7/01/2019

Sir John (Conto), de Bulhão Pato



Sir John

(MATILDE)

Sempre tive a mania de viajar. Se Deus me houvesse concedido a fortuna de algum lord spleenático, havia de gastá-la por esse mundo contemplando as ruínas da Grécia, os graciosos despenhadeiros da Suíça, o céu azul-escuro de Constantinopla, os arredondados capiteis de S. Pedro em Roma, as madonas de Rafael, e as encantadas virgens de Milo.

Gomo não a tenho, resigno-me a passear, de fraque e chapéu redondo, pelas intermináveis calçadas desta cidade.

Logo, porém, que aparece ensejo favorável aí estou eu decidido a caminhar, embora tenha de sofrer as estalagens da nossa terra e de afrontar com as nossas deploráveis estradas.

Quanto mais transpor a barra e sentir-me embalado pelas ondas do oceano!

No verão passado tratava-se de uma viagem; era curta, não passávamos dos nossos domínios; mas andavam-se algumas léguas do Atlântico, respirava-se outro ar e via-se outra natureza.

Excitaram-me as perigosas seduções de um amigo e parti para a Madeira.

Se há clima no mundo que faça sentir bem a deliciosa significação do dolce far niente, é por certo aquele.

Em dezembro, quando o norte agudo nos traspassa até a medula dos ossos em Portugal, ali abre-se pela alta noite uma janela, e passam-se horas inteiras com um bom charuto, aspirando a brisa, que vem fresca e impregnada no perfume das plantas que viçam em continua primavera.

Ali a magnólia cresce ao lado da árvore da Europa que se acurva, no verão, cedendo ao peso dos seus tesouros.

Nos primeiros dias do aprazível outono achava-me na quinta do meu amigo C. de C, a mais rica e mais bela das propriedades de recreio na Madeira.

Dois ingleses vieram também passar conosco uma temporada ali. Eram dois legítimos filhos da Grã-Bretanha, Cabelo encarnado, perna longa, olho azul, pescoço esguio e emparedado entre os coleirinhos.

Um deles tinha infelizmente simpatizado comigo. Eu estava ainda convalescente de uma longa e penosa doença e o maldito entendeu que devia matar-me usando da sua atroz higiene.

Uma tarde chegou-se a mim e disse-me, com aquele pronunciado assento que atraiçoa os filhos da nossa constante e fiel aliada, por mais corretamente que falem qualquer língua!

— Quer vir dar um passeio comigo? Hoje não temos nevoa na serra, deve-lhe fazer bem.

Hesitei primeiro, receando ter de passar três ou quatro horas sem abrir a boca, mas por fim resignei-me para escapar a outro suplício maior. Montamos a cavalo e partimos juntos.

De manhã tinham caído alguns aguaceiros fortes, e sucedera-lhes uma fresca brisa do norte que dissipara os vapores levantados da terra, purificando totalmente a atmosfera; de modo, que, fora do que ordinariamente acontece, as serras, destoucadas de nuvens, recortavam-se no firmamento puríssimo.

Transpusemos o portal da quinta, e tomamos sobre a direita. Não sei que haja nada mais agradável no mundo, do que uma bela tarde de outono, no meio daquela robusta e esplêndida natureza.

Com a chuva que viera abundante, mas rápida, do terreno e das plantas elevava-se um cheiro forte e acre, que excitava os sentidos e desafogava os pulmões.

O inglês olhou duas vezes para mim, sem dizer palavra, mas com gesto de quem se aplaudia intimamente.

Eu confesso que estava em plena inspiração; tive tentações de me apear do cavalo e principiar a fazer versos. Retive-me com vergonha do meu amigo. Passavam-me pela imaginação mulheres pálidas, com os braços nus, o seio palpitante, os olhos úmidos de lágrimas, que se derramam à lembrança de prazeres sonhados.

Ao inglês duvido que acontecesse o mesmo, mas não estava também no seu estado normal. Brilhavam-lhe mais os olhos, e chegava de quando em quando as pernas à sua finíssima égua americana, que saltava como uma gazela.

De repente sentimos no chão o batido e rápido galope de um cavalo. Voltei-me, e vi um véu flutuando ao vento e a elegante figura de uma mulher que passara.

Sir John grunhiu o que quer que fosse, que eu, na minha profunda ignorância da sua língua materna, traduzi por boas tardes, e desapareceu como um relâmpago.

Dali a momentos vi-o ao pé de mim com uma mulher desmaiada nos braços.

Cuidei que alguma vertigem me tinha deslumbrado. Apeei-me instintivamente; abri bem os olhos, e fiquei sem poder articular palavra.

O criado chegava a esse tempo, trazendo de rédea os dois cavalos. Soube então por ele o que fora. A égua em que vinha montada aquela como visão que eu vira, tinha-se desbocado. Sir John conhecera-o, e como?... como não sei eu, mas conseguiu salvá-la.

O desmaio era apenas de susto; a pálida flor das margens do Tamisa principiou a tornar à vida.

Derramou-se-lhe então pelas faces uma leve tinta como a que ilumina a nuvem branca e transparente, quando um raio de sol no ocaso lhe bate esmorecido.

Instantes depois estremeceram-lhe as longas e assedadas pestanas, descerrando-se para deixarem ver uns desses olhos que refletem a luz tão intensa que traspassa até ao mais íntimo da alma. Em seguida cravaram-se lânguidos e requebrados nos de Sir John, que, a este expressivo e adorável gesto, respondeu com outro grunhido, que eu provavelmente traduziria tão bem como o primeiro.

Dirigi-me depois a ela, e perguntei-lhe em francês, como estava. Respondeu-me que bem, que havia sido meramente susto, graças à prontidão com que Sir John lhe acudira. Isto proferido no mais puro e elegante parisiense. Depois esvoaçaram-lhe pelos lábios outras palavras que ninguém diria serem pronunciadas naquela engasgada língua dos nossos amigos ingleses.

Oh! formosura! formosura! Quanto podes tu, que até os desafinados e impossíveis sons desse arrevesado idioma se convertem em suave e melodiosa cadência quando passam pela tua boca de rosa.

A inglesa recuperara progressivamente o alento, e decidira-se a caminhar a pé, apoiada no braço do nosso imortal Sir John.

Eu confesso que olhava de revés para ele, horrivelmente despeitado, por não ter sido o herói daquela aventura. E o maldito via com incrível sangue frio aquele rosto de anjo enquadrado nas madeixas finas e aneladas do cabelo loiro cendrado, sentia a delicada impressão daquele braço que se firmava trêmulo no seu, e- não estremecia ele! Sopesava aquele corpo esbelto e flexível como a haste tenra de arbusto novo e não empalidecera e não lhe refluíra o sangue todo ao coração!

Oh! descrido e fleumático Sir John! Quando a ti e aos teus concedeu o Todo Poderoso a mais perfeita raça feminina que tem havido depois da nossa mãe Eva, não compreendo sinceramente o que fez.

Chegando ao fim da alameda que ia bater na estrada real, demos de frente com uma casinha de campo avançada por um pequeno jardim e situada em excelente posição.

Era um cottage como há tantos na Madeira, confortável e elegante, dos que os ingleses costumam tomar para passarem os meses que residem naquela terra.

A porta de ferro abriu-se, e a jovem senhora, a quem já Sir John havia feito a minha apresentação, nas imprescritíveis fórmulas do estilo, convidou-me a descansar. Desculpamo-nos prometendo voltar no dia seguinte e continuamos o nosso interrompido passeio.

Fui eu o primeiro a quebrar o silêncio.

— Esta senhora é casada?

— Não; mas vai sê-lo em breve.

Fiquei desapontado. Sente-se sempre o que quer que seja desagradável, quando sabemos que uma mulher bonita está nas vésperas de pertencer a outro.

— E diga-me, conhece o noivo?

— Perfeitamente; é um belo moço e amam-se os dois com estremo.

Desta vez fiquei desapontadíssimo. Cortei o diálogo e acendi o charuto. Sir John tirou a sua cigarreira, pediu-me lume, e principiou a saborear as narcóticas fumaças de um ótimo manilha.

Aquele céu desassombrado e azul-ferrete como o de Malta; aquelas serras altivas e luxuriantes, que o sol quase no ocaso acidentava de carregadas sombras; o oceano que se descobria brilhando em fortes cambiantes de luz; a imagem daquela mulher que passara rápida por diante de mim, que depois vira desmaiada e encantadora como as delicadas virgens de Guido, tudo isto fazia com que me corresse o sangue desordenado pelas veias, e me estremecessem as arcadas do peito ao bater convulso do coração.

Sir John foi quem desta vez rompeu o diálogo.

— Então que lhe parece esta formosura do meu país?

— Adorável. É raro encontrar-se uma fisionomia destas, tão regular e tão expressiva ao mesmo tempo. É um tipo acabado da beleza do norte, que é o mais perfeito, o mais gentil de todos os tipos.

— Julga isso? Pois não quer antes as espanholas? Tem mais fogo nos olhos, mais vivacidade nos gestos, mais ardor no sangue.

— Pode ser tudo assim, mas eu prefiro o porte modesto e recatado, a angélica e melancólica fisionomia de uma inglesa, aos meneios provocadores, à travessa e chistosa cara de uma andaluza.

— Dispense-me, mas não tem bom gosto. Há muito mais vida no brilho de uns olhos negros.

— E mais paixão, mais ardor talvez na temperada chama dos azuis.

— Não admira, o meu amigo é poeta, vive exclusivamente nas afastadas regiões do sentimento. Eu não. Prefiro o contato de uns lábios abrasados e o fuzilar de uns olhos provocadores.

— Pois está perfeitamente enganado. Isso que os homens nascidos sob o céu nublado e frio da sua pátria sentem ao aproximarem-se das mulheres do meio-dia, sucede-nos a nós quando nos vemos ao pé das mulheres do norte. Não sabe que é nos seios da neve que lavra a chama mais intensa e ardente?

— Sempre com imagens arrojadas, e pensamentos poéticos. Ora vamos, diga-me, parece-me que lhe fez impressão aquela senhora.

— A que costuma fazer sempre a vista de uma mulher bonita.

— Mas imagine que ela se apaixonava pelo meu amigo?

— Apaixonava-me eu também por ela; que tem isso de singular?

— Nada; mas não lhe acontecia tal. Os poetas são assim; a passageira impressão de um momento exprimem-na em verso heroico e passa à posteridade como documento de um afeto devorador e eterno. Pois acredita porventura que Eleonora, Beatriz e Laura foram para os três poetas o que nos apregoa por aí a história? Engana-se de meio a meio. Não tem visto os mais recentes? Byron, por exemplo, morreu de trinta e tantos anos, e teve mais de oitenta e tantas paixões; o que vem a dar quase duas paixões e meia por ano.

— Diga-me, Sir John, declara-se esta tarde em veia epigramática? Perguntei-lhe eu um pouco despeitado.

— Não, meu caro amigo; digo-lhe as coisas como as sente um homem que encara a vida pelo lado positivo.

Neste momento entrávamos o portal da quinta. Olhos negros e olhos azuis, metafisicas do sentimento, e dissertações de ceticismo, tudo nos esqueceu à voz do criado que chamava para o jantar.

***

No dia seguinte ainda os primeiros esplendores do sol vinham na casa de Cristo, já Sir John invadia o meu quarto, cantarolando o God save te king!

Levantei-me imediatamente e decidi-me a acompanhar o meu verdugo com resignação evangélica.

O inglês saiu a porta da casa, e entrou dali a momentos, trazendo um copo d'água na mão.

— Beba, disse ele; o meu amigo é extremamente nervoso, e o sistema hidropático é o único capaz de o salvar.

Desta vez a minha indignação ia excedendo os limites da decência; estive a ponto de lhe dar com o copo na cara.

— Uma xícara de café! bradei ao criado, que me olhava com um sorriso de compaixão impossível de descrever.

— Café! redarguiu o inabalável Sir John. Sabe o que faz! Olhe que se mata, que não vive mais um ano se continua assim!

Empunhei o copo, fechei os olhos, bebi de dois tragos aquela enorme quantidade de água.

All right! exclamou o maldito.

Eu medi-o de alto abaixo, e tratei de reprimir a cólera que me sufocava.

Saímos, e com efeito vinha rompendo uma esplêndida alvorada.

— Que aprazível lugar este! disse o inglês depois de haver caminhado uma hora em silêncio. Sentemo-nos aqui, e indicou-me um talho de relva que ficava a poucos passos. Lembra-se do que falamos ontem à noite? que ninguém compreende às mulheres? Quero-lhe contar a propósito disso uma história; passa-se em Portugal: é um verdadeiro drama, e talvez que o meu amigo conhecesse o protagonista.

Principiava a tomar alento para lhe responder, quando ele me agarrou fortemente no braço, e me obrigou a sentar naquele delicioso recosto.

Deitei-lhe por duas vezes uns olhos de piedade, mas a minha suplica ainda não foi atendida. Era forçoso resignar-me. A orvalhada da noite tinha encharcado a relva basta e florida. Quando cheguei àquele macio sofá de Flora, os joelhos fraquejaram-me, correu-me um calafrio pela medula dos ossos, e recomendei os efeitos da inevitável catarral à ciência, e cuidado do meu doutor. Com a palma da mão firmada em terra, e os calcanhares estacados no chão, sopesava o corpo para o livrar assim, o mais que pudesse, do pernicioso contato das pérolas matutinas.

Sir John falou muito tempo, mas eu não ouvi  nada, exceto a voz do criado, que veio arrancar-me às garras de meu verdugo, chamando para o almoço.

***

Dias depois, uma noite em que a chuva caía em torrentes, em que o vento tempestuoso se precipitava do alto das serras e ia revolver as ondas torvas do oceano, estávamos nós, depois de jantar, sentados à roda do fogão aceso, e saboreávamos na melhor disposição de espírito, o delicioso café da Madeira.

Vários dos circunstantes, inimigos capitais da “organização do trabalho”, animavam o diálogo com ditos picantes e discutiam o próximo com uma singeleza de estilo admirável.

Tinha a palavra um meu particular amigo, e fazia passar em revista a vida de Lisboa com a finura e tato artístico que o caracterizam.

Eu recordava-me saudosamente da pátria, linha diante dos olhos palpitantes e coloridas as cenas e os personagens que se desenhavam, graças à elegante narrativa do verdadeiro e conciso historiador.

A conversação variava de aspecto insensivelmente, e por fim, caíra no sentimentalismo puro.

Falava-se de Portugal. Bom ensejo para continuar a narração do nosso amável companheiro; era lá que a cena se passava e era também quanto me lembrava do que me havia sido contado naquela fatal manhã.

Fui eu o primeiro a dar rebate; levava nisto um pensamento reservado que tu por certo, leitor benévolo, adivinhas.

Instaram todos e cedeu fácil o gênio sociável do nosso amigo.

Estreitou-se mais o círculo, renovou-se o lume, a história começou.

Tenho pena de não a poder transcrever aqui, com a simples elegância com que nos foi contada.

Sir John recostou-se na sua cadeira, tirou duas longas fumaças, sacudiu depois a cinza com a ponta do dedo mínimo e principiou a olhar para a coluna aspirai de fumo azul que se condensava no ar úmido e frio.

“Eugênio, disse ele, era quase uma criança quando eu pela primeira vez o vi. Nunca me ficaram feições de homem tão gravadas na imaginação como aquelas. E não era o que chamam bonito, o que em geral alcunham de elegante e perfeito. Antes pelo contrário, se o quisessem aferir pela vara legal do janota perfumado e encaracolado, faltavam-lhe todas as condições que requer a arte.

Era alto, proporcionado e ágil. Os mais pequenos gestos, os ademanes mais rasgados, não os estudava nunca, caiam-lhe sempre fáceis e elegantes.

Eu gostava dele por uma dessas atrações irresistíveis que se não podem explicar.

Remoçavam-me a alma as ilusões, os sonhos encantados da sua elevada imaginação; mas experimentava, quando o via entusiasmar-se e confiar cego no mundo, uma compaixão involuntária que me predizia toda a fatalidade do destino que mais tarde o esperava.

Não lho disse nunca, não tentei desbotar-lhe nenhuma das suas esperanças. Ele ia despenhar-se, antevi-o desde o primeiro momento que o vi; mas a queda era inevitável, apontar-lha, seria torná-lo mais infeliz.

Eugênio perdera sua mãe no dia em que viera ao mundo, e seu pai quatro anos depois. Órfão, ficara entregue aos cuidados de um tio, que lhe administrava religiosamente a sua fortuna. Este homem tinha uma filha pouco mais moça que seu sobrinho, e era um fidalgo de velha raça. No dia em que Eugênio cumpria dezoito anos, o visconde chamou-o de tarde ao seu quarto, teve com ele uma longa conferência, que terminou entregando-lhe uma carta que seu pai lhe havia confiado nas vésperas de morrer. Entre outras coisas, um dos períodos dessa longa missiva recomendava-lhe, que, a casar-se, escolhesse por mulher a filha única do seu adorado irmão.

Pouco tempo depois um acidente inesperado fez com que ele perdesse toda a sua considerável riqueza; ficava-lhe contudo de que viver desafogadamente. Este golpe não lhe fez a mínima impressão; encontrei-o alegre como de antes, o mesmo sorriso de franqueza nos lábios, o mesmo olhar cheio de fogo e de confiança no futuro.

Decorreram dois meses, no fim dos quais fui convidado a passar uma noite em casa do visconde.

Tinha-se juntado o mundo elegante. Entrei eram onze da noite. O visconde foi apresentar-me a sua filha.

Que gentil e adorável criatura aquela! Rafael quando imaginava a sua madona de la sedia, não sonhou por certo formas mais castas e mais voluptuosas ao mesmo tempo do que eram aquelas. O cabelo castanho, tão escuro que tocava quase em preto fazia ressaltar o branco-pérola da epiderme, que se iluminava de um desvanecido cor de rosa. Os olhos em singular contraste com o cabelo, eram azuis; azuis puríssimos, e lânguidos como os da gazela. Em Londres nunca os eu vi tão de lei como aqueles. Quando o pudor os baixava, então a sombra das pestanas escurecia-os por modo tal que pareciam pretos. E eu sei? Creio que é propriedade deles quando são assim. — Disse Sir John trocando um sorriso de inteligência comigo. — Variam de cor segundo as sensações do espírito, por isso exprimem mais do que os outros.

Vendo-a vestida de branco, sem outro adorno além de um cinto preto e uma camélia cor de rosa no peito, recordei-me que já me tinha aparecido em sonhos alguma coisa semelhante.

Tocou-se uma contradança; Matilde estava engajada, e foi dançar. Retirei-me às outras salas para ver se encontrava Eugênio; o mancebo não tinha chegado ainda. Encostei-me ao umbral de uma porta, e lembrei-me dele contemplando a angélica figura de sua prima. Pensava em que deviam amar-se os dois. As feições severamente acentuadas daquele moço, e ao mesmo tempo cheias de toda a mobilidade que lhe davam as sensações do seu elevado espírito, ao pé da beleza casta e das delicadas formas da donzela, deviam mais tarde, quando um vivo amor os iluminasse a ambos, formar um desses quadros que estuda o pincel dos grandes mestres. Veio arrancar-me deste vago imaginar um amigo, que me bateu no ombro. Era T.... que também conhecem.

— Perde o tempo, meu caro Sir John; aquela virgem de olho azul e corpo de anjo vai casar-se dentro de pouco com um provinciano gordo, tolo e gago. Disse-me ele com a mistura de ironia e afabilidade que tem na voz.

— Não entendo, diga-me primeiro a quem se refere.

— Ora vamos, à filha do visconde que está dançando aqui defronte de nós.

— Pois vai casar-se?

— Ainda agora o sabe? Desde que o outro primo perdeu a riqueza, o pai revendo a árvore da geração, encontrou que a este trasmontano é que pertencia diretamente a mão de sua filha.

— Mas isso é uma infâmia sem nome. E se ela amar Eugênio, como é de supor que a estas horas já se amem loucamente os dois?

— Que importa isso? Não sabe que vinte contos de réis anuais, e um título qualquer, são bálsamo para curar toda a ferida que tenha feito o deus do amor? Prosseguiu T.... ironicamente.

Nesse instante acabou a contradança, o visconde chegou-se a mim, e disse-me:

— Quero apresentar-lhe o meu futuro genro. É filho do sr. D.... o meu mais íntimo e velho amigo. Ao dar-mo-nos a mão, aquele ridículo personagem gaguejou um esquerdo cumprimento, e desapareceu felizmente.

Nesse momento a bela figura de Eugênio apareceu no limiar de uma das portas.

Nessa noite a sua fisionomia estava mais insinuante ainda que de ordinário. Os cabelos e olhos negros destacavam na palidez do rosto, transtornado por uma primeira e forte luta de espírito.

Correu a sala sem reparar particularmente em ninguém, nem na prima que estava tão linda, e que lhe adejou um sorriso de alegria pelos lábios assim que o viu entrar.

— Então, Eugênio, é desse modo que se costumam tratar os amigos? Há um século que não aparece. Que fez dos planos? Onde estão os seus projetos? Disse-lhe eu ralhando com ele amigavelmente.

Sorriu-se, e respondeu-me que desejava falar-me. Dei-lhe o braço, e descemos até o jardim.

— Sabe que minha prima vai casar-se, que meu tio se chegou a mim há dias, e me disse: que devia sair de casa, porque o mundo podia levar a mal que eu, um homem, estivesse vivendo ao pé de sua filha que estava já uma senhora. Compreende o que vai de infame nisto? Ele que há pouco tempo quase que me falava diretamente em ideias de casamento, e agora com a perda da minha fortuna descobre-se assim, revela sem pudor toda a miséria da sua alma!

A voz saía-lhe abafada do peito e mal se lhe articulavam as palavras nos lábios convulsos pela indignação.

— Ela, sua prima, consente definitivamente no casamento?

— Por que não? Foi a primeira a dizer-mo com a mesma singeleza com que me confiava de antes os seus segredos de criança.

— E vamos, Eugênio, confessou-lhe que a amava?

— Eu? disse ele estremecendo de ouvir estas palavras, eu não podia confessar-lhe o que não sinto por ela.

Entendi o despeito que pretendia encobrir aquele amor, que acordara enérgico e ardente, assim que a mão da infelicidade o tocara.

Calamo-nos, e no fim de um quarto de hora subimos outra vez para a sala.

Tocava-se uma valsa. Matilde perguntou a Eugênio se não dançava. Ele respondeu-lhe que não. — Nem comigo? Disse-lhe a prima com um som de voz irresistível. O mancebo empalideceu, deu-lhe o braço, e entraram ambos na casa do baile.

Que duas gentis figuras aquelas! Ela mal tocava o chão com os dois pequenos pés de fada; ele leva-a ao som da cadência vertiginosa e lânguida ao mesmo tempo. Contemplando-os, tinha me esquecido de tudo e cuidava ver diante dos olhos Amauri e Madalena, volteando ébrios de amor e de ventura, ao som daquela melancólica valsa de Keber.

Mas assim como esse encanto se quebra para o mancebo que acorda de repente, sopesando nos braços o corpo inanimado de sua amante, assim também por modo diverso acordei eu deste vago esvoaçar do pensamento para as regiões ideais, vendo passar por defronte de mim a rotunda figura do abastado provinciano.

A música cessara, e, Eugênio conduziu Matilde ao seu lugar.

Todo o resto daquela noite pensei em caminhos de ferro, nos produtos da “exposição”, e nessa linha de vapores que vai estabelecer-se entre os portos de Inglaterra e o Rio de Janeiro.

Sir John parou aqui abrindo convulsivamente a boca, soprando e sacudindo fortemente os dedos; o charuto, que estava nos últimos paroxismos, tinha-lhe escaldado os beiços.

A história suspendeu-se por algum tempo, e o diálogo principiou sobre ela.

— Essa Matilde por fim sempre casa? Disse um dos circunstantes, abrindo desmedidamente a boca.

— Não, mata-se, respondeu outro que tinha escutado tudo sem pestanejar.

— Crês isso, minha fábrica ambulante de sentimentalismo da primeira sorte, redarguiu um terceiro, que era cético como um filosofo do século dezoito.

Yes, respondeu um inglês que não tinha entendido uma palavra, mas que não costumava deitar-se sem fazer o gasto de três destas afirmativas.

O resto, a continuação, pediram todos a Sir John, que tinha aproveitado este intervalo lucido, para pedir ao criado uma taça com conhaque, água quente e açúcar, e que ele mesmo adubava cuidadosamente de canela e noz moscada.

— Vou abrir capítulo, disse o inglês apagando as labaredas furta-cores da deliciosa bebida, e enchendo os copos que tinha defronte.

Nós principiamos a elogiá-lo pelo seu duplo talento de historiador e copeiro.

Sir John acendeu voluptuosamente o segundo charuto e prosseguiu:

— Vamos entrar no perfumado mês de abril. Matilde está no campo, num dos sítios mais pitorescos dos arrabaldes da cidade, pálida como um lírio, e fresca como a corrente que o rega. Eugênio com praça assente na marinha, e decidido a partir, seja para onde for, no primeiro navio que se fizer de vela.

É fácil de explicar esta repentina mudança. O mancebo não tinha nunca visto os olhos azuis, e a encantadora figura de sua prima, senão nessa noite de baile em que nós acabamos de a ver agora. Não se admirem disto; o amor tem destas extravagancias. Oculta-se às vezes por modo tal nas entranhas de um pobre homem que decorre largo tempo sem que ele o conheça. Apodera-se-lhe então traiçoeiramente da vida, toma forças disfarçado noutro sentimento, e chega um dia, uma hora, em que lhe descobre todo o poder que já tem em si.

Foi isto o que aconteceu a Eugênio. O afeto de irmão que sentia em criança por ela, variava insensivelmente com a idade, e dormia-lhe no fundo da alma sem ele o perceber. Assim que o primeiro sopro da paixão o sacudira, agitou-se, revolvendo enérgico e violento, todos os poderes do coração.

Que lhe restava senão desaparecer, para que o seu orgulho não sofresse diante de um rival parvo, mas vencedor?

Não me hei de esquecer nunca da expressão solene que tinha aquele rosto ungido pela dor, no momento em que me separei dele. Quando me disse que em breve nos tornaríamos a ver, bailaram-lhe nos olhos negros duas lágrimas, e esvoaçou-lhe pelos lábios um sorriso de dúvida.

Eugênio foi despedir-se de Matilde na véspera da partida.

Era ao cair de uma dessas tardes de abril, perfumadas e serenas, em que o céu desassombrado de Portugal, se espelha nas águas transparentes do Tejo, em que a brisa fresca refrigera o sangue e alenta a vida; em que o encantado aspecto da natureza anima no coração de uns uma esperança, acorda no de outros uma saudade.

Matilde passeava a essa hora junto do muro da quinta que deitava sobre a estrada real. Fora ali, naquela casa, que Eugênio tinha passado a sua infância com ela. Quantas vezes a tomara nos braços e a levara a correr por aqueles campos!... Não havia uma pedra, um tronco de árvore, um monte de relva que não devesse trazer-lhe à lembrança dias que tinham corrido tão felizes, tão descuidados como correm sempre os primeiros da vida.

De repente sentiu na estrada o rápido galope de um cavalo; olhou e viu Eugênio que passava. Dali a um momento a imprescritível sineta tangia duas vezes anunciando uma visita.

O mancebo atravessou as salas sem encontrar ninguém. Levado da antiga intimidade dirigiu-se ao jardim, chegou-se a ela, e disse-lhe:

— Eu parto amanhã para a África; vinha receber as ordens do tio visconde, e dizer-lhe adeus, Matilde.

Ela quis articular algumas palavras, mas a voz sufocou-se-lhe na garganta. Ele não deu por isso; a dor absorvera-lhe o pensamento numa ideia só. Saiu com passo firme, montou a cavalo, e desapareceu a galope.

A pouca distância encontrou uma carruagem, e no perpassar rápido conheceu o visconde, que trazia à direita o noivo de sua filha.

No dia seguinte, eram cinco da tarde, transpunha a barra, de bolina larga, o brigue de guerra português L. T., no rumo de Loanda.

Se algumas lágrimas caíram dos olhos a Eugênio, secou-as o norte que soprava fresco. Os seus companheiros viram-no sempre calado, tranquilo e indiferente.

Nessa noite, quando o visconde chegou a casa, veio dizer-lhe uma criada que sua filha tinha passado mal, e não tencionava sair do quarto. Ele correu imediatamente a vê-la. Encontrou-a pálida, com os cabelos em desordem e as faces banhadas de lágrimas. Tomou-a nos braços, e perguntou-lhe com ansiedade o que lhe havia acontecido. Foram baldadas suplicas e exigências. Matilde não respondeu.

Dias depois, a jovem menina fez saber a seu pai a resolução firme em que estava de não casar com o homem que lhe destinavam.

Não há dúvida que Matilde amava Eugênio; mas então por que o deixara partir assim, sem uma palavra de afeto, sem uma lágrima que atraiçoasse naquele instante a amargura que a devorava? E como foi ela a própria, que com uma ingenuidade quase infantil, lhe confiou os projetos de que seu pai lhe falara indiretamente e sem denunciar a mais leve ideia de se revoltar contra eles?

É porque era mulher, e as mulheres por mais inexperientes, por mais cândidas que sejam, ninguém as entende.

Aquela natureza débil e extremamente impressionável, não pode resistir à dor, e às cruéis exigências com que seu pai continuadamente a afligia; caiu enferma.

O visconde, a quem eu tinha feito por acaso um importante serviço, tratava-me com particular distinção. Aproveitei-me dela para frequentar com intimidade a sua casa. Queria ver se podia salvar assim a pobre criança, e chegar um dia a ver felizes aqueles dois entes, se porventura Eugênio escapasse da sua fatal viagem.

Sabem que eu tive a louca mania de estudar medicina; o visconde pediu-me como amigo, que velasse por sua filha. Com efeito, pode-se dizer que fui exclusivamente o seu médico assistente e consegui, nalguns dias de assíduos cuidados, restabelecê-la da febre violentíssima que a pusera em grave risco de vida. Proibi expressamente o visconde de lhe falar em coisa que pudesse afligi-la, ainda que de leve.

Servi-me da-minha autoridade de doutor; o pai obedeceu-me cegamente, porque adorava a filha.

Do mal físico estava ela quase totalmente restabelecida, tratava-se agora do moral. Confesso que pensei muito no modo por que havia de principiar o meu receituário. Uma tarde, no dia seguinte a ter recebido a primeira carta de Eugênio, montei a cavalo, e fui visitar a minha convalescente.

O mancebo escrevia-me debaixo de uma tal desordem de espírito, que mal se podia encontrar ligação nas suas palavras. Contudo eu tinha esperança; confiava na primeira carta minha que já deveria ter na mão.

Cheguei a casa do visconde e encontrei Matilde no jardim, respirando o ar fresco da tarde. Eu queria-lhe já, como se fosse minha filha; quando não, seria essa a ocasião de me esquecer de tudo, e de lhe cair aos pés arrebatado de amor.

Vendo-a, fazia-se mais perfeita ideia das sublimes criações do gênio.

As abundantes pregas de um xale de caxemira branca, resguardavam-lhe o corpo emagrecido pelo padecimento, mas flexível e elegante como esses arbustos tenros que são sacudidos pelo vendaval da noite e que aparecem no dia seguinte aviventados à luz de uma graciosa manhã.

As mãos transparentes não se diferençavam da alvura da tela, senão pelas veias azuis que deixava ver a finura da pele.

O rosto enquadrado nas ondeadas madeixas de cabelo escuro, tinha uma expressão de melancolia que se não exprime em palavras.

— Então, Matilde, pode ou não a ciência desmentir as suas profecias? disse-lhe eu depois de a contemplar um momento.

— Não é tarde ainda; eu nunca as acreditei tão certas como agora.

— Continua com a mesma imaginação? Olhe que o doutor tem direito a ralhar severamente.

— Mas não ralha, porque é muito meu amigo, disse ela, estendendo-me afetuosamente a mão.

Estas palavras aludiam a uma fatal ideia de morte que a perseguia desde certo tempo.

— Vamos, agora é mister deixar essa eterna melancolia, e viver, estar alegre como dantes. Estamos no outono, daqui a pouco principiam as “soirées”; e eu exijo em paga dos meus relevantes serviços, a primeira valsa ou contradança que dançar. Não mo promete, Matilde?

— Não, porque tenho a certeza de lhe faltar. Já me não divertem a mim os bailes.

Prosseguiu ela acompanhando estas palavras de um sorriso de infinita resignação e tristeza.

Depois, quase repentinamente e com uma alteração febril, disse-me:

— Diga-me, Sir John, não teve ainda cartas de Eugênio?

— Ontem mesmo recebi uma. Está bom, e conta ver Portugal em breve.

Olhei para ela; os lábios tinham-se-me entreaberto por uma crispação nervosa, e o rosto tornara-se-lhe transparente. Tomei-lhe as mãos entre as minhas, e disse-lhe, pondo no tom da voz, a maior expressão de confiança que me foi possível:

— Eu sei tudo, Matilde; esperava o primeiro momento conveniente para lho dizer. Ele ama-a com a veemência de que é susceptível uma organização daquelas. Partiu, porque supor que o seu amor não seria correspondido nunca. Disse-me tudo a mim; não quis ver-se humilhado diante de outro homem que ele cuidava vencedor. Sem a consultar, mandei-lhe dizer numa longa carta quanto eu adivinhara; a estas horas sabe tudo, tem a certeza de que é amado também. Perdoe-me agora, ralhe comigo se fiz mal.

Fiquei sem me atrever a levantar os olhos para ela; não quis turbar ainda mais o pudor infantil que havia de subir-lhe às faces, vendo assim o segredo de seu primeiro amor, que ocultava tão cuidadosamente a todos, sabido por um homem, embora esse homem fosse eu. Senti então estremecerem as mãos dela, e duas lágrimas ardentes caírem sobre as minhas. Em seguida desatou num choro convulso e cortado de soluços. Tomei-a nos braços, e principiei a animá-la como se fosse uma criança. Pouco a pouco foi tornando a si. Depois, fitando-me com os olhos orvalhados de lágrimas, e as faces acendidas de rubor, disse-me com uma espécie de alegria infantil:

— Já não hei de morrer; agora sim, que eu me sinto boa e com força para sofrer tudo.

Essa noite, quando voltei a casa, tinha grandes esperanças de poder salvá-la. Contudo receava ainda. Aquela natureza era como a de Magdalena, que tão delicadamente nos desenhou Alexandre Dumas no seu Amauri. A dor ou o prazer podiam matá-la.

Aconteceu exatamente o que eu receava. Matilde recaiu no fim de dois dias, e dessa vez mais gravemente que da primeira. Apesar de tudo não desanimei. O visconde, esse é que julgou sua filha morta. Era mister aproveitar essa ocasião para lhe falar com brutal franqueza. Dirigi-me a ele, e disse-lhe: sua filha pode salvar-se e mais depende isso de vossa excelência que de mim.

— Então que é mister que eu faça? exclamou o velho soluçando como uma criança.

— Renunciar desde já a todas as ideias desse fatal casamento, e dar-lhe o homem que ela ama, por quem ela morre, Eugênio, o filho único de seu irmão.

Naquela alma havia uma desmedida ambição de dinheiro, mas acima de tudo estava um amor louco pela filha. Deu-me a mão, e prometeu-me debaixo de solene palavra de honra, que o mancebo casaria com Matilde.

Que longas noites de dúvida pungente e padecimento incrível foram, para mim, as que passei junto ao leito dela. No fim de três dias a doença fez crise para pior. Cheguei a perder quase todas as esperanças: vali-me dos meios estremos que a ciência põe à nossa disposição, e com efeito, a violência da febre cedeu por fim. Agora tratava-se de prevenir os resultados dela. Receava que lhe sobreviesse alguma afecção de peito, e a estação aumentava os meus cuidados. O inverno desse ano foi dos mais rigorosos em Portugal.

Eugênio escreveu-me outra vez neste intervalo; tinha já recebido a minha carta.

Parecia-lhe um sonho quanto lhe eu mandava dizer, mas um sonho de inefável ventura para ele. Voltava outra vez no brigue que estava próximo a fazer-se de vela.

No fim de um mês, as melhoras da minha grave enferma eram prodigiosas; a tosse passara, e os pulmões conservavam-se perfeitamente bons.

Um sangue puro, uma organização bem formada, ainda que débil, vingaram e venceram.

Em pouco tempo estava quase totalmente restabelecida. Eu aconselhara-lhe o ar do mar, e o visconde tomou uma casa no Bom Sucesso.

Era um desses belíssimos dias de inverno como há tantos em Portugal. Matilde e eu passeávamos à beira do mar.

Ela corria e doidejava como se fosse uma criança ágil e cheia de vida. Os olhos tinham tomado outra vez o seu brilho antigo, o rosto perdera aquela palidez linfática que p transtornava, e resplandecia já com as cores vivas, que denunciam a pureza de um sangue que passa plena e livremente pelo coração.

— Que bonito navio aquele f disse-me ela apontando para um brigue que entrava no Tejo, de pano largo. E é português, não vê pela bandeira?

Olhei, e tive um singular pressentimento. Aproximei-me a um daqueles marítimos que estavam ali, e perguntei-lhe que navio era aquele. O homem olhou-o um momento e respondeu-me em seguida:

— É o brigue de guerra português L. T., que vem de Loanda.

Matilde agarrou-se ao meu braço, pálida e trêmula, sem poder articular uma palavra.

Parti imediatamente para bordo. Quando ia a atracar à escada apareceu-me no portaló um guarda-marinha; procurei-lhe por Eugênio de Almeida. O jovem marítimo empalideceu, e disse-me com um leve tremor de voz:

— Morreu na véspera da nossa partida com a febre em Loanda.

Nessa mesma tarde sai de Portugal no paquete de Londres.

Não tive força para encarar Matilde depois daquele fatal acontecimento. Escrevi-lhe de Inglaterra; não me respondeu. Dali a um ano voltei a Portugal. Passados poucos dias encontrei o visconde numa dessas ruas principais da cidade; vinha carregado de luto; correu direito a mim logo que me viu, com os braços abertos e os olhos arrasados de lágrimas.

— Há três meses perdi-a... morreu-me nestes braços... a minha querida filha; disse-me ele desfechando num choro de soluços que cortava a alma.

O pobre velho, vergado com o peso da dor e dos remorsos, tinha envelhecido um século naquele curto espaço de tempo! O doutor, com quem falei depois, disse-me que ela havia morrido de uma lesão do coração, proveniente de um defeito orgânico nas paredes da cavidade torácica. Bem sabia o homem disso!

Sir John parou aqui. Um dos circunstantes perguntou-lhe com uma inocência admirável: Já casaram os noivos? O inglês levantou-se furioso.

Ecco ridente il ciel
Gia sponta la bella aurora

Exclamou o meu amigo C. de G. com visível mau humor, vendo que a manhã já vinha alvorecendo.

Eu amaldiçoava, por entre os dentes, a história e o historiador, e o outro inglês, espécie de fábrica ambulante de spleen, ressonava profundamente sobre uma poltrona. Acordamos eram duas da tarde, à luz de um sol esplêndido que iluminava o tope daquelas serras. Sir John estava pálido como um espectro de MacBeth.

---
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...