1/19/2020

Brasões (Poemas), de B. Lopes


PÓRTICO

Espadim de Romeu feito em Verona,
Posto ao lado do cinto de áureas trenas,
Afivelado pelas mãos pequenas
De apaixonada e virginal madona;

Balcão, cheio de rosas e arabescos,
Onde um mavioso bandolim se ouvia
Lá pela noite langorosa e fria...
Versos tremidos e madrigalescos;

Torreões de opala, alcovas de escarlata
Abertas para o amor e para a neve,
Quando exalava o Cós, fervente e leve,
Nas abrifauces ânforas de prata;

Diáfanas, doces castelãs e mestas
Damas de honor, a espreita dos amantes.
Na gelosia verde dos mirantes,
Coroadas de pálidas giestas;

Dóceis faisões de venezianos paços,
E outras aves reais de adorno e fama
Pavoneando a pluma-íris e lhama,
Na balaustrada ebúrnea dos terraços;

Cetinosas espáduas, nucas de ouro,
Roçagantes veludos e alta seda,
Tudo incendiado pela labareda
Do ciumento olhar de um pajem loiro;

Globos, talhados em jasmim cheiroso,
Enchendo o ninho quente dos decotes
Cheios de beijos e de miosótis,
Num romântico eflúvio capitoso;

Modorrento luar de cacto branco
E camélias albentes esfolhadas,
Em cujo raio as almas namoradas
Iam subindo em suspiroso arranco...

Foi-se a vida dourada das varandas
Perfumadas a lírio e a violeta...
Só, do Passado, o amor de Julieta
Numa vaga efusão de essências brandas!

 

SUA ALTEZA

I
Afivelados — cinto e esporas de ouro,
Volve ele à imagem desolada e branca,
Que, então, contrita, as lágrimas estanca,
Desfeita a coifa do cabelo loiro:

Sê tu com Deus! E se os brasões do mouro
O meu selado brio não arranca
E eu não plantar a lança em Salamanca,
Não sobreviva o corpo a tal desdouro;

Ferro de meus avós, D. Florio o jura...
Eis que súbito um pranto de amargura
Pelos olhos de céu da esposa se abre!

E altivo, e nobre, o cavaleiro assiste
À dor dessa princesa amada e triste,
Com a mão em voto sobre a cruz do sabre!

II
Diáfana, esgalga, apiedando a gente,
Borboleta de extinta primavera,
Surge-me dentre madressilvas e hera,
Como gelada pérola dormente.

No lis murcho da tarde o olhar morrente,
No êxtase frio de estelar quimera,
Com o livro de Horas no regaço, espera
Vésper, a hóstia do Ângelus, no poente...

Açucena litúrgica de ermida;
Flui um frouxo crepúsculo de vida
Seu débil corpo, órgão—sonoro e etéreo,

Que, no anseio divino de outra plaga,
Como a mais leve das falenas, vaga
Balouçada nas asas do Mistério!

III
Essa, de luto e pálpebra magoada,
Branca, franzina e lirial condessa,
Vai viver sob o império da abadessa,
Num convento de Espanha enclausurada.

Ela, faustosa dama cortejada?
Tão às divinas práticas avessa,
Despe o diadema e os sonhos da cabeça
No pavor de uma cela amargurada!

Indiferente e rústica tesoura
Corta-lhe hoje a famosa trança loira,
Que era o encanto do rei. Sóror humilde,

Vai se engolfar em místicas tristezas
A mais galante e bela das princesas,
A muito amada e pálida Matilde!

IV
O alvo espectro de um lírio se levante
Ao mago luar de minha fantasia,
Que não me obumbra, d’alma doentia,
O dorido palor do seu semblante...

Palidez de camélia, no ermo instante
De alçar o cálix para a noite fria;
Palor banhado de melancolia
De um crepúsculo doce e agonizante,

Que é a luz desses olhos, repassados
Da violeta quaresmal do luto,
Do miserere amargo dos pesares;

Olhos piedosos para o céu voltados
E cujo pranto é tristemente enxuto
Na toalha de linho dos altares!



TURF

Domingo. O verde embaixo, o azul em cima.
E o cristal da manhã vibrando ao meio;
O sol parece um guizo de ouro, cheio
Da alegria sonora de uma rima.

Belo dia de luz para um torneio
De florete, que os músculos anima,
E o sangue, então, na intrepidez da esgrima
A espadanar-te em púrpuras no seio;

Ou para um tour de champ de meia légua
Num fáeton de asas, atrelado à égua,
Lustroso ao sol, como o verniz de um cromo;

Vendo-te a fina flor, da arquibancada,
Qual uma enorme e rútila granada
Flamejando na raia do hipódromo!

 

NA ESCÓCIA

O espiralado mármore transposto,
Perscruto, à entrada: singular tristeza
Vara o palácio heráldico da inglesa,
O requinte do luxo e do bom gosto.

Da cadeira de Córdoba no encosto
Fulge a cabeça de ouro da duquesa,
Ao fosco luar da serpentina acesa...
— Como, senhora, lágrimas no rosto?

E alçando, e abrindo a esguia mão de opala,
Para saudar-me, um suave cheiro voa,
Como se um lírio abrisse em plena sala!

Morrera à neve (ela o episódio traça
Com um “trêmulo” de voz que me magoa)
O dourado faisão de Sua Graça!

 

NAMORADOS

Nessas manhãs alegres, perfumadas,
De éter sadio e claro firmamento,
Acariciando o mesmo pensamento
Percorremos o parque, de mãos dadas.

Aves trinando em cima das ramadas,
Alvos patos e um cisne a nado lento
Sobre as águas do lago, num momento
Pela brasa do sol ensanguentadas...

Brilha o sereno trêmulo nas pontas
Do vistoso gramal, como se fosse
Solto rosário de opalinas contas...

Enquanto uns casos rústicos de aldeia
Eu vou narrando-lhe, em linguagem doce,
Escuto a queixa de seus pés na areia!

 

AO CHÁ

Conversávamos uma noite destas
Ao chá, e me falava a baronesa,
Meio inclinada ao ângulo da mesa,
De certas coisas suavemente honestas.

Tinha duas paixões: a Itália e as festas,
As ruidosas partidas da nobreza,
Em que afogava a lírica tristeza
Das fantasias e ambições funestas...

Isto dizia a titular senhora
A chávena mexendo... E o pranto agora
De seus olhos azuis o brilho empana...

Mas resistiu aos íntimos embates,
E foi levando aos lábios escarlates
A reluzente e clara porcelana.

 

MANHÃ DE SPORT

— Pronto, milady. E, improvisado pajem,
Mão sobre o freio refulgente de aço
E a outra espalma, em meia curva o braço,
Eu lhe rendia guapa vassalagem.

Senti-lhe o pé, numa pressão de aragem...
Puxando acima as dobras do regaço,
— Upa! E entre aromas aflorou no espaço
A sua esguia e cavaleira imagem.

De um salto ei-la no dorso da normanda,
Cujo pelo de seda reluzia
Sob o arabesco de ouro da varanda;

Dei-lhe as rédeas colhidas e o chicote;
Lépido, galgo a minha montaria,
E abrimos juntos num garboso trote!

 

DE VOLTA

Tudo me fala aqui, tudo o que vejo!
O sol do outono, o riso das crianças
Invadem-me o palácio das lembranças...
E o pomar, o jardim, a horta, o brejo

Deste pequeno e manso lugarejo,
Onde ficaram minhas esperanças
Amarradas ao fio de umas tranças,
Que ainda vê-las, sôfrego, desejo,

Reproduzem-me a tela colorida
Dos episódios bons de minha vida
Passada alegre nesta velha granja...

Entremos: ainda a mesma é a mobília...
Acho, porém, de mais entre a família
Um moço estranho e flores de laranja!

 

MAMELUCA

A que aí anda, esguia mameluca,
De olhos de amêndoa e tranças azeviche,
Tem uns ares fidalgos da Tijuca
E petulantes trajos a Niniche.

É justo, é natural que ela capriche
Em mostrar o cabelo, a espádua, a nuca
E essas pálpebras roxas de dervixe,
Como um goivo aromal que se machuca.

Abre às soalheiras, em sanguíneo estofo,
A escandalosa e original papoula
Do parasol clownesco, alacre e fofo;

E o lírio do alto, quando espia o glabro
Rosto oval da cabocla, abre a caçoula,
E a via-láctea acende em candelabro!

 

OUTONO

O outono! Abril fugindo e maio perto,
Engrinaldado de heliantos de ouro;
Esmeraldas no chão, feral tesouro
Em luxúria de pâmpanos aberto!

De asas ruflas e quentes e olho esperto
Andam aves nas frondes, em namoro;
Longe, sob um sol claro e agreste coro,
De flor e frutos meu pomar coberto!...

Condessa! é tempo de habitar a mata:
Se o dia esplende, a noite, em represália,
Abre nos ares o estendal de prata;

Toma as luvas e a umbrela; eia, formosa!
O chapéu largo de palhão da Itália,
E o vestido de chita cor de rosa...

 

DE VIAGEM

Íamos ambos, joviais e amigos,
Pelo caminho fora conversando
Coisas alegres; íamos lembrando
Uns episódios íntimos e antigos.

Longe de nós os lôbregos perigos
Que o imprevisto não diz como nem quando,
Pois surgia ao levante um clarão brando:
Pássaros, bosques e rurais abrigos

Pouco a pouco saíam do letargo
Pelas margens da estrada; a trote largo
Iam batendo os árdegos cavalos...

Incendiava-se a manhã tranquila!
Mas quando entramos, lépidos, na vila
Ainda ouvia-se o cantar dos galos...

 

REAL SENHORA

Mirante alegre e rústico do paço,
Rasgado ao poente de lilás; deserta
Varanda em flor, garridamente aberta
Para o mármore branco de um terraço.

De um bizarro mancebo pelo braço
Surge, toda de branco e a hora certa,
Formosa dama, que, a tremer, concerta
Os crisântemos de ouro do regaço...

Dizem ser ele o pajem da rainha;
E a dama, calam... Mas é crença minha
Ser ela própria em seus reais folguedos;

Tanto que o servo empoado e preferido
Traz, com graça e donaire, híspido, erguido,
De asas abertas, o falcão nos dedos...

OLHOS DE ESFINGE

Todo o travo da culpa e toda a mágoa,
Que te alucina e desalenta o peito,
Numa espiral de sonhos vão direito
Aos teus olhos felinos, cheios d’água.

Estes cismam à sombra de um parágua
Só de ametistas e saudades feito;
Lírios desertos que só têm por leito
Asperezas nostálgicas de frágua!

Dois violinos letais de corda frouxa
Plangendo nessas misteriosas casas,
Ou, no smorzando de uma tarde roxa,

De um marnel de ninfeias e águas pretas,
Abrindo lentas, solitárias asas,
Duas sinistras e amplas borboletas!...

 

DE FÁETON

Chapéu ramalhetado em trevo e jalde,
Vestido simples e madrigalesco,
Goza do ar fino, antes que a luz escalde,
Loira fidalga de perfil tudesco.

Constante aguardo que, cindindo o fresco,
Da galhardia a flâmula desfralde
Seu fáeton leve, claro e principesco,
Pelas ruas floridas do arrabalde.

Curiosa gente a espera da passagem
(Batendo o asfalto as patas do normando)
Da encantadora e rápida carruagem,

Concha de vime que, entre beijos roda
Numa aleluia aurorial, levando
Essa gloriosa pérola da Moda!

 

PRIMAVERIL

Vieram contigo, flor de primavera,
Na brilhante explosão de áureas falenas
E andorinhas gazis, abrindo as penas,
O sonho azul, a fúlgida quimera...

Entre os verdes lauréis de ramos de hera,
Mirtos floridos e úmidas verbenas,
Rindo, talvez, às doces cantilenas,
Abrem-se os ninhos, meigamente, a espera

Da asa primeira e do primeiro beijo...
E este aroma de rosas, este harpejo,
O sonho azul, a fúlgida quimera,

Ferindo a luz do amor, a luz querida,
Que est'alma aquece e me ilumina a vida,
Vieram contigo, flor de primavera!

 

ALELUIA, ALELUIA!

Freme em harpas a luz, o éter floresce,
Aleluias no espaço, ouro e o perfume,
Que eu sinto às vezes, morto de ciúme,
Quando a estrela dos Alpes aparece.

Auras do luxo agora chegam, e esse
Fluido de graça que ela em si resume;
O alvo poema da carne vem a lume.
Em prefácios de glória e de quermesse.

Qualquer coisa de estranho no ar da rua
Em que rútila e módula flutua
A asa do sonho, criadora e aberta...

Fanfarras da arte, águias do estilo, em bando,
E o clarim da beleza, alto, vibrando...
— Poetas, em fila! Madrigais, alerta!



MAGNÍFICA

Láctea, da lactescência das opalas,
Alta, radiosa, senhoril e guapa,
Das linhas firmes do seu vulto escapa
O aroma aristocrático das salas.

Flautas, violinos, harpas de ouro, em alas
Labaredas do olhar, batei-lhe em chapa!
— Vênus, que surge, roto o céu da capa,
Num delírio de sons, luzes e galas!

Simples coisa é mister, simples e pouca,
Para trazer a estrela enamorada
De homens e deuses a cabeça louca:

Quinze jardas de seda bem talhada,
Uma rosa ao decote, árias na boca,
E ela arrebata o sol de uma embaixada!

 

ITALIANO

A saída do clube, o conde, um dia,
No tom cavo das mágoas e revezes,
Concluindo a palestra, me dizia:
Nunca, amigo, por ela te embelezes;

Hão de amargar-te eternamente as fezes
Da taça loira, apetitosa e fria,
Que te ofereça, e a tentação desprezes
Do seu fino licor de Malvasia;

Filtros danados, tóxicos perversos
Andam, traindo o império da vontade
De parceria nesse vinho imersos...

Tempos depois eu soube, não sei onde,
Que essa flor da luxúria e da vaidade
Tinha, uma noite, envenenado o conde.

 

PARA-SOL

Um bijou de marfim, trama escocesa
E riquíssimas rendas trabalhadas
Pelas mãos brancas, finas, delicadas,
De uma reclusa e paciente inglesa.

Pálio branco da graça e da beleza,
O para-sol de nesgas esticadas;
— Bela tulipa das manhãs douradas,
Trá-lo sempre umbrelado, a baronesa.

No pedaço de dente de elefante
Cinzeladuras de chinês galante,
Coisas bizarras que ele, opiado, sonha:

N'água — das ninfas o alarmado feixe,
E uma, a mais bela, nua, como um peixe,
Trespassada no bico da cegonha!

 

LÁGRIMAS

I
Rosa na trança escura, rosa ainda
Nas faces, de uma lirial pureza,
Ia, estrelas na boca, enchendo a mesa
Com a sua essência pitoresca e linda.

Olhos — taças de vinho, a minha vinda
Brindando! A iluminar toda a largueza
Da varanda, hoje imersa na tristeza...
Talvez não! Talvez de uma graça infinda

Seja a su'alma, em sonho se desdobre,
Damasco enchendo, a rir, que a mesa cobre,
Com a flor do estilo, em delicados molhos...

Cenas, talvez idílios na janela,
E o beijo a esvoaçar por cima dela...
Vão-me caindo as lágrimas dos olhos!

II
A embaciar-me os dias e as estrelas
Cedo volveste, lágrima aflitiva;
Que ao ter-te agora às pálpebras cativa,
Claras e firmes não mais pude vê-las.

No mar cavo e pungente das procelas,
Que de ti, gota trêmula, deriva,
— Vulto sombrio de asa fugitiva,
O sonho atufa as desfraldadas velas...

Ais de agonia, gritos de desgraça,
Um coro torvo e tormentoso passa
Entre o abismo da terra e os céus nublados;

Tudo reveste uma expressão de mágoa
Através deste fútil pingo d’água
Que não me deixa os olhos sossegados!

 

DUELO EXCÊNTRICO

Perto, o castelo. Alva manhã de junho.
Na arena, sob entrelaçadas ramas,
Acham-se as duas ciumentas damas,
Aprumadas e loiras, de arma em punho.

Tem toda a cena da lascívia o cunho:
Espartilhos no chão, bordadas tramas
De camisa escorrendo-lhes das mamas,
De bicos róseos e à feição do abrunho.

Chocam-se os ferros. Um tinido de aço,
Um tremor de paixão em cada braço...
De um seio de hóstia púrpuro filete

Esguicha! Bamboleia uma cabeça...
E, recuando, a intrépida condessa
Leva um rubi na ponta do florete!

 

SHAKE HAND

Fluindo o aroma sutil de violeta,
É de minha bizarra fidalguia
Que esta paixão, dourada de alegria,
Nem te dê mágoas nem te comprometa,

Era quebrar a linha da etiqueta,
Em plena rua, pleno meio-dia,
Beijar-te a mão, que, açucenal, gemia
Encarcerada numa luva preta.

Desnecessário fora enleio tanto;
E sentirias, trêmula de espanto,
A intensa vida desta história louca,

Se à luz áurea do sol, que do alto vinha,
Quando pousaste a tua mão na minha
Os meus dedos febris tivessem boca!

 

SOBERANA

À frente — dois clarins alvissareiros,
O aroma e a luz, e, logo, o arauto e o pajem
Anunciam-lhe a glória da passagem
Num triunfal tropel de cavaleiros.

Guarda de honra de mínimos guerreiros,
Flecha e carcás luzindo, asa e roupagem
Flabelando nos flancos da equipagem,
Ladeado o palafrém de áureos arqueiros;

Dragões de ouro, leões de juba oureada
E cauda erguida, ao sol embandeirada,
Entre o esplendor das lanças e das setas;

E atrás, o ovante séquito fechando.
A lira ao braço, um raio à mão, salmeando,
A engrinaldada legião de poetas.


ROUXINOLANDO

Ainda um pé no degrau, outro ao tapete,
No planalto da larga escadaria,
Mãos na minha, eu já a sua voz ouvia
Retinindo por todo o palacete,

Como os cristais chocados de um banquete.
O que se dera, tudo o que sabia,
O rosário de pérolas do dia
Ali desfiava o trêmulo diabrete.

Pé no degrau, eu contemplava o encanto
(Ao intenso clarão do lustre aceso)
Do seu lábio gazil sonoro e parlo...

E mais trinava aquela voz, enquanto
Eu sonhava que tinha aos dedos preso
Um fino rouxinol de Monte Cario!

 

AMOR DE PERDIÇÃO

Não me conte que choras, não me diga
A tua boca trêmula e rosada,
Que te deixou perdida e desgraçada
A funesta paixão, que a ti me liga.

Vamos: vê que te estendo mão amiga
Nos dolorosos cardos da jornada;
Que, se eu te vejo em lágrimas banhada,
Também de angústias a chorar me obriga

O ermo fio de pérolas que desce,
Numa tremura e contrição de prece,
Por tua face triste e esmaecida;

Longe esse pranto de ideais pesares,
Para, convulsa e pálida, chorares
Quando em teus braços me fugir a vida!

 

DEZEMBRO

As andorinhas imigraram, vindo
Em giro curvo, lépido e sereno,
Do alto da serra para o campo ameno,
Às primeiras fanfarras do mês lindo.

Sob a copa das árvores, abrindo
A flor e o ninho ao colibri pequeno,
Entre olores balsâmicos de feno
Passa o farrancho de crianças, rindo

Na ociosidade trepida das férias;
E apontam já, no eflúvio dos luares,
Véus flutuantes e toilettes sérias

De pessoas da corte, e cavalgada
Da fidalguia banza, que anda aos ares
E vem sulcando os areais da estrada...

 

EXCELSIOR

De todas, esta é a mais formosa dama
E o mais fidalgo e níveo dos decotes,
Desabrochando em pérolas... Miosótis
Espumilhados em triunfal derrama...

A graça irrompe; o olhar de estrela inflama
Esculturais e femininos dotes;
Soberano esplendor dos camarotes
Nas primeiras da ópera e do drama!

Alma do prado; em seda fiava e renda
Jalde suntuosa, trêmula, estupenda,
Na corbelha do fáeton clara e aberta;

Sol das varandas, palpitante opala
Das embaixadas, em soirées de gala,
De um manto de ouro e madrigais coberta!

 

MAIO

Maio, que é todo azul e é todo claro,
Contemplativo, virginal, tranquilo;
Céus, que me lembram, quanto mais reparo,
O misticismo suave de Murilo;

Que é o encanto da vida, tudo aquilo
Sereno e manso que deporta o enfaro;
Papeios de ave procurando asilo,
Terra enflorada, ninhos em preparo;

Mês de Maria rebentando em flores,
Plumas e borboletas multicores,
Noites, manhãs e tardes vaporosas,

Sempre infiltradas da sonoridade
Do ermo e brando violino da saudade,
Maio te alastre o camarim de rosas!

 

AMORPHOPHALLUS

Nenúfar venenoso, ermo e visguento,
Aberto em concha ao turbilhão iriado
Dos insetos, que voam no ar parado
De um tenebroso lago pestilento;

Flor dominando um pântano folhento
De algas, musgos e lodo fermentado;
Flor, que tem na impureza escancarado
O seio branco para o firmamento;

Cheia do pólen rescendente e ativo.
Tão à falena e ao colibri nocivo,
E que é das vespas causa de outros males.

Pois que ao lótus amargo te assemelhas,
Eu terei de morrer, como as abelhas,
Intoxicado dentro de teu cálix.

 

SIR

Escandinavo e já senhor, tão breve,
De zagais e zagalas de um condado:
Olhos de lírio, um tipo loiro e ousado;
Sobre o lábio sanguíneo um buço leve.

Ao seu solar nenhum pastor se atreve
Subir, para atestar-lhe o celebrado
Culto da arte, do luxo e do Passado...
Dorme o rudo castelo sob a neve!

Com brilho e graça e pródigos recursos,
Em caçadas boreais de renas e ursos,
Faz honra à extirpe o príncipe Rodolfo:

Para levá-lo não se sabe aonde,
Tem, de flâmula solta e, armas de conde,
Um iate boiando sobre, o golfo.

 

ASAS ÚMIDAS

Melhor, muito melhor, anjo, te fora
Não roçares, brincando, as leves plumas
Das tuas asas, brancas como espumas,
Pela minha cabeça pecadora...

Não há em mim a seda protetora
Das rosas frescas, onde os pés perfumas,
Nem a macia flacidez das brumas
Em que poreja uma alvorada loira.

Arfa teu seio na delícia extrema,
Como o peito selvagem de Iracema
Naquele sonho olímpico da rede;

Vieste rompendo castas madrugadas,
Que ainda tens as penas salpicadas
De cristalino orvalho, e eu tenho sede!...

 

BACANTE

Não pode a fronte, que uma vide enrama,
Aureolar-se de mádida tristeza;
Que a alegria dos pâmpanos, marquesa,
Por tua boca e por teus olhos clama.

Feição, que é o linho, numa alcova acesa,
Com duas taças — para o amor e a fama,
Donde um mosto de treva se derrama,
E um cacho rubro dando graça à mesa...

Das tuas sedas e dos teus cabelos
Sobe o vapor dos vinhos, em novelos,
Como escaldando em ânfora faceta;

Olhos embebedantes e risonhos,
Que, até nadando em lágrimas, suponho-os
Dois orvalhados bagos de uva preta.

 

DIA DE SEUS ANOS

Resplende o sol em pleno céu bordado
De flocos níveos, leves, transparentes,
E asas, que voam da montanha rentes,
De alvas pombas em bando alvoroçado.

Dia alegre de um mês abençoado,
Mês da cigarra e flamboyants sanguentes;
Cantos de ave e perfumes diferentes,
Lírio aqui, ninho ali dependurado.

Criaturas risonhas, muita calma
Dentro da casa rústica e florida
Em que me esperas, noiva de minh'alma;

Mais uma bênção sobre ti caída,
Um ano, um riso, um beijo, uma outra palma,
Mais uma pomba no rosal da vida!

 

A CONDESSA

I
Ei-la defronte à lâmina espelhenta
De áureas molduras florejadas e onde
Toda a riqueza do salão do conde
Pontilhada de luzes se apresenta.

A tanto luxo ousado corresponde
Essa que surge, ao próprio corpo atenta,
Bela e soberba! E, como um astro, aumenta
Toda a riqueza do salão do conde!

Dá ao cabelo e ao talhe do corpete
O último toque; um último alfinete
Franze a cauda real da saia turca;

Põe quase aos ombros um buquê vermelho;
E, pronta já, de costas para o espelho,
Vai ensaiando um passo de mazurca...

II
Frisando o luxo do palácio em peso,
A tilintante e esplendorosa fila
De altos lustres artísticos fuzila
Pelas facetas do cristal aceso.

Desce um fluido de olímpico desprezo
De cada olhar, de cada irial pupila,
Que, cintilando férvida, aniquila
Mais de um fidalgo almiscarado e teso.

Há, porém, certo refranger de luzes,
Promíscuo brilho de olhos e grã-cruzes,
De quentes raios fulgurante chuva,

Quando, em auras de aroma conhecido,
Alva e radiosa, ao braço do marido
Entra a condessa, abotoando a luva!

III
Morria o som da última habanera
Saudoso e lento no metal da orquestra,
Quando esse arrojo da beleza, mestra
Dos floreios do baile, o carro espera.

Daquela boca salta a primavera
Bafejando-lhe o termo da palestra...
E já, sorrindo e meneando a dextra,
A mesura simbólica fizera.

Acompanhando-a como que suspira
A ronda alerta dos olhares... Sente
Tão fria a noite! E o donde, sem detê-la,

Naqueles ombros pálidos atira
A seda azul da capa rescendente,
— Um pedaço de céu sobre uma estrela!

IV
Transpondo a alcova conjugal, ornada
Da radiosa tulipa de uma placa,
Sobre o mármore verde colocada
De um lindo móvel de pão-rosa e laca,

Em frente à esposa lânguida, atirada
Numa larga poltrona, o conde estaca
— Braços cruzando, a fronte anuviada,
Ereto e firme dentro da casaca...

Censurava-lhe a corte dos rapazes:
Certo que todo o baile notaria
Tão jovial, mas frívola cabeça...

E, alarmando-se um cheiro de lilases,
Par sereno de lágrimas caia
No amargurado rosto da condessa!

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