2/22/2020

Aluísio Azevedo e a Caricatura do tempo do Império (Resenha)


ALUÍSIO AZEVEDO E A CARICATURA DO TEMPO DO IMPÉRIO

A caricatura viveu uma idade de ouro no jornalismo turbulento do Império.

A liberdade então atribuída à imprensa criou o terreno propício ao desenvolvimento dessa arte arte diabólica em cujos movimentos Bérgson encontrou levantado o demônio que o anjo derrubara.

A liberdade da imprensa viera no primeiro império e aumentara no segundo, graças ao regime parlamentar e ao espírito liberal do monarca. Pedro II concedeu atuação ampla e livre ao jornalismo durante todo o seu longo governo. E o jornal, abusando dessa regalia, empreendeu as campanhas que solaparam os sustentáculos da monarquia.

Os panfletários foram rudes e violentos. Sobre a cabeça do Imperador choveram os doestos mais torpes. Basta que se recorde um exemplo. No ardor da campanha abolicionista, José do Patrocínio chegou a escrever períodos como este, ferindo em cheio o Bragança no poder: "A família Bragança se divide em dois ramos: os broncos e os idiotas”.

Na Câmara, os senadores em oposição pareciam porfiar entre si o pronunciamento da apóstrofe mais atrevida contra as instituições vigentes. Nas praças públicas, os oradores populares lançavam objurgatórias audazes no poder e às leis, em tiradas sonoras como bombos de feira. Nas esquinas de ruas ou nos cafés combatia-se a monarquia a golpes de sarcasmos. E todas essas vozes rebeladas se reuniam, numa formidável massa coral, e eram difundidas atroadoramente através das "cem buzinas da imprensa" — na expressão de Oliveira Viana.

Em tal ambiente a caricatura aflorou como um elemento natural. Chegou para completar a obra destruidora. E agiu desordenadamente, num furor pânico, zombando e troçando, rindo e maldizendo, sem restrições ou censuras oficiais, zurzindo os políticos e os grandes homens, ridicularizando ideias, costumes e tradições.

Pelos elementos de que dispõe, a ação da caricatura na luta contra o Império deve ter sido mais intensa que as dos escritores de combate entrincheirados na coluna do jornal.

Na verdade, enquanto o artigo de fundo ou a crônica dirigia-se a uma massa semi-instruída — a caricatura, numa ação mais ampla, falava ao mesmo tempo à elite à patuleia, ao ignorante e ao letrado. Nada escapou à sua desabalada perseguição de escândalos e bandalheiras. Atroou como um halali de guerra. E isso porque a força da caricatura como arma de combate deriva de três fatores maravilhosamente coligados: intenso poder de sátira, possibilidade de oferecer uma percepção imediata e instantânea dos objetivos visados, e universalidade de linguagem. Esses três elementos, reunidos, a transformam num perigosíssimo instrumento de luta. E aí está porque essa forma alegre do desenho teve uma atuação da mais alta importância no solapamento da monarquia.

A sua história entre nós tem raízes distantes.

Não está ainda esclarecida a data em que surgiu no Brasil o primeiro periódico de caricaturas. As opiniões são variáveis, e a falta de documentos dá largas à imaginação dos fazedores de história.

Há quem aponte, para o caso, o ano de 1855, quando apareceu o Brasil Ilustrado. Outros historiadores recuam essa data para 1832, ano em que foram publicados, no Rio de Janeiro, O Martelo e a Cegarrega. Max Fleiuss, numa síntese da história da Imprensa Brasileira, publicada por ocasião do centenário da Independência, localiza, entretanto em 1834, com a Mutuca Picante, o aparecimento, no Rio de Janeiro, do nosso primeiro jornal ilustrado de caricaturas.

A data precisa nos parece, no caso, uma questão ociosa. Porque até certa época, os periódicos aparecidos não passaram, em suma, de pasquins brejeiros, sem arte apreciável e de ação circunscrita a pequenos fatos jocosos de vida de bairro. Esses jornalecos se chamavam: O Capadócio (1835), O Carapuceiro da Corte (1840), a Lanterna Mágica (1844)...

É em 1845 que sai, pela primeira vez, no Rio, O Charivari, revelando já alguma preocupação de sátira fina e feito com certa arte. O título do novo periódico revela a existência de um modelo: fora surrupiado ao famoso hebdomadário com que em Paris, a partir de 1832, Philipon e Daumier, dois grandes caricaturistas, feriam em cheio costumes e medalhões políticos.

Mas é de 1860 o esplendor da caricatura no Império. Nesse ano Henrique Fleiuss, há pouco chegado ao Rio de Janeiro, publica a Semana Ilustrada. A ideia cai em chão fecundo. Cria-se uma febre de jornais de caricaturas no Brasil — e esse gênero faceto do desenho viveria aqui, até pouco mais de 1880, a sua idade de ouro.

Grandes desenhistas estrangeiros, como Joseph Mil, Augusto Off, Ângelo Agostini, Fleiuss, Borgomainério e Rafael Bordalo Pinheiro, transportados para a capital brasileira, povoam, por esse tempo, de malícia, gênio e jovialidade, as páginas de nossos periódicos ilustrados.

À sombra ilustre desses mestres, numerosos brasileiros se fazem também profissionais da caricatura, trazendo contribuições mordentes e pessoais para a grande batalha da zombaria inteligente. Grandes escritores se reúnem aos grandes caricaturistas. Na revista de Henrique Fleiuss, Machado de Assis, então no início da glória literária, escreve, de quando em quando, a crônica alusiva aos feitos do Dr. Semana — curiosíssimo personagem criado pelo lápis ágil do diretor do semanário.

Nessa fase, a caricatura não é apenas política, mas também de costumes. Todos os espetáculos da corte são surpreendidos pela malícia e a precisão de traços dos caricaturistas. Figurões da Câmara e membros de Gabinete, comparsas e personagens da comédia parlamentar do Império, são apanhados ao vivo pela irreverência triunfante. E ainda hoje os medalhões sisudos que passaram à história, podem ser evocados nos seus erros humanos, através das atitudes em que os flagrantearam os caricaturistas. Velhas usanças e costumes, as procissões esquecidas e o carnaval fora da moda, também se apresentam para o historiador hodierno, em todos os seus movimentos característicos, graças às charges daqueles panfletários do desenho e professores de sátira no Brasil imperial.

Pouca duração teve, no entanto, a revista de Henrique Fleiuss. Mas no mesmo ano de seu desaparecimento, Fleiuss voltou à carga, com iniciativa mais brilhante: iniciou a publicação de a Ilustração Brasileira, que durou até 1878.

Ângelo Agostini e Rafael Bordalo Pinheiro, com iniciativas próprias, acompanharam de perto os esplendores do exemplo de Henrique Fleiuss.

Chegado ao Brasil em 1859, Agostini publica em São Paulo, pelas alturas de 1864 e 1866, O Diabo Coxo e Cabrião, periódicos de caricatura. Transferindo residência para o Rio, faz aparecer na Corte a Revista Fluminense, onde terá colaboradores como Borgomainério e Rafael Bordalo Pinheiro. Agostini dirigiu ainda o Mosquito e a Revista Ilustrada. E a várias outras publicações emprestou ele, nesse período, a graça e a beleza de seus desenhos, em páginas perduráveis pela malícia e perfeição de traços.

Foi em 1875 que Bordalo Pinheiro chegou ao Rio de Janeiro. Rafael viera de Portugal com uma tumultuosa tradição de combates gloriosos. No livro e no jornal impusera-se como caricaturista implacável, zurzindo a ridiculez e as tafularias dos jarrões políticos, mundanos e literários. E com Rafael Bordalo Pinheiro começa a grande caricatura em Portugal.

Inquieto, turbulento, vivendo aventurosamente o seu gênio irônico e rebelado, Rafael Bordalo Pinheiro, transplantado para o Rio, entra em breve para as rodas literárias e faz publicar, aqui, um ferino jornal de caricaturas — O Besouro. Houve sensação com o novo periódico. Bordalo Pinheiro, além da habilidade para fixar os medalhões, tinha talento máximo para sintetizar em bonecos desengonçados toda uma classe ridícula de burgueses caricatos. Pouco antes, Rafael batalhara galhardamente nas páginas de O Mosquito. Travara combates renhidíssimos com os caricaturistas de periódicos inimigos. E aqui, como em Portugal, fez com que dentro em pouco se transformasse em legião assanhada o rol dos seus desafetos iracundos. Até da Câmara houve vozes que se alteraram para revidar as sátiras do caricaturista português. E Bordalo Pinheiro, com o desfile habitual dos seus bonecos, nunca perdeu um combate.

De todos os caricaturistas estrangeiros que atuaram nos jornais do Império, foi ele o que mais se destacou como caricaturista político. Enquanto os outros se voltavam de preferência para a caricatura de costumes, Bordalo Pinheiro, com seus desenhos, satirizava o governo e as câmaras, o exército e a marinha, os ministros e o clero. Por isso mesmo tornou-se, em pouco tempo, irritante a atitude do caricaturista português. E logo muitas vozes se levantaram contra ele, em várias partes do país.

Houve mesmo um senador que, em plena Câmara, levantou-se para combatê-lo. O caso se passou em 1876. Por esse tempo Rafael, com suas roupas e seus gastos excessivos, tinha criado em torno de sua pessoa uma aureola de janotismo e prodigalidade. E estava em pleno auge da campanha política: desenhava a Monarquia em forma de um velho comboio ferroviário precipitando-se num abismo, ou o Sr. D. Pedro em atitudes comprometedoras. Foi então que o senador irritado declarou, em discurso, que "o Brasil acolhia de bom grado os portugueses quando eles vinham de jaleca de briche de trinta botões oferecer-lhe o seu braço e o seu trabalho, mas que não precisavam janotas que ainda por cima lhe pagavam a hospitalidade com a agressão e com o escândalo.”

Rafael estava diretamente visado na parlenga senatorial: era português, fora bem acolhido, e tinha fama de janota pródigo e irreverente.

O discurso estourou como um tumulto. E o caricaturista deliberou oferecer, de maneira imprevista, a réplica original da questão.

A rua do Ouvidor, nesse tempo, tinha por assim dizer, a exclusividade do mundanismo imperial. Os grandes vultos das letras e da política, em certa hora do dia, perfilavam-se nas suas calçadas, assistindo ao desfile das belas mulheres elegantes que exibiam, naquela artéria, as toilettes mais finas e bem trabalhadas. Uma tarde, logo depois do discurso escandaloso, toda essa multidão subitamente deparou um espetáculo inesperado: — e foi o aparecimento de Rafael Bordalo Pinheiro, enfiado grotescamente num casaco de mescla, sério, grave, sisudo e abotoado espetacularmente por trinta enormes botões dourados.

Os periódicos ilustrados imediatamente se movimentaram, fixando as diferentes fases do combate.

Esse episódio pitoresco iria contribuir para a revelação de Aluísio Azevedo como caricaturista e arrastaria o jovem desenhista maranhense para uma das fases de renhida peleja na questão.

Foi assim:

Em 1876, os principais jornais de caricatura da corte eram: O Mequetrefe, O Mosquito e O Fígaro. Essas folhas viviam frequentemente em luta. E os combates eram feitos através do desenho: os bonecos e as charges eram os elementos da batalha.

Desde a sua fundação, O Fígaro tivera como ilustradores dois consagrados mestres da caricatura: Leopoldino Faria e Luigi Borgomainério. Em março de 1876, vítima da febre amarela, que era então a principal inimiga dos turistas e dos imigrantes, falece o desenhista italiano. E o Fígaro passa a contar somente com a colaboração de Leopoldo Faria.

Por esse tempo surge o incidente com Rafael Bordalo Pinheiro. As revistas comentam jocosamente o caso. O Mosquito e O Mequetrefe se manifestam. E em seu número de 13 de maio, O Fígaro dedica as duas páginas centrais a uma charge engraçadíssima intitulada: Os trinta botões. Está assinada por um nome até então completamente desconhecido: Aluísio. Além dessa charge, há, na página de rosto desse número, uma caricatura de Artur Azevedo, assinada pelo novo desenhista e com esta legenda: "O pai da Filha de Maria Angu".

Quem era esse Aluísio? O Fígaro, no mesmo número, responde à curiosidade de seus leitores. A última página é uma autocaricatura, com estas palavras de explicação por baixo do desenho: "Meus senhores! Apresento-lhes um novo caricaturista, o sr. Aluísio Azevedo, irmão do pai da Filha de Maria Angu, e um rapaz hábil que se propõe a fazer caricaturas se o público, juiz severo e imparcial, não mandar o contrário."

O público não mandou o contrário. E durante dois anos Aluísio ilustraria com as suas charges e os seus desenhos alguns dos mais famosos jornais de caricatura da Corte. A sua permanência em O Fígaro é rápida — e no ano seguinte transfere-se para a redação de O Mequetrefe. A 19 de março aparecem as suas primeiras ilustrações neste jornal. Depois trabalharia para a Semana Ilustrada, o Zig-Zag, e a Comédia Popular — todos esses jornais ilustrados a serviço da irreverência e da zombaria.

A fase mais brilhante de Aluísio, nessa passagem pela imprensa da Corte, foi certamente a de O Mequetrefe — e entre as ilustrações desse tempo convém destacar, pelo cuidado no acabamento e pela felicidade do motivo, uma visão do século XX, charge muito viva onde está previsto, com certo espírito de combate à Igreja, a glória de Augusto Comte e o esplendor do positivismo.

JOSUÉ MONTELO
Revista Brasileira, setembro de 1942.

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