábitos de desleixo e dissipação que lhe absorviam as suas sobras,
e que lhas tornarão a absorver de novo, e quem sabe se, até, as próprias
economias que fizera. Obviamente o perigo é real e grandíssimo: há, todavia, no
coração humano também a avareza; há essa paixão, que, ao contrário das outras, aumenta
com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda na penumbra fria do
sepulcro. Na instituição das caixas econômicas, contou-se com ela. Invenção que
toca as raias do sublime é o aproveitar uma paixão má e ignóbil para fazer o
bem; tornar instrumento da moral e da civilização a mais indomável, a péssima
entre as nossas propensões. Perigosa, destrutiva, antissocial no rico, ela será
útil ao pobre, que, sem desonra, a pode alimentar onde quer que existirem as
caixas econômicas. E é o que deve suceder e sucede. O criado, o jornaleiro, o artífice
que insensivelmente se achou transformado em pequeno capitalista e que vê, com
o decurso do tempo, engrossar os tostões em cruzados, os cruzados em moedas,
começa a amar o seu pecúlio e a fazer sacrifícios para o aumentar: esta ideia
entranha-se no seu espírito, e não tarda a vir o exame severo das
superfluidades e o corte em todas elas. E fazem-no desafogadamente, porque
sabem que no dia ou no instante em que o excesso da poupança os conduza a algum
apuro, é-lhes lícito ir levantar no todo ou em parte o juro ou o capital que
possuem: e se tal aperto se não der, tem a certeza de que, quanto mais depressa
ajuntarem um pecúlio de certo vulto, mais depressa realizarão o sonho constante
da maioria dos indivíduos colocados na precária situação de assalariados, a
existência independente. Um abrirá a loja de retalho, outro a oficina de
pequena indústria: este irá plantar a vinha no outeiro escalvado; aquele arrotear
o chão baldio na planície. Cada qual seguirá a senda que a sua inclinação lhe
indicar, mas todos pensarão só numa coisa, a independência; a independência que
nasce da propriedade, e que é o mais fértil elemento da moral, da paz e da
prosperidade pública.
As considerações que temos
feito são gerais; aplicam-se a todos os países, porque assentam sobre a índole
dos afetos humanos, e sobre circunstâncias mais ou menos comuns nas sociedades
modernas. Se, porém, há nação cujo estado social, cujas tendências entre as
classes inferiores assegurem às caixas econômicas, mais que nenhuma outra, uma
ação poderosa em melhorar a condição dessas mesmas classes, essa nação é a
nossa.
Em Inglaterra e em França
as caixas econômicas, apesar das suas grandíssimas e inegáveis vantagens, tem
apresentado alguns inconvenientes: tal é o de servirem para especulações de
gente rica, que, na falta de aplicações para os seus cabedais, ali os vão
depositar com os juros compostos que deles devem auferir, sem correrem riscos e
sem se onerarem com as despesas de administração. Procurou-se em muitas partes
remover este inconveniente, estabelecendo máximos para as entradas e para o
total dos depósitos de cada indivíduo; mas esta providência nem é geral, nem
impede que a frequência das entradas supra a modicidade delas, e que repartindo
uma quantia avultada por diversos membros da própria família, e fazendo todos
estes ao mesmo tempo pequenos depósitos em diversas caixas, o abastado venha a
abusar de uma instituição cujo fim não é, decerto, locupletá-lo.
Entre nós não existe e
dificilmente existirá semelhante perigo. Portugal é um dos países da Europa,
onde, graças à nossa antiga organização social e à natureza e condições das
nossas indústrias, as fortunas são por via de regra medíocres, a propriedade
territorial mui dividida nas províncias mais populosas, e por consequência os
capitais raros e os grandes capitais raríssimos. Falecem eles às aplicações,
não as aplicações a eles. Se a essa limitada força de capitais que possuímos
faltasse o minotauro que os devora quase todos, a agiotagem, quase sempre
infecunda, com o governo e com os particulares, ainda restavam as necessidades
das indústrias fabril e agrícola, às quais por muitos anos não bastarão os que
existem, sem que receemos sirvam para perverter uma instituição quase
exclusivamente destinada às classes laboriosas e menos abastadas.
Tem-se ponderado que a ação
benéfica das caixas econômicas é impotente contra a miséria do máximo número de
obreiros, isto é, contra a miséria de quase todos os que pertencem à indústria
fabril. Nos países onde as grandes fábricas são a principal forma, o mais comum
sistema da indústria, essa observação é infelizmente verdadeira. O
aperfeiçoamento das máquinas, a concorrência dos produtos nos mercados, a desproporção
entre o fabrico e o consumo tem feito descer os salários a ponto que toda e
qualquer economia é impossível para o operário, que ganha exatamente só o
preciso para não morrer de fome. Depois, nos grandes focos de indústria fabril,
principalmente na Grã-Bretanha, a depravação dos costumes é tão profunda, que,
ainda quando a economia não fora materialmente impossível, sê-lo-ia moralmente.
Aí, portanto, as caixas econômicas, são, sem dúvida, insuficientes para
libertar o povo da miséria e da corrupção.
***
Quando a organização de um
país é viciosa e contrafeita; quando e onde a propriedade está mal e, digamos
até, monstruosamente dividida: onde o capital anda em guerra viva com o
trabalho; onde a condição do obreiro é relativamente pior que a do servo da Idade
Média, a caixa econômica decerto não pode remediar os efeitos desta situação
absurda. Os distritos rurais da Inglaterra, nomeadamente os da Irlanda, são
vítimas de uma constituição da propriedade territorial em que ainda está viva a
conquista dos normandos, e nas cidades manufatoras o excesso dos
aperfeiçoamentos mecânicos têm gerado o excesso de miséria dos proletários.
Para estes, que pelas flutuações do comércio externo, tem repetidas vezes largas
férias de trabalho, e se veem forçados a ir receber a esmola dos socorros paroquiais;
para estes, a quem frequentemente faltam os objetos de primeira necessidade, a
caixa econômica é como se não existisse. Em tal situação recomendar ao obreiro
a economia e a previsão fora cruel escárnio.
Mas que há entre nós que
tenha semelhança com tal estado de coisas? As nossas fábricas são poucas e
acham-se ainda longe dos grandes aperfeiçoamentos. Por outra parte, não havendo
superabundância de braços, os salários são razoáveis. Numa nação essencialmente
agrícola a indústria manufatora dificilmente preponderará sobre a agricultura.
Do modo como a propriedade está constituída, sendo avultadíssimo o número dos
proprietários rurais, e predominando a pequena cultura pela grande divisão do
solo, essa preponderância é e será por muito tempo impossível. A supremacia industrial
dos ingleses devem-na estes, talvez quase exclusivamente, a que na Grã-Bretanha
a terra, por assim dizer, foge debaixo dos pés ao homem de trabalho. País
clássico dos latifúndios, os possuidores de vastos prédios, ou os seus
opulentos rendeiros obtém facilmente simplificar as operações da cultura com
engenhosos e potentes maquinismos, dispensando assim um grandíssimo número de
braços, que vão aumentar a oferta dos que a indústria fabril utiliza. Essa,
forcejando igualmente para os substituir pelas máquinas, ao que a obrigam as
lutas intermináveis da concorrência, aceita-os, aceita-os sempre, mas com a
condição inevitável do abaixamento indefinido do salário. Em Inglaterra a
agricultura, adiantadíssima em extensão, em intensidade, em instrumentos, e em
cópia de capital móvel, está restrita a operar dentro dos limites do solo
cultivado. O principal instrumento de produção, a terra arável, não pode
multiplicar-se. Quando a máquina ou um novo sistema agrícola expulsa o operário
rural, expulsa-o para dentro das barreiras da indústria fabril. Para esta, ao
contrário, o espaço onde labora é um dos menos importantes elementos da sua
existência. Para produzir indefinidamente, só carece de uma condição essencial;
é a que a faz triunfar da indústria das nações rivais, a do preço inferior ao
do produto alheio com igual valor da utilidade. A máquina, ou aperfeiçoada ou
nova, e a redução dos salários, ou o aumento de horas de trabalho, o que é
perfeitamente idêntico, são os seus meios heroicos. Não lhe importa se o
instrumento homem se quebra, porque o renovará sem custo no meio das multidões
famintas. Vive de produzir barato, e os seus obreiros hão de viver de se
afadigarem em procura da morte. Cumpre que a indústria inglesa triunfe na
batalha incessante que se peleja entre as nações industriais, batalha onde se
não vê o fuzilar da espingardaria, nem se ouve o troar dos canhões, mas
descortina-se o revolutear do fumo das chaminés monstruosas e soa o murmurar
confuso da máquina e do homem que lidam: terrível batalha, onde não corre
sangue, mas corre o suor do trabalho, e depois o suor da agonia.
Desta situação,
exteriormente esplêndida e interiormente violenta e dolorosa, estamos nós bem
longe. Não receamos dizer que em Portugal será raro o operário válido que por
meio de severa e inteligente economia não possa depositar anualmente na caixa
econômica alguns cruzados, ou para ocorrer a desgraça imprevista, ou para criar
um meio de subsistência na velhice, ou finalmente para adquirir a independência
de proprietário. Com o modo de ser da população portuguesa, pode-se prever que,
difundindo-se pelo reino as caixas econômicas, a estatística destas será bem
diferente da estatística das de Inglaterra, e ainda das de França. Nestes dois países
apenas a quarta parte das quantias depositadas pertence aos operários, e a
classe que predomina como credora delas é a dos criados domésticos. Entre nós a
proporção tem de vir a ser diversa. Os donos de pequenos prédios, os seareiros,
os criados de lavoura, os operários, não só de oficinas, mas também de
fábricas, hão de provavelmente predominar. E se assim acontecer, poderemos
afirmar que a nação progride largamente no caminho da civilização material e
moral.
Alguém achará, talvez, que
estas sinceras esperanças na futura regeneração econômica do nosso povo são contraditas
pelo fato da perfeita analogia que se dá entre a França e a Inglaterra, em
serem tanto num como noutro país as mesmas classes as dos depositantes nas
caixas econômicas. Na França, dir-se-á, a divisão da propriedade é facilitada
até o último ponto pelas leis, e o número dos pequenos proprietários é
proporcionalmente maior que em Portugal: a agricultura também lá predomina
sobre a indústria fabril; finalmente a situação do rendeiro e do trabalhador
rural é mais semelhante à dos nossos que à dos de Inglaterra. Como, pois, não
dão as caixas econômicas na Franca resultados estatísticos diversos dos que
subministram os saving's banks ingleses?
Não se deve concluir daí que não tem a influência que se lhes atribui, e
vice-versa, que no seu progresso ou na sua decadência não influi nem a situação
relativa das classes sociais, nem o estado da propriedade?
Não. A analogia dos dois
países na desproporção, contraria à ordem natural das coisas, entre os
operários e as outras profissões, em relação aos depósitos nas caixas
econômicas, tem causas em parte semelhantes, em parte diversas, mas iguais nos
resultados. As fábricas francesas seguem o rápido progresso das inglesas, e nos
grandes centros industriais da França notam-se já em larga escala a miséria e a
dissolução das cidades manufatoras da Grã-Bretanha. Lille, Mulhouse, Rheims,
Ruão, reproduzem o triste quadro de perversão que apresentam as classes
laboriosas em Manchester, Birmingham, Leeds, Glasgow, etc. A pobreza extrema,
sem esperança e sem limites, já aí golfa também das caldeiras de vapor. A
indústria individual tende rapidamente a converter-se na indústria, digamos
assim, coletiva. A oficina desaparece diante da fábrica, o homem diante da máquina.
A questão de saber se isto é, em absoluto, um mal ou um bem, relativamente aos
interesses gerais de qualquer país, não a ventilaremos aqui; mas é indubitável
que esse transtorno completo na forma do trabalho torna altamente angustiosa a
situação dos operários, e inabilita-os para depositarem nas caixas econômicas
sobras de salários diminutos e frequentes vezes interrompidos.
Por outra parte, o modo de
ser dos bens de raiz em França é exatamente o contrário da índole da
propriedade territorial em Inglaterra. O solo inglês é, por assim dizer, um
grande vínculo aristocrático; a França um vasto alódio popular. A terra neste
país está retalhada em cento e vinte e cinco milhões de chãos ou courelas e
tende a subdivir-se ainda mais. Dão-se casos já em que o preço da venda de uma
parcela de terreno pouco excede o total das despesas necessárias para legalizar
a transmissão. Muitos homens pensadores começam a ter sérios receios de que a
extrema divisão do solo venha a impossibilitar em certas circunstâncias uma cultura
remuneradora; e ainda os que julgam estes receios infundados confessam a
conveniência de uma lei que, distinguindo na propriedade o seu modo de ser,
quando este modo de ser importa à causa pública, do direito do indivíduo à
mesma propriedade, consinta em todas as divisões possíveis deste direito, mas proíba
que se retalhem indefinidamente os pequenos prédios. O sistema dos quinhões do Alentejo, que tem uma
razão de ser, mas que está longe de ter a importância que teria quando aplicado
às glebas de moderada grandeza, prova que a doutrina que distingue o modo de
ser da propriedade do direito de propriedade é reduzível à praxe. Em França,
porém, fora difícil entrar nesta senda que repugna a hábitos inveterados da
vida civil da nação. No estado atual das coisas ali, o lavrador proprietário ou
ainda o simples rendeiro acha facilidade em empregar imediatamente na aquisição
de terras as suas economias, sem que lhe seja necessário acumulá-las por largos
anos nas caixas econômicas. Quatrocentos, duzentos, cem francos que, lhe
sobejem, deduzidas as despesas de cultura e domésticas, é quanto basta; lá
encontra logo um prado, uma courela, um cerradinho, que comprado e cultivado
com esmero, lhe produzirá um lucro maior que o limitado juro da caixa
econômica: prefere, portanto, aquele expediente. Para ele esta bela instituição
torna-se realmente inútil.
Eis, quanto a nós, a
explicação da analogia entre a França e a Inglaterra pelo que respeita à
proporção das diversas classes de contribuintes das caixas econômicas. A
condição dos operários fabris é semelhante nos dois países. Quanto à população
rural, essa, em Inglaterra não contribui, porque a sua situação pouco melhor é
que a do obreiro da indústria, e o proprietário da pequena gleba é uma exceção
pouco vulgar; em França, porque é facílimo para os pequenos capitais o
transformarem-se em propriedade territorial. Assim naturalmente explicada, essa
analogia não invalida as considerações anteriormente feitas.
Em Portugal o caso é
diverso. Entre nós o modo mais comum de possuir a pequena propriedade é a
enfiteuse. Para o sabermos não precisamos de estatística: basta olhar ao redor
de nós. Nas províncias do norte, pode dizer-se, talvez, que é rara outra
espécie de propriedade. Somados os prazos, os vínculos, as vias públicas, os
terrenos chamados nulius, pouco
faltaria para ter a medida superficial dessas províncias, e ainda ao sul do
reino são por milhares os terrenos enfitêuticos tanto rurais como urbanos. Os
vastos alódios só predominam no Alentejo, se é que os vínculos lhes não levam a
palma. Ora a característica da enfiteuse é ser um meio termo entre o sistema de
propriedade em Inglaterra, que não passa, na essência, de uma odiosa e antieconômica
agregação de morgados, e aquele sistema ilimitadamente parcelário da França,
que suscita as apreensões dos pensadores. A enfiteuse, colocada no meio destes
dois extremos, se for simplificada e constituída de um modo acorde com as
ideias e costumes das sociedades modernas, será sempre uma das mais sensatas e benéficas
instituições civis, e os seus resultados imensos nas crises sociais que
despontam no horizonte. Radicada nos hábitos nacionais, parece-nos que não
corre o perigo de ser abolida; mas se alguém o tentasse e o obtivesse, faria um
bem mau serviço ao seu país. O prazo fateixem hereditário realiza o desejo, por
tantos manifestado em França, de que os terrenos que por sucessivas divisões
desceram a um limitado perímetro, passassem indivisos, sem que por isso
deixasse de ser divisível o direito de propriedade sobre eles.
É num país assim, se nos
não enganamos, que a vantagem da existência de caixas econômicas é imensa. Em
geral os prazos de certa grandeza excedem em valor as economias anuais que
qualquer lavrador medíocre ou seareiro pode realizar; mas estas economias,
acumuladas por alguns anos, bastarão não raro para a aquisição de um desses
prazos, que diversas causas tão frequentemente atraem ao mercado. Quem conhece
os hábitos do homem do campo sabe que, poupado durante a maior parte do ano,
porque os recursos lhe não sobejam, quase sempre desbarata uma porção do
produto do seu suor na ocasião das colheitas. Pagos as rendas, foros e
impostos, reservadas as sementes, provida a sua parca dispensa, acha-se ainda
com sobras mais ou menos avultadas. Ilude-se então por alguns dias e supõe-se
rico. Quer gozar; e essas sobras, que poderiam constituir lentamente um pecúlio
considerável, vão-se em luxo e em festas, quando não no jogo, na embriaguez ou
na devassidão. Se houvesse, porém, um estímulo de cobiça que lhe excitasse o
ânimo, essas sobras assim malbaratadas converter-se-iam em capitais uteis, e
tanto mais úteis quanto, pertencendo ao mesmo homem de trabalho, iriam fecundar
duplicadamente a terra.
Depois, num país coberto de
baldios, para promover cuja cultura é impossível se não olhe seriamente quando
pusermos tréguas à fúria das nossas paixões políticas, qual não deve ser o
fruto das caixas econômicas?! Hoje, se estes baldios se oferecessem
gratuitamente, libertando de todos os impostos diretos quem os cultivasse,
achar-se-iam, provavelmente, muitos que se aproveitassem do benefício. Mas,
quem seria? Os grandes proprietários e lavradores e alguns dos raros argentários
que as doçuras do ágio não trazem cativos. Os pequenos cultivadores, os
rendeiros, os seareiros, aqueles, em suma, que, mais que ninguém, importaria se
convertessem em proprietários do solo, esses justamente é que ficariam no
máximo número excluídos, porque, por mais diminuto que suponhamos o cabedal
necessário para o arroteamento de poucas jeiras quando é o próprio dono que o
faz, sempre deve ser algum, e as classes trabalhadoras não possuem capitais nem
grandes nem pequenos. É evidente, porém, que as caixas econômicas,
estabelecidas, propagadas, favorecidas por todos aqueles que podem e devem
fazê-lo, preparariam os elementos necessários para, com verdadeira utilidade
social, se poder tomar tão importante providência.
Hoje entende-se que o
melhor instrumento de moralização e de ventura social consiste em derramar
entre o povo o desejo da independência e o amor da propriedade, associando por
esse modo o capital ao trabalho em vez de os conservar em mutua hostilidade,
como infelizmente os vemos. Se os modestos pecúlios se forem sucessivamente
alistando no campo do trabalho, este há de frequentes vezes triunfar dos capitais,
embora de maior vulto, mas combatendo isolados. Suponhamos que o rico concorre
com o homem do povo para adquirir a courela, o prazo, a pequena vinha, o
pequeno olival que se levou ao mercado. O primeiro calcula que soma lhe será
necessária para instrumentos, para sementes, para pagar aos obreiros que hão de
amanhar o prédio, e é por este cálculo e pelo lucro comparado com o de outras
aplicações do seu dinheiro, que se regula para determinar o máximo que pode
oferecer. O homem de trabalho, porém, que tiver o suficiente para viver até as
primeiras colheitas, e ocorrer a poucas despesas prévias que não pode evitar,
não compara lucros com lucros, não conta com os obreiros. Dono e obreiro é ele;
são-no a mulher e os filhos. O lavor da família valerá o dobro do trabalho
salariado que paga o rico, e o primeiro lucro do trabalhador proprietário será
o seu jornal e o dos seus, ganho no próprio campo. Põe o sinal de mais, por assim nos exprimirmos, onde o
abastado põe o sinal de menos.
Do operário rural quando trabalha no seu prédio costumam dizer os outros:
"anda consigo", expressão
admirável de exação econômica. É isto que explica o fenômeno geralmente
observado, de, no mercado, o valor proporcional da propriedade rústica ser na
razão inversa da respectiva grandeza. O que não seria, se o homem do campo de
humilde condição poupasse tudo quanto desbarata!
Sinceramente confessamos
que o único meio simples, exequível, pacífico, não de coibir os abusos do
capital pela negação das suas funções econômicas, e pela condenação da
propriedade; mas de o coibir nos excessos com que muitas vezes oprime o
operário, consiste em habilitar este para se transformar de proletário em
modesto proprietário. O estabelecimento e o progresso das caixas econômicas é o
instrumento mais poderoso de quantos se poderiam excogitar para obter, sem
ofensa de nenhuns direitos e sem convulsões sociais, tão salutar resultado.
Que, pois, todos aqueles
que se condoem das misérias populares: que desejam ver aumentada a prosperidade
pública, reformarem-se os costumes, enraizar-se no ânimo do povo o aferro ao
solo natal, protejam por quantos modos souberem esta bela instituição.
Exigem-no o cristianismo, a filosofia, a moral e a política. Que as três
grandes forças intelectuais da sociedade, o sacerdócio do altar, o sacerdócio
da imprensa e o sacerdócio da escola se liguem para esta grande obra de
civilização. Será traírem a sua missão negarem-se a fazê-lo; porque a ideia a
cuja realização tendem as caixas econômicas é, embora ao primeiro aspecto o não
pareça, um consectário do evangelho, da filosofia e da boa política. Essa ideia
é a manifestação da caridade judiciosa, porque se encaminha a combater os
vícios e a miséria, e a alargar a esfera da liberdade humana, contribuindo para
a assegurar às classes laboriosas, tantas vezes escravas da necessidade do
salário. A liberdade pode facilmente ser teoria, pode ser doutrina proclamada
na constituição de qualquer país; fato, realidade, só o pode ser onde a maioria
dos cidadãos possuam com que serem independentes.
Que a experiência das
nações estranhas nos aproveite; que o pudor do patriotismo nos incite. Já que
fomos a última nação da raça latina em plantar entre nós esta instituição
benfazeja, não nos desonremos deixando-a logo definhar. Passaríamos aos olhos
do mundo atônito por bárbaros, e todos os nossos protestos de querermos o
melhoramento moral e material do país seriam havidos por hipocrisia insigne.
Sem civilizar, morigerar e felicitar as classes populares, todo o progresso é fútil.
Dirigimos estas ponderações
especialmente à classe média e ao clero. Naquela reside a ilustração, a riqueza
e verdadeiramente o poder; nas mãos deste a preponderância que dá o predomínio
sobre as consciências. Que tanto uma como outro usem da sua influência para atrair
o povo ao caminho da previsão, da economia e das legítimas ambições e
esperanças. Não só ele, hoje rude, pobre e inclinado a vícios ignóbeis, lucrará
com isso; mas também as classes mais elevadas ganharão na paz e ordem públicas,
que se irão firmando à proporção que as classes inferiores se melhorarem nos
costumes e na ventura doméstica. Empreguemos o exemplo e a persuasão: uns
poucos de cruzados postos nas caixas econômicas não produzirão, decerto,
vantagens apreciáveis para o que possui uma fortuna avultada ou ainda mediana;
mas frutificarão para o povo, gerando a confiança e despertando nele o instinto
da imitação. Conspiremos todos para esta grande catequese; e que num país, onde
o hábito da leitura ainda é limitadíssimo, a persuasão oral, as relações de
família ou de dependência ajudem as diligências da imprensa nesta obra de alta
moralidade. Deus abençoará os obreiros que semearem e cultivarem essa rica
sementeira de regeneração na terra Pátria; e o povo, com a sua futura gratidão,
dará testemunho da bênção da Providência.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1844, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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