Senhor:
A câmara municipal de Belém, resolvida a ocorrer a uma
das maiores necessidades do concelho, a criar uma instituição do mais subido
interesse e cuja utilidade já hoje ninguém se atreve a pôr em dúvida, embora as
opiniões variem sobre o modo de a realizar, oferece à aprovação do Governo de
Vossa Majestade, pedindo o uso da iniciativa do mesmo Governo perante o
Parlamento a favor dele, o projeto de lei junto, relativo à fundação de uma
Caixa de Socorros Agrícolas, espécie de banco rural, acomodado às necessidades
deste concelho, ao nosso estado econômico e jurídico, aos nossos usos
agrícolas, e até às ideias e talvez às preocupações dos cultivadores, ideias e preocupações que, não havendo inconveniente, se devem respeitar, porque é esse
o meio de fazer aceitar instituições novas, de cuja importância só a
experiência de seus salutares efeitos pode persuadir os menos ilustrados. Vossa
Majestade permitirá que esta câmara exponha, com a brevidade que tais matérias
comportam, os fundamentos que abonam a ideia geral do projeto e as suas várias
disposições.
Por toda a Europa se tem reconhecido a necessidade de
salvar da usura a indústria agrícola, de facilitar a esta capitais, cujo módico
juro seja acomodado aos modestos lucros do cultivador. Em Portugal, onde tantas
vezes e por tantas maneiras tem reinado uma agiotagem desenfreada, nem a
indústria fabril, nem o comércio, nem a fazenda pública têm padecido talvez por
este lado metade dos males que a agricultura padece. Nas províncias do sul,
sobretudo, os campos são devorados por uma praga de usurários, que conservam o
lavrador numa bárbara servidão, e que defecando-lhe de contínuo os recursos,
não só lhe obstam a toda e qualquer tentativa de aperfeiçoamento rural, mas
também o vão gradualmente conduzindo à miséria. Clama-se contra o atraso dos
cultivadores portugueses, contra a imperfeição dos métodos, e esses clamores
são em grande parte pouco assisados. Sem pretendermos que a nossa agricultura
seja modelo, é certo que muitos dos defeitos que se lhe notam, não são senão
necessidades resultantes do clima, do solo, do estado da viação, das condições
dos mercados, do modo de ser da propriedade, e de mil outras circunstâncias
econômicas e jurídicas, que os agrônomos especulativos desconhecem, ou que não
apreciam. Se atendermos à elevação quase constante dos salários rurais desde
1834 para cá, à depreciação progressiva dos gêneros, e sobretudo à carestia
sempre crescente dos capitais, o acréscimo constante da massa dos nossos
produtos agrícolas, abona a crença de que o sistema de agricultar não é tão
imperfeito como folgam de pintá-lo os admiradores exclusivos das práticas
estrangeiras. Os grandes embaraços para o mais rápido desenvolvimento da
agricultura consistem sobretudo na falta de capitais, nas leis que por
diferentes modos se opõem à divisão da terra e à translação do domínio, à falta
de vias de transito e de polícia rural, a circunstâncias, em suma, que nada têm
que ver com esta ou com aquela forma de instrumentos agrícolas, com este ou com
aquele sistema de afolhamentos, com a introdução desta ou daquela cultura nova,
ou que, se têm alguma influência nessas coisas, é em dar razão às vezes ao
agricultor para não as adotar, embora sejam boas absolutamente consideradas.
A câmara de Belém, tratando de remover o maior dos
obstáculos ao desenvolvimento da agricultura neste concelho, a carestia dos
capitais, deve fazer sentir a maneira como a usura procede na obra infernal de
arruinar os cultivadores. O quadro que ela vai traçar é triste, mas verdadeiro,
e oxalá não representasse ao mesmo tempo o que se passa na maioria dos outros
concelhos, ao menos no sul do reino.
Em geral a usura exercida sobre a agricultura é de
duas espécies. A 1ª tem os caracteres genéricos desta imoralidade: o mutuante,
segundo a necessidade do agricultor, empresta sobre as hipotecas ordinárias com
os juros mais exorbitantes que pode, supostas tais ou tais circunstâncias no mutuário:
é um agiota insolente, vulgar, ávido como qualquer outro. A 2ª espécie tem
caracteres à parte) é a usura hipócrita, muito mais comum no campo do que a
primeira. O usurário desta espécie segue diverso rumo. É homem chão, modesto,
exato no cumprimento dos seus deveres civis, laborioso, valedor: é quase um bom
homem. Ignora as partidas dobradas e repugnam-lhe por via de regra, não só os
juros exorbitantes mas até o juro legal. Quando empresta o seu dinheiro ao
agricultor é por dó dele; é para lhe acudir num apuro. O que quer é assegurar o
reembolso da soma mutuada. Tendo horror às demandas, se o lavrador é
proprietário não lhe aceita o prédio como hipoteca, porque conhece a
imperfeição das nossas leis hipotecarias: se o não é, nem por isso quer
abandoná-lo. Nesta situação que faz? Empresta sem juro; mas exige um contrato
que lhe dê a certeza do reembolso. O cultivador há de pagar-lhe em gênero na
eira. E como há de ser o pagamento? Os cereais regular-se-ão pelo preço mais
inferior do gênero nessa conjuntura. É uma precaução. Para os riscos das baixas
possíveis que depois sobrevenham de uma venda anterior, de uma dívida
desconhecida, de uma colheita insignificante, etc., o mutuário promete o
abatimento de um, de dois, de três vinténs ou mais em alqueire. É outra
precaução. O usurário é compassivo, é benévolo para com a sua vítima, mas
precisa de ser prudente. O contrato fica secreto ou como secreto; não se
escreve porque o mutuante conta com a probidade do mutuário, ou para melhor
dizer, com o temor que este terá de achar em novos apuros condições mais
onerosas, e esses apuros são quase inevitáveis desde que o cultivador caiu uma
vez nas suas mãos. Tais são as formas mais comuns da agiotagem rural neste e
noutros concelhos. As circunstâncias especiais modificam-nas, mas em geral as
transações deste gênero caracterizam-se assim.
O segredo que se guarda acerca destas transações
obscuras e hediondas, a que se pode chamar a crápula da agiotagem, predomina
também forçosamente no fato geral que resume esses mil fatos de usura. A cargo
da irregularidade das estações e dos mercados, da falta de vias de transito, do
peso dos impostos, etc., ficam todos os males do lavrador. Murmura-se vagamente
e em voz baixa; mas nas queixas públicas o usurário passa ileso. Como buscando
o verme que destrói a árvore antiga, é preciso que o ouvido do observador seja
bem agudo e o silêncio à roda dele bem profundo, para sentir a usura roendo no
âmago da indústria agrícola. Se o Governo ou o Parlamento instituíssem um inquérito
solene a este respeito, o mais provável é que fosse nulo o seu resultado. O
agricultor calar-se-ia porque não crê na autoridade; não espera dela remédio. Mártir,
olharia para o algoz e ver-lhe-ia nas mãos os instrumentos dos tratos, ao passo
que no poder público só creria descortinar a indiferença, a fraqueza, a
impotência. Curvar-se-ia por isso e respeitaria o mais forte. Evitaria assim
que no seguinte ano a sua imprudência fosse castigada com mais uma volta na
corda do potro; com mais um ou dois vinténs de abatimento no preço por que
devera vender cada alqueire de trigo.
Para se avaliar bem toda a extensão do mal, é
necessário, Senhor, atender a alguns fatos. Ordinariamente o lavrador executa
com um capital seu os primeiros trabalhos anuais. Na prossecução desses
trabalhos é que é vulgar virem a faltar-lhe os recursos, e é então que ele
compromete o futuro. As mondas, as sachas, as cavas, as ceifas, as vindimas,
acham-no muitas vezes desprovido. Ora entre estes últimos trabalhos e o
recolhimento dos frutos medeiam apenas de cinco a dois meses e ainda prazos
mais curtos. Por outro lado, como é vulgarmente sabido, a época em que os
produtos da agricultura têm menor valor é na ocasião da colheita. Ajunte-se a
isto a redução de um tanto no preço de cada alqueire de cereais ou de cada
almude de vinho, e imagine-se qual será a exorbitância do lucro do mutuante.
Suponhamos (e esta suposição não vai por certo longe do que comumente sucede)
que o preço médio anual dos trigos temporãos, principal produção deste
concelho, corresponde a 500 reis, e que na época das eiras o cereal vale a 460
reis. Fazendo o abatimento de 20 reis em alqueire, o lavrador paga com cada um
destes apenas 440 reis de uma dívida que, supondo-se contraída por uma média de
três meses, vem a sofrer um juro de 12 por cento em trimestre, ou 48 por cento
ao ano.
Esta câmara, Senhor, não foi buscar exemplos aos casos
mais escandalosos, que anualmente ocorrem. Quando o crédito do lavrador está
abalado, muitas vezes por causa das mesmas usuras de que foi vítima, quando a
sua reputação de probidade não é inconcussa, quando os seus hábitos de economia
são pouco severos, quando as incertezas das estações o empobreceram, as usuras
redobram de violência. Mas, ou maiores ou menores, as dificuldades da sua
situação aumentam de ano para ano, e o resultado mais ou menos remoto dessa
situação é a ruína e a miséria. O cancro da usura devorou-lhe interiormente a
vida econômica lento, lento e sem ruído; e esta lentidão e este silêncio são
uma das características da agiotagem rural que a tornam mais difícil de
extirpar. O que enleva, o que arrasta sobretudo o lavrador, é o mistério dessas
transações leoninas que não se escrevem, que não se vão contar na praça, porque
o usurário é discreto e sabe tirar partido dessa preocupação dos agricultores.
Foi atendendo a estes fatos e às circunstâncias deles,
que se concebeu o projeto de uma instituição que, suprindo com vantagem os
bancos rurais como existem nos outros países e que parecem, ao menos por
enquanto, inaplicáveis ao nosso, trouxesse um alívio seguro à agricultura deste
concelho, mais comprometida e ameaçada de ruína do que se cuida. O pensamento
do projeto foi aproveitar a experiência, digamos assim, da indústria da usura
para a combater, organizando a Caixa de Socorros de modo que à facilidade das
transações se ajuntasse a modicidade do juro, e o respeito por certos hábitos e
preocupações que o progresso da ilustração há de destruir, mas que desatendidos
enquanto são vigorosos, impedem sempre a realização das melhores coisas.
Afirmou, Senhor, esta câmara que a Caixa de Socorros,
instituição simples e exequível, substituirá com vantagem os bancos rurais, que
esta câmara reputa inaplicáveis ao país. Efetivamente várias objeções gravíssimas
se podem opor à tentativa de criar entre nós o chamado crédito rural por via de
bancos. Que são os bancos territoriais ou hipotecários? Uma instituição de
garantia, intermedia entre o mutuante e o mutuário, ou mais exatamente entre o
capital e a propriedade, e que atrai aquele pela segurança, esta pela barateza
do dinheiro que a segurança do empréstimo produz. Na expressão da índole de
tais bancos se manifesta desde logo o imperfeito da instituição, ainda
absolutamente considerada. Não é só, diremos mais, não é tanto a propriedade
rural como a indústria rural que precisa de ser por toda a parte socorrida por
capitais baratos. A terra é um capital como o dinheiro, porque não passa de um
instrumento de produção: o produtor é o que a cultiva. É para este, para quem
representa o trabalho que sobretudo tais bancos deveram ser instituídos. Proprietário
ou rendeiro, que importa a qual das duas categorias pertence o cultivador, o industrial
agrícola? Um carecerá só de ser mutuário do capital dinheiro; outro carecerá do
capital dinheiro e do capital terra. Qual deles precisa de maior proteção?
Evidentemente o segundo. Os bancos rurais não satisfazem a esta necessidade.
Aproveitam aos primeiros, porém não aos segundos, ao menos diretamente. E
todavia, não dizemos em Portugal, mas em quase todos os países, o máximo número
dos cultivadores são os rendeiros. Na Polônia, na Alemanha, na Rússia, na
Dinamarca, na Bélgica, as instituições de crédito agrícola não vão além da
propriedade territorial. Nem outra coisa podia ser porque elas supõem
geralmente a existência do fundo, os bens de raiz, como hipoteca para o
reembolso. Desse fato deriva outra objeção grave contra os bancos rurais. Os
países do norte, onde a instituição nasceu, têm lutado com os mil tropeços, que
traz à sua consolidação o regímen hipotecário, e a França debate-se para a
criar com as dificuldades desse mesmo regímen, mais imperfeito ainda que
naqueles países. Entre nós o sistema de hipotecas pode considerar-se na
infância, e ele seria um obstáculo insuperável ao estabelecimento dos bancos de
crédito territorial.
Dir-se-á que as nossas leis hipotecarias serão
reformadas como ato preliminar à criação dos bancos? As nações mais adiantadas
têm consumido anos e anos em estudos e tentativas para reformar essas leis, que
prendem direta ou indiretamente com todo o direito civil, e ainda não o têm
completamente alcançado. É permitido por isso duvidar de que tal fato se
verifique entre nós, que ainda não temos um Código Civil e onde a legislação é
um caos. Faz, na verdade, sorrir a facilidade com que se imagina prover em
Portugal, ao complemento e organização desse esboço que aí temos de um sistema hipotecário.
As instituições destinadas a servirem de intermédio entre
os capitalistas e os proprietários, ou dependem de associações poderosas e
respeitáveis, ou da garantia pública. Mas quer sejam de um, quer de outro
gênero, é necessário que o seu crédito se repute inabalável. Sem isso debalde
se buscaria obter capitais baratos para agricultura. Mas quais serão as
associações poderosas e respeitáveis que possam ou queiram organizar entre nós
os bancos territoriais? Por outra parte a história da fazenda pública e dos
grandes estabelecimentos de crédito neste país, não abonaria demasiado a
confiança dos mutuantes na garantia pública. Todos os diversos bancos rurais
atualmente existentes na Europa pressupõem a emissão de notas, de letras, de
inscrições, de títulos de crédito, em suma, para funcionarem. Mas quem
prudentemente poderia esperar hoje em Portugal a aceitação de tais títulos? Mr.
Thiers dizia em 1848 perante a assembleia nacional, num país onde o crédito
público mal se poderia comparar com o nosso: "Basta que um papel se
introduza num país como nota de banco para se me tornar suspeito". Nós os
portugueses não suspeitamos: descremos. E esta descrença matará todas as
tentativas; porque o crédito nem se improvisa, nem se decreta.
Às precedentes objeções vem associar-se outra, talvez
não menos peremptória. Os capitais em Portugal têm um valor subido. São comuns
os empréstimos, feitos com toda a segurança compatível com o desordenado e
incompleto das nossas leis civis, a 7, a 8 e a mais por cento. Ainda supondo
possível a existência de bancos rurais que oferecessem solidas garantias, e que
a situação atual da agricultura portuguesa admitisse a exigência de um juro de
5 ou 6 por cento, como atrair os capitais para os bancos? Como resolver o
capitalista a contentar-se com um juro de 4 ou 5 por cento, visto ser
necessário reservar pelo menos 1 por cento para as despesas da gerência dos
bancos, quando ele pode obter para o seu dinheiro um preço mais subido?
Restaria só um meio, a emissão de notas que não
representassem valores positivos; restariam as quimeras da mobilização do solo
e da multiplicação dos capitais, ou por outra a moeda papel, que os utopistas
creem ter descoberto porque inventaram algumas frases ou palavras novas, para
exprimir erros velhos. Esta câmara julga inútil combater semelhantes
preocupações, porque o Governo de Vossa Majestade e o Parlamento estão acima de
tais desvios. Se fosse possível não o estarem, a opinião pública faria pronta e
inexorável justiça a esses papéis de crédito, desacreditados ainda antes de
emitidos.
Esta câmara, Senhor, não pretende com o que leva dito
negar os benefícios produzidos pelos bancos rurais nos diversos países da
Europa, nem que o progresso das luzes econômicas os venha a tornar mais amplos
nos seus efeitos, nem finalmente que possa chegar um dia em que a sua fundação
seja não só possível, mas também conveniente ao nosso país. Quis só mostrar a
convicção profunda que tem de que, por agora, para fazer alguma coisa
verdadeiramente útil à agricultura, considerada nas suas relações com o
capital, cumpre tomar por base outro pensamento, e desenvolvê-lo em harmonia
com o nosso estado econômico e civil, e além disso com as ideias, hábitos e até
preocupações inocentes dos agricultores.
Na criação da Caixa de Socorros, que submete à
aprovação, e para que pede a iniciativa do Governo, esta câmara tomou para
ponto de partida o tributo municipal, em vez da esperança de obter capitais
alheios para gerir. A razão é simples: não os obteria senão por um preço que o
estado da agricultura do concelho não comporta. Considerações mais largas a este
propósito talvez aqui tivessem cabida, mas ela contenta-se com o que já
ponderou, e que no caso especial é decisivo. Conhecendo pelos exames a que
procedeu sobre a matéria, que o grande mal consiste nas usuras a que o lavrador
tem de sujeitar-se para obter os meios de executar os amanhos anuais, foi
sobretudo este mal que procurou combater. Se a usura espreita as necessidades
instantes, que regularmente vêm assaltar o cultivador no granjeio anual, é aí
que deve ser repelida. A Caixa de Socorros emprestará anualmente e só
anualmente. Deste princípio resultam a possibilidade e a proficuidade da
instituição. Resulta: 1º que sendo a hipoteca do empréstimo os frutos em vez do
prédio, as questões hipotecarias desaparecem com um pequeno favor da lei, e sem
ofensa grave do direito de terceiro: 2º que limitando-se a quantia mutuada ao
equivalente da renda líquida do cultivador, reduzida ainda a três quartos para
obviar aos inconvenientes das alterações inevitáveis nessa renda, a Caixa,
obrigada a subministrar apenas somas comparativamente modicas, poderá
multiplicar os empréstimos e, recolhido integralmente o capital todos os anos,
salvo nos de escassez completa, estará sempre habilitada com recursos para
renovar oportunamente o benefício: 3º que limitando-se a empréstimos anuais a
mesma Caixa, evitará um dos grandes escolhos dos bancos hipotecários, a absorção
de capitais avultados por um período indeterminado ou demasiado longo; isto é,
evitará a causa mais ordinária da ruína dos bancos hipotecários: 4º que por
esta mesma razão deixará de cair na justificada censura, que mais de uma vez se
tem feito aos bancos territoriais, de favorecerem a paixão excessiva pela
propriedade, paixão vulgar no homem do campo, e a que se pode chamar o
vício da terra. Este vício produz, mais frequentemente do que se cuida, a
ruína do cultivador. Há uma observação feita já por toda a Europa, e que é
fácil de fazer em Portugal. O lavrador que pode obter um capital por tempo
indeterminado ou assaz longo, não procura em regra dar maior intensidade ou
aperfeiçoamento, à cultura do prédio que cultiva: trata de dilatar o granjeio.
Às dificuldades com que lutava acrescenta maiores, endivida-se cada vez mais;
cada vez faz maiores sacrifícios até que completamente se arruína. É esta a
história de muitos. O proprietário rural não deve estender a sua propriedade
senão com economias realizadas: o rendeiro não deve converter-se em
proprietário senão pelos mesmos meios. Tudo o mais é imprudente e arriscado, e
tanto mais arriscado quanto é certo que o vício da terra cria
facilmente na imaginação do cultivador esperanças de lucros, que se não
verificam. Os bancos rurais têm no meio de muitas vantagens este inconveniente.
A amortização pelas anuidades, sistema fácil para o mutuário remir a dívida
insensivelmente, não remedeia o mal senão causando outro. A anuidade não
significa para o cultivador senão um aumento de juro, que excedendo as forças produtivas
da terra, o arruína também. No fim de um certo número de anos não deverá o
capital extinto pelas anuidades, mas deverá outro que tomará emprestado, quando
a soma da anuidade com o juro anual exceder o produto líquido da sua indústria.
Nas disposições orgânicas da Caixa de Socorros Agrícolas,
esta câmara inseriu algumas provisões tendentes a remover uma apreensão grave.
Esta apreensão, a que já anteriormente se aludiu, funda-se num fato de ordem
moral: o cultivador português envergonha-se de tomar dinheiro a juro: entende
que há o que quer que seja menos regular nesse ato tão inocente como legítimo.
Prefere tudo à publicidade do que ele chama a sua miséria, e que às vezes o é.
Não raro o usurário explora este sentimento de orgulho, porventura nobre na sua
origem. Custa menos ao agricultor pedir àquele a quem já pediu uma vez, e que
não assoalha o fato, porque o defeito da usura não é ser vangloriosa. O usurário
contenta-se com reter em servidão perpétua o cultivador que uma vez lhe caiu
nas mãos. Aos olhos de muitos essa circunstância pareceria de bem pouco
momento: a esta câmara pareceu que, praticamente, era uma das maiores
dificuldades a vencer, e por isso insiste nela. Um fato, hoje esquecido, prova
a sua importância. Em 1845 o Governo decretando um empréstimo aos lavradores do
Ribatejo, convidou a Companhia das Lezírias a fazê-lo. Aceitou a Companhia o
encargo com condições que pressupunham a publicidade como garantia. Pedia-se um
juro modico em relação às usuras de que ordinariamente é vítima àquele distrito
agrícola. Nenhum mutuário todavia apareceu. Era o empréstimo um ato público, e
até certo ponto ruidoso, no qual cumpria que cada um se confessasse
necessitado. Preferiram a usura, e uma circunstância aparentemente
insignificante bastou para inutilizar as intenções benfazejas do Governo e da
Companhia. Importava, portanto obstar a que igual sucesso se renovasse no caso
presente. Imaginou-se o meio de conciliar a segurança da Caixa com as
prevenções dos cultivadores, e esta câmara crê tê-lo achado nas disposições dos
artigos 5º, 11º e 12º. O registro dos empréstimos, se não dá a certeza de um
segredo absoluto, oferece pelo menos tantas garantias de pouca publicidade como
a discrição dos usurários. Para o mutuário honesto há a segurança de que, paga
a dívida, não ficarão dela vestígios escritos, e de que enquanto subsistiu, o
conhecimento da sua existência não passou de poucos indivíduos. Na ocasião da
venda dos produtos agrícolas, raras vezes terá de se verificar o disposto no
artigo 14º Ninguém duvida em geral de entregar ao lavrador uma parte do preço
do gênero vendido antes de completar a troca.
Com os simples meios de operar as transações tanto dos
empréstimos como da restituição adotadas por esta câmara, o cultivador evita
esses trâmites complicados a que ficaria sujeito noutra qualquer instituição de
crédito. Os cultivadores, em troco do direito que adquirem a obter um capital
barato quando lhes convier, não tomam senão o encargo de mandar buscar à Caixa
de Socorros uma certidão de corrente, se dela precisarem antes do dia 30 de
agosto, para sem obstáculo negociarem os seus gêneros, e os compradores de
produtos agrícolas nunca puderam alegar ignorância, visto ser proibido aos
cultivadores do concelho operarem qualquer transação sobre frutos, sem
mostrarem o estado das suas relações com a Caixa.
A vantagem dos cultivadores, sobretudo dos de cereais,
que são a grandíssima maioria dos do concelho, não é só a de obterem capitais a
1/4 por cento ao mês, ou a 3 por cento ao ano, em lugar dos juros exorbitantes
de 30, 40 ou 50 por cento; é também a de poderem vender em conjuntura mais
propicia do que a da colheita, visto que a restituição só tem de estar
verificada no fim de janeiro: e se, por causa da facilidade de se harmonizarem
os empréstimos com os reembolsos, os primeiros ficam circunscritos ao período
de fevereiro a julho, é esta a época em que realmente o cultivador precisa
deles, porque é sabido que todo aquele que não pode executar os primeiros
trabalhos do ano agrícola com os próprios recursos, não está habilitado para
ser agricultor. Quando porém tal situação se desse, teria o lavrador a liberdade
de vender na eira, restituindo o empréstimo à Caixa, fazendo os primeiros
trabalhos com o resto, e vindo buscar em fevereiro novo empréstimo.
Explicado o pensamento da câmara no essencial, seria
ofender a inteligência do Governo e do Parlamento, dar também a razão de cada
uma das provisões do projeto. Em geral, há nele a manifestação de desconfiança
da boa vontade com que será mantida de futuro a nova instituição. Esta
desconfiança existe de feito no espírito da atual câmara. A fundação da Caixa
de Socorros Agrícolas fere interesses poderosos. Esses interesses cuja legitimidade
é mais que disputável, hão de combatê-la antes e depois de criada, e o combate
será tanto mais perigoso, quanto é certo que a usura tem de caminhar nas
trevas, usando de meios indiretos. Eram necessárias prevenções contra o perigo,
e a câmara crê tê-las tomado. Quando, o que não é de esperar, viesse uma
vereação hostil à existência da instituição, as provisões do projeto são tais,
que os vereadores comprometeriam seriamente a própria fortuna, faltando nesta
parte ao seu dever. Além disso, o administrador da Caixa, cuja subsistência
dependerá da permanência da instituição, defendido de uma demissão injusta da
parte da câmara pelas disposições da lei, será um obstáculo permanente aos
abusos que poderiam trazer a ruína da mesma Caixa.
Resta ainda, Senhor, a esta câmara dar algumas
explicações sobre o meio adotado para a formação do fundo, e sobre a quantia
que se fixou para o constituir.
Das considerações até aqui feitas deriva a criação do
fundo por meio de um imposto. O capital assim acumulado, sendo propriedade do
concelho, pode mutuar-se por um juro insignificante sem detrimento de ninguém.
Levantando-se um capital por empréstimo e aplicando-se o imposto à amortização
dele, as operações da Caixa poderiam na verdade satisfazer desde logo a toda a
procura de pequenos capitais; mas é evidente que o imposto oneraria o concelho
por mais anos, e o juro exigido dos mutuários não poderia ser inferior a seis
ou sete por cento, para ocorrer ao pagamento do juro de 5 por cento (supondo
que se obtivesse dinheiro por preço tal) e às despesas do estabelecimento. A câmara,
porém, está convencida de que a cultura do concelho, sobretudo a de cereais,
não sofre semelhante juro. Além disso, sendo esta uma instituição nova no país,
tendo contra si as repugnâncias e hesitações que sempre se dão em tais casos,
afora a guerra que lhe hão de fazer os interessados em manter o estado atual
das coisas, a procura de pequenos capitais deve ser tênue a princípio e crescer
gradativamente à medida que o fundo aumentar.
A base adotada para determinar o algarismo do fundo
foi a estatística dos prédios rústicos do concelho, a que a câmara mandou
proceder com a exação possível, suposta a sabida carência de recursos que há
para obter a exação em tais matérias...
Tomadas as médias da escala gradativa, e multiplicando
cada média pelo número de prédios de cada grau, achamos a média da renda líquida
total ser de 57:175$000 reis.
Mas aconselhando a prudência que se limitem os
empréstimos a três quartos da renda líquida de cada mutuário, seguir-se-ia que
o fundo da Caixa deveria ser proximamente de 42 contos de reis. Entretanto, do
seguinte mapa, em que os prédios rústicos do concelho são classificados segundo
a natureza das respectivas culturas, deriva a consequência de que uma soma
menos elevada satisfará plenamente aos fins da instituição...
As quintas e as hortas no precedente mapa constituem
mais da quarta parte dos prédios rústicos do concelho. As primeiras
pertencentes no máximo número a proprietários abastados da capital, e
cultivadas por seus donos, sendo além disso muitas delas antes objeto de luxo
que de indústria, não careceram provavelmente nunca de socorros da Caixa para o
seu cultivo. As segundas pela índole de uma cultura, que não sofre a acumulação
de frutos que possam servir de garantia ao empréstimo, estão forçadamente excluídas
do benefício da Caixa. Muitos dos prédios, porém, incluídos nestas duas
categorias, figuram entre os de maior renda na lista das propriedades rústicas
do concelho. Seria, portanto, necessário que todos os cultivadores, para cuja
utilidade, ou antes para cuja redenção do cativeiro da usura esta instituição é
destinada, carecessem de empréstimos integralmente equivalentes a três quartos
da respectiva renda líquida, para ser absorvido o fundo criado de 35:000$000
reis.
O imposto destinado para este objeto, posto não seja
senão a transformação de outro mais antigo e pesado, que hoje não poderia
subsistir, tem encontrado as dificuldades que se costumam encontrar na
fiscalização e cobrança de um imposto novo. Para o realizar era necessário que
a moderação acompanhasse a firmeza. Esta câmara adotou o método das avenças,
método popular que facilita as operações da cobrança, tanto para os exatores
como para os contribuintes, e que sob certo aspecto equivale ao sistema do
imposto direto e simples, e está demonstrando a excelência dele, excelência que
infelizmente o povo ainda não compreende. As avenças feitas não representam por
agora a verba do que o imposto deve produzir; mas hão de aproximar-se dela à
medida que for possível ir tornando a fiscalização mais severa. Se a câmara se
não ilude nas suas previsões, o fundo da Caixa estará preenchido dentro de sete
ou oito anos, podendo e devendo cessar o imposto desde que estiverem
preenchidos os fins dele.
Reservando a quarta parte do tributo especial para as despesas
gerais do município, a câmara atendeu a que sem esta reserva recairia sobre os
outros ramos do serviço municipal a cobrança e fiscalização dele, bem como a despesa
com a gerência da Caixa, enquanto os seus rendimentos não chegarem para isso, e
finalmente considerou essa reserva como uma indenização pelo encargo
estabelecido no último período do artigo 23º.
A câmara de Belém espera que esta sua tentativa, para
acudir à mais urgente necessidade de um concelho, em grande parte rural,
merecerá a benévola atenção de Vossa Majestade, e que o projeto junto,
corrigido pela sabedoria do Governo de Vossa Majestade, será submetido à aprovação
do Parlamento, que não a recusará por certo a uma instituição, cuja utilidade é
inquestionável.
Deus Guarde a preciosa vida de Vossa Majestade, como
todos havemos mister. — Câmara, em Vereação, 27 de março de 1855.
O Presidente — Alexandre Herculano.
Joaquim Ferreira Pinto Bastos.
João José Teixeira Leal.
Mateus Antônio Vieira.
José Street de Arriaga e Cunha.
Joaquim Ferreira Pinto Bastos.
João José Teixeira Leal.
Mateus Antônio Vieira.
José Street de Arriaga e Cunha.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1855, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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