2/24/2020

Camilo Castelo Branco: A Evolução Literária (Ensaio)



CAMILO CASTELO BRANCO: A EVOLUÇÃO LITERÁRIA
PRIMEIRA FASE: (1845-1851)
Quando, em 1851, Camilo publicou o seu primeiro romance, O Anátema, não era um neófito literário, seria — e cremos que o fosse — um obscuro. Já desde 1845 pequenos ensaios satíricos e dramáticos tinham manifestado a sua inclinação literária. Até que se estreasse no romance, publicara Pundonores desagravados (1845), O Juízo Final (1845), Agostinho de Ceuta (drama histórico, 1847), Maria, não me mates que sou tua mãe! (narrativa de um crime sensacional desse tempo), A Marrara (poemeto satírico, 1848), o Marquês de Torres Novas (drama histórico, 1849), O Caleche (panfleto de alusão política, 1849), O Clero e o Sr. Alexandre Herculano (1850), interferência na polêmica de Ourique, e Inspirações (poesias líricas, 1851). Vê-se assim que o futuro ridiculizador, o futuro polemista, o poeta e o romancista, o polígrafo, embrionariamente, se continham já no escritor tão diversamente afirmado. Pela hesitação evidente entre os gêneros e pela incerteza que caracteriza estas produções, os anos que vão de 1845 a 1851 podem considerar-se como formando a primeira fase da sua evolução literária. Dava a sua contribuição para o drama histórico e afirmava-se temporariamente satírico. Mas de todas estas produções menores uma destaca com particular significação, a narrativa dum matricídio, Maria, não me mates que soa tua mão!
Uma rapariga, que recebia em sua casa o namorado, foi por ele seduzida. Tendo a mãe, ameaçado o sedutor de se queixar dele à polícia, combinaram ambos o assassínio da velha. Encarregou-se do nefando crime a filha, que a matou à facada. Vendo crescer para ela a sua própria filha, a velha soltara a exclamação que deu o título à narrativa. Camilo contou o crime, simplesmente contou e com esse folheto alcançou o seu primeiro êxito literário; ganhou os primeiros dinheiros.
Que significa este minúsculo folheto na sua obra? Significa que então praticou Camilo o que seria processo de toda a sua vida literária. Viu a vida contemporânea e escolheu delia o assunto, que estava de acordo com as suas inclinações pessoais e com o gosto da época. Poucas vezes será tão verdadeira a definição de arte, proposta por Zola: l'art est un coin de la nature vu a travers un temperament. Não se retirava ele para o passado para fazer romance histórico; olhava em redor de si e escolhia. A vida tumultuosa da época mais amoruda da alma humana e do meio mais amorudo, que ainda teve Portugal, o meio portuense durante o romantismo, proporcionar-lhe-ia basta matéria. Toda a vida assim fez: escolher os grandes amores, as grandes desgraças, as grandes perversidades e, complacentemente, constituir-se em voluntário cronista dos grandes amantes, dos grandes infelizes, dos grandes casos. Também os realistas observariam, mas além de observarem desinteressadamente, sem preferência, sem escolha, observavam também integralmente, queriam a vida toda, e não só o amor, parcela sua, posto que grande e dominante, por vezes.
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SEGUNDA FASE: 1851-1879
Foi o Anátema o seu primeiro romance, obra hoje ilegível para os que não têm profissão de críticos, duma composição compacta, dum estilo incaracterístico — se estilo se pôde chamar à linguagem só negativamente qualificada de alguns atributos — . Reunia esse romance as duas tendências, a histórica e a romanesca, sem afirmação digna de nota em qualquer delias.
Mas já em 1854, Os Mistérios de Lisboa decidem o predomínio da segunda tendência sobre a primeira. Efetivamente pequena e sem novidade seria a contribuição de Camilo para o romance histórico. Os três volumes dos Mistérios são uma franca opção pelo gosto de Eugênio Sue, o estimado autor dos Mistérios de Paris com todos os requisitos da imitação. A ação é dum complicado enredo, complicação procurada; há amores exaltados, perseguidores e vítimas, longas alocuções sentimentais e autobiográficas, bruscas e inesperadas mudanças promovidas pelo acaso, esse tão valioso bordão dos autores do gênero. Para nenhum requisito faltar, há também o brinco de atribuir a paternidade da obra a uma origem misteriosa, que avivando para ela a curiosidade, a punha a cobro da suspeição de inventada pelo autor. Fora Garrett quem inaugurara este fingimento literário, ao atribuir a paternidade da Lírica a essa figura extravagante de João Mínimo.
Diz Camilo: “Este romance não é um romance; é um diário de sofrimentos, verídico, autêntico e justificado”. E transcreve a seguir uma carta que supõe recebida do Rio de Janeiro, em tudo correspondente ao prefácio da Lírica de João Mínimo. No mesmo gosto escrevera os Mistérios de Coimbra, que não completou e de que inutilizou sem publicar a parte escrita.
O Livro Negro do Padre Diniz (1855) continua os Mistérios. E em tudo uma continuação. O Padre Diniz é uma figura obrigada nos romances desse gosto; é o anjo tutelar, a bondosa personagem, cuja interferência vem resolver difíceis situações. O Livro Negro simula ser um livro de memórias do padre que Camilo publica dando-lhe forma de romance: “O Livro Negro não foi escrito para ser publicado, e muito menos em forma de romance. O grande homem que rubricara com lágrimas essas páginas, não as escrevia para nós profanos que lhas não compreendemos”.
A Filha do Arcediago (1855) é a primeira obra em que toma assunto do meio portuense, em que tantos havia de haurir. Mas a ação passa-se ainda numa época um pouco recuada (1815). O elemento romanesco é bastante reduzido, cedendo perante o desenvolvimento da narrativa serena de fatos comuns, episódios da vida burguesa dessa época; pode dizer-se que só representa o romanesco a personagem Augusto Leite, que é sucessivamente estudante cábula, boêmio, D. Juan, assassino, fidalgo português em Espanha, espanhol em França, frade e grande influente político quando volta a Espanha. Em compensação, um elemento novo contem, o cômico. Pela primeira vez, a dentro do romance, Camilo se ri das suas personagens. O elemento cômico é neste seu terceiro romance representado pelo comerciante Antônio José da Silva, por sua irmã e pelo lorpa estudante de latim, vizinho fronteiro. Mas duma maneira menos pormenorizada, a pintura de ridículo estende-se a toda a rua das Flores, ao comercio rotineiro e à mora], às opiniões e à ignorância da classe. Quanto à composição tem o romance uma particularidade. Um dos capítulos foi suprido por um ato cômico, o que testemunha como Camilo não possuía ainda bem o espírito do romance, ao qual totalmente repugna a essência do teatro. Fez por isso, uma obra de extravagante estrutura. Continuou-se esse romance por outro, A neta do Arcediago (1856), mais aproximado na época.
A primeira obra de vulto publicou-a em 1856, Onde está a Felicidade?, que se continua por Um homem de brios e Memórias de Guilherme do Amaral. Augusta, a protagonista do primeiro, é quem inaugura a longa galeria de amorosas, que na sua obra desfilam, todas elas, como Augusta, representando a concepção camiliana da mulher; na generalidade, mulher, cuja vida se preenche com um grande amor, que lhe sutiliza o espírito, dando-lhe uma grande agudeza e perspicácia para a inteligência dos sentimentos e uma superior resignação para o sofrimento. Augusta, formosa e de alma tão delicada, que repugnava o convívio com um primo artífice, vivia esquecida na sua quase miséria; um grande amor a eleva e transforma na espirituosa e sutil Augusta do Caudal, que fazia a admiração do escritor visita da casa, no qual Camilo se retratou. E quando a volubilidade de Amaral a esquece, abandona o viver cômodo do palacete do amante, enverga os velhos trajes de costureira de suspensórios, e regressa à rua dos Armênios, chorando a ruína do seu grande amor.
O achado — que não deixa de ter seus ressaibos de romanesco e de acaso, por ser explicável pela narrativa do prefácio — o achado de um tesouro enterrado no pavimento da casa, bruscamente transforma a fortuna de Augusta, que casada com seu primo, se torna a rica e melancólica baronesa de Amares. Esta personagem de Augusta não tem realidade, a palpável realidade da vida quotidiana, mas tem verdade, se por verdade tomarmos o conceito relativo de coerência. Num mundo ideal, arquitetado e colorido pela imaginação dum romancista tão subjetivo, como Camilo, ela existe; os seus atos são conformes às determinações morais, é reta a sua linha de conduta, e harmonizam-se todas as partes do seu caráter. Ela destaca à evidência de todas as personagens femininas até então evocadas pelo escritor, todas incaracterizadas. Por isso e pela grande e desgraçada história de amor, em que foi protagonista, é Augusta a primeira enamorada da obra de Camilo, que entra na tradição.
Guilherme do Amaral é o ideal do homem culto, de então, prematuramente cansado da vida que só conhece por via literária, inteligente e dissimulado, impulsivamente sentimental, capaz duma nobreza e duma vilania, inocente nesta como simples naquela, porque a uma e outra o impelia um sentimento sincero que até certo ponto limitava a sua responsabilidade, joguete da mulher fatal quando o seu olhar magico o penetrasse e dominasse.
A mulher fatal, a alma desgarrada que viria afirmar-se a outra, completando o par disperso, a mulher irresistível, eis outra concepção sentimental de Camilo, que também aparece no romance Onde está a felicidade? mas ainda incompletamente exposta. Frequente é nos seus romances a expressão mulher fatal, que, pode bem dizer-se, é uma expressão de autor, e é também esse o título dum romance publicado em 1870.
Chegara Camilo à sua maturidade artística, encontrara a sua maneira própria. Algumas personagens de natureza hipersentimental; algumas cujas opiniões, gostos e ademanes rocem pela banalidade e grosseria e possuam um todo caricatural; uma intriga amorosa localizada no Porto e arredores e preferentemente decorrida na classe média, na burguesia rica, e Camilo organizará um romance. Assim, fazendo a apologia do sofrimento amoroso e caricaturando, aguardando as sugestões acidentais de cada momento, a obra de Camilo, vasta como é, não tem a variedade proporcional, antes contém repetições insistentes, e reparáveis na obra de arte, em que todos desejamos ver unidade, harmonia, precisão e consistência estrutural e ideal. E isto é tão verdadeiro da fase literária, que estamos apreciando, como do conjunto da obra. Nesta segunda fase, Camilo é o cronista das desgraças amorosas do meio portuense; e vê-o, unilateralmente, só os que amam e os que por amarem muito sofrem. História prolixamente um período psicológico, mas não o faz integralmente; a sociedade portuense apenas nos é revelada na sua vida amorosa, e no caráter dos brasileiros de torna-viagem, agitando-se no velho Porto, de enredada topografia. Na pintura dessa sociedade não visava a reproduzir-nos a realidade táctil, efetuando o ideal da arte, imitar e espiritualizar a realidade. O que lia de real, de local, de cronológico é uma consequência, não foi um fim procurado. Como era do seu tempo e vivia no Porto, desse tempo e desse meio extraiu a matéria literária, de modo que foi um passivo representante do seu tempo e do gosto coevo. E foi essa identidade que fez o êxito extraordinário da sua obra.
Se Onde está a felicidade? foi o primeiro romance de valia, o Amor de Perdição foi a primeira das suas obras destinadas a permanecerem no espolio literário do romantismo. A consagração foi, em parte, devida ao assunto, de natureza sobremaneira comovedora, a história duns amores fatais, mas deveu-se também à fatura da obra. Ordenada duma maneira concisa, com sacrifício de todos os episódios, que diretamente se não incorporassem no seguimento geral do assunto, a obra tem, como as tragédias, um progressivo, quase precipitado desenvolvimento em direitura ao desfecho final, preparado habilmente por uma íntima convergência de efeitos; máxima exaltação sentimental, narração sumária e seguida, os caráteres muito extremados a provocarem conflito e aventuras romanescas. Viu Camilo esse mérito, ao escrever o seguinte período: “E grande parte neste favorável, embora insustentável juízo, a rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo; a ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartifício das locuções”.
O Amor de Perdição é a obra prima dessa forma do romance romanesco e sentimental, porque não contem nada, episodio, divagação, personagem que se não compreenda nesta forma. Este romance como que depurou o gênero de outro elemento estranho. E na história dos gêneros literários, o autor que cria é, na maior parte dos casos, um depurador e um condensador; depura o gênero do que lhe é estranho e condensa nele tudo que legitimamente lhe pertence. Camões depurou e condensou a epopeia moderna, Corneille a tragédia, Molière a comédia. Em proporções menores, foi isso que fez Camilo no Amor de Perdição. Não lhe peçamos psicologia, verdade moral, costumes, porque o romance não teve o propósito de conter esses requisitos, nem o gosto do público os reclamava. Seria fazer isso colocarmo-nos num ponto de vista absolutamente díspar do autor e do público. Um e outro só queriam a quinta essência do sentimento, do lirismo passional. E como este requeria o maravilhoso do enredo aliaram-se ambos intimamente. É forçoso confessar que, poucas vezes, as solicitações do público estimularam tão fortemente um autor. E que Camilo estava totalmente identificado com o público, para que escrevia e com o meio literário de que recebia as sugestões. Esse público e esse meio literário — os seus amigos de boêmia e os seus confrades literários — os caracterizou Ramalho Ortigão muito incisivamente no Estudo Crítico, que antecede o romance, e que de algum modo corrobora os nossos assertos: “Para todos estes homens, moços, aparentemente fortes, aparentemente despreocupados, violentos, desabridos, uma só coisa grave, irredutível, sagrada, parecia existir na vida. Era o amor. De tudo mais zombavam. Havia um desprezo convicto e geral pela fortuna, pelo dinheiro, pela consideração social, pelo próprio trabalho, e até pela saúde. A mulher, porém, a mulher sensível, a mulher amante e amada, a simples mulher romanesca, era um ídolo para cada imaginação, tinha em cada coração um culto, — culto pasmosamente ingênuo e cândido, resistindo a todas as provações do ridículo: ao namoro da rua pela hora portuense do despregar da agulha, ao namoro da igreja durante a Semana Santa ou na missa da 1 hora aos domingos, à carta clandestina com erros de ortografia, à recitação ao piano, ao anel de cabelo, ao bordado a miçanga!
Ao Amor de Perdição outros romances se seguem. Um deles, o Amor de Salvação, manifestamente tem o propósito de especular com o paralelismo do título. Mais duma vez Camilo especulou, já continuando a intriga dum romance para outro, já adotando títulos em antítese, Onde está a felicidade? continua-se pelo Homem de Brios, este pelas Memorias de Guilherme do Amoral: Os Mistérios de Lisboa; continuam-se pelo Livro Negro do Padre Diniz; a Filha do Arcediago pela Neta do Arcediago; o Regicida pela Filha do Regicida e pela Caveira da Mártir; Eusébio Macário pela Corja; e quanto a títulos, aproximemos os seguintes: Mistérios de Lisboa, Mistérios de Coimbra e Mistérios de Fafe, Amor de Perdição e Amor de Salvação, Estrelas funestas e Estrelas propícias. Preceitos do coração e Preceito da Consciência.
Até 1879 segue Camilo a sua carreira literária irregularmente, com uma produtividade muito desigual, romances romanescos, romances históricos, teatro e variedades. Mas os romances não acusam todos progressos sobre os antecedentes, como se veria numa análise minuciosa e individuada, obra a obra.
Um romance A Queda de um Anjo, de 1866, fere uma nota original. E uma forma particular do romance camiliano, porque é exclusivamente satírico, porque o lirismo que contem é um instrumento adequado ao intuito que domina toda a obra e porque, permita-se este dizer, é um romance de intenção.
Calisto Elói, morgado de Agra de Freimas, pela sua organização moral, pelas suas ideias e predileções, pelos seus hábitos, pelo viver de que se rodeia, é efetivamente um homem do século XV, um anacronismo como quer Camilo, mas pelo seu alheamento da vida, pelo desdém do exercício sensorial, da indução vulgar, pelo seu recolhimento livresco é também o eterno intelectual que concebe da vida e do mundo só a pequena parte que o livro lhe denuncia, e que exercita do espírito só a pequena parcela que é a inteligência. O protagonista é um deslocado, é Calisto Elói, mas é também um pouco o Fausto. Vindo a Lisboa, como deputado, o meio transforma-o; e esta transformação é um caso da influência do meio, precipitando um anjo, mas é também a revelação da verdadeira vida a quem nunca a exercitara, é também o gostar do sentimento do amor, da conformação com o seu tempo e com o seu meio, por quem não supunha na vida do coração tão amplos limites. De forma que Calisto Elói é uma forma satírica, romântica, camiliana acima de tudo, do eterno tema do conflito entre a vida ideal e a real, da tardia opção pela segunda. E à longa lista de expressões literárias do tema chamado do Fausto — porque foi a versão alemã que se internacionalizou — há a acrescentar a de Camilo, pelo romance satírico.
Esta nossa opinião não supõe que Camilo deliberadamente escrevesse o romance com tal propósito, significa apenas que, quanto a nós, escreveu um romance que pode considerar-se, ainda que por coincidência, uma nova expressão desse velho tema.
Quando, em 1862, por motivo da aventura amorosa com D. Ana Augusta Plácido, se retirou do Porto, o cenário da obra de Camilo variou. Só na primeira infância e adolescência, vivera na aldeia; ao viver aldeão regressava de novo e dele ia extrair os seus motivos literários. As Novelas do Minho distinguem-se da vasta obra precedente pelo campo de ação, o Minho pitoresco e o viver aldeão, e pelo estilo másculo, duma segurança admirável, variado e próprio. Mas; ao contrário de Júlio Diniz e de todos os autores que fizeram romance campesino, Camilo mantinha um grande pessimismo sobre a moralidade das aldeias e toma portanto uma atitude muito diferente da daqueles; em vez de apologia, faz crônica da criminalidade, dos ruins sentimentos, dos baixos instintos, da grossaria dos campônios, faz como que uma demonstração da sua opinião. Na dedicatória da novela O Comendador, a D. Antônio da Costa, falando do livro o Minho, diz o romancista: “O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial da diligência, lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas não se além a ferroar-nos a testa e a sevandijarmos os beiços convulsos de lirismo.
Viu vossa excelência perfeitamente o Minho por fora...
Mas o que D. Antônio da Costa não teve tempo de ver e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas românticas do Minho; quero dizer — os costumes, o viver que por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro e a filomela trila.
Ah! meu amigo! Romances, tecidos de casos cândidos e inocentes, apenas os fazem por aqui os pássaros em abril, quando urdem e afofam os seus ninhos. O restante dos animais não ovíparos vista-mos vossa excelência no Catarro ou no estabelecimento da famosa senhora Cecília Fernandes, da Travessa de Santa Justa, que eu lhos farei representar ao vivo no próprio coração do Minho — entre Fafião e São João do Calendário — as cenas contemporâneas da fina Baixa e piores.
A peste, que infecionou os costumes destas aldeias, não sei decidir se veio das cidades paia aqui, se foi daqui para lá.
É neste pessimismo sobre a vida rústica que Camilo se aparta dos demais romancistas e contistas, que sobre a vida do campo arquitetaram os seus romances.
Nas Novelas do Minho há pormenor descritivo, amplificação, para empregar o termo clássico, que em absoluto faltava nos romances antecedentes. A muito citada descrição do incêndio do Retrato de Ricardina não tem a autonomia de peça artisticamente trabalhada, que manifestasse o intento de descrever o incêndio, antes está tão entrelaçada subsidiariamente no desenvolvimento da intriga, que é incompleta. O que ela tem é vários toques dispersos dum flagrante impressionismo, que fazem esse trecho caraterístico no romance. Não hesitamos em dizer que se o incêndio não estivesse intimamente ligado a um episódio principal da intriga, Camilo apenas o citaria. Porém as Novelas do Minho já tem a descrição minuciosa, com capricho literário, Camilo compraz-se em desenvolver, em amplificar fatos, que noutros romances, apontaria sem lhes desdobrar o conteúdo fecundo de beleza literária. Até às Novelas, excetuando raros casos, como o do incêndio do Retrato de Ricardina, Camilo compõe os seus romances, principalmente, com diálogos e com a narrativa, em seu próprio nome, a que ele intercala divagações, comentários, conversa com o leitor. A descrição surge nas Novelas, e ainda em proporções reduzidas.
São exemplos o despertar do abade no Comendador e a morte de Josefa na Maria Moisés, páginas que patenteiam a completa maturidade do escritor.
Retratos também os não fizera; esboçava a biografia das personagens, mas nunca nos contara com individuação, personagem a personagem, os seus gostos, as suas opiniões, a sua constituição moral. Fê-lo pela primeira vez na novela, Gracejos que matam.
Se com estas divergências da maneira literária, que longamente exercitara durante esta fase, as Novelas do Minho são como os romances, seus antecessores, romances romanescos, pelo maravilhoso da ação e pela exaltação sentimental, forçoso é reconhecer que acusam um evidente evoluir. Camilo condescendia nos seus processos, e iria ceder, como veremos.
***
TERCEIRA FASE: 1879-1890
Decorre esta já em pleno triunfo do realismo, quando o êxito dos romances de Eça de Queirós e o acolhimento caloroso dum público de gosto modernizado provocaram veemente protesto na imprensa.
Os que publicamente optavam pelo idealismo tomavam para modelo e para estandarte o nome de Camilo, com ele esgrimiam contra os partidários de Eça de Queirós.
Mais de uma vez, Camilo declarou que não tinha animosidade contra a nova escola literária, citando com aplauso o nome do seu chefe Eça, dos sequazes Lourenço Pinto e Sr. Teixeira de Queirós, a quem dedicou uma das Novelas do Minho, invocando a sua qualidade de autor da Comédia ao Campo, como para evidenciar que fora o título de autor dos romances dessa série, que fizera nascer o seu apreço. Mas não era sincero nessas declarações, porque outros depoimentos contrários possuímos e bem mais fidedignos porque não eram francos e declarados ou não eram públicos. A confirmar a presunção de serem estes os mais plausíveis está o seu caráter, tal como nós o concebemos, fundamentando-nos em fatos, despreocupadamente de qualquer preconceito.
No parágrafo final da novela o Degredado, escreveu: “Vossa excelência já sabe que eu — o verdadeiro cultor do romance plangente neste país onde a literatura se esta refazendo com fermentação de cores várias e jogralidades vasconsas...”
E ao fechar Maria Moisés, dedicada a Tomás Ribeiro, um dos retardatários idealistas: “Tomás Ribeiro, com o teu coração, se tens nele uma lágrima, imagina este quadro e descreve-o se podes, que eu não posso, nem quero porque o último feitio das novelas é não pintar, com o colorido gótico das românticos, os quadros comoventes que rutilam na alma a faísca do entusiasmo. Agora somente se pintam as gangrenas com as cores roxas, e com as cores verdes das podridões modernas. Nos literatos o que predomina é o verde, e nas literaturas é o podre”.
Também nalgumas cartas particulares há trechos, que são muito concludentes: “Tenho gostado muito do seu modo de desmantelar o pseudo-realismo do estilo à Eça. Parece-me que você continua a pacifica destruição que eu comecei, e dou-lhe a minha palavra de honra que desmantela pelo ridículo a escola”...
No prefácio da 2ª edição de Eusébio Macário reproduz uma definição da nova escola atribuída a outrem, que a amesquinha com evidente desdém: “É a tua velha escola com uma adjetivação de casta estrangeira, e uma profusão de ciência compreendida na Introdução aos três reinos. Além disso tens de pôr a fisiologia onde os românticos punham a sentimentalidade: derivar a moral das bossas, e subordinar à fatalidade o que, pelos velhos processos, se imputava à educação e à responsabilidade”.
Mas quando não bastassem as suas próprias palavras, os seus atos confirmavam a nossa presunção da sua animosidade contra o realismo. Com o conceito acerca da nova escola, que acima reproduzimos, conceito duma estreiteza mesquinha, porque era parcialíssimo, Camilo quis demonstrar a inanidade do novo gosto literário e fez a caricatura do realismo no Eusébio Macário e na Corja, continuação daquele. E evidente o intuito de sátira. A história natural e social de uma família no tempo dos Cabrais (parodia à rubrica que encima os romances de Zola: Histoire naturelle et sociale d'une famille sous te second empire) que se contem nesses dois romances é a revelação do seu propósito.
A respeito de Eusébio Macário escreveu: “O Eusébio Macário foi uma disenteria de todo o meu gênio. Derramou-se-me o cérebro naquela dejeção, e não sou capaz de dar nem melhor nem pior que aquilo”. E sobre a Corja reproduziu sem protestar a estranha opinião de seu filho Jorge.
Como fez Camilo a sua sátira ao realismo? Imitando exageradamente os caráteres que mais sobressaíam na interpretação de Zola. Suprimiu os costumados antelóquios com o leitor e as digressões, que usava interpolar; era a impessoalidade exigida pela escola. Não abriu os romances como costumava fazer anteriormente, pelo princípio da ação, frequentemente com uma exata minúcia cronológica, como a demonstrar que a narrativa da intriga é o principal objeto da obra. No Eusébio e na Corja abriu por uma descrição, no primeiro, por um quadro familiar, no segundo. Mas, como os realistas acumulavam os atributos nas suas descrições, Camilo exagerou essa acumulação, na descrição do relógio da botica de Eusébio e na enumeração, que se lhe segue, sem ligação sintática, como faziam os realistas. “Moscas zumbiam com asas lampejantes em giros idiotas; gatos agachados como velhos sicários pinchavam com muitas perfídias à caça dos pássaros nas densas verduras, desbotadas, dos arvoredos; carros chiavam nas terras baixas, barrentas, com grandes gretas das calcinações do grande sol: os lentos bois nostálgicos vergastavam com as caudas ásperas os moscardos, que os atacavam dentre os tapumes com grandes sedes impetuosas de frescores de sangue. Havia molezas e estonteamentos abafadiços no recheio de sensualidades mordentes”.
E na Corja o grupo de Eufêmia a catar o padre e uma insistência proposital no pormenor imundo.
Supunha Camilo que era qualidade principal do realismo conceber a sociedade como uma infrene multidão de sensuais hipócritas e viciosos de todo o gênero, a agitarem-se num passivo domínio dos instintos, a fatalidade que entrava na definição atrás citada. Por isso pôs nos dois romances muita imundície física e moral, constituindo uma sociedade absolutamente ideal pelo descaramento.
Esta intenção de sátira prejudicou grandemente os romances, dando-lhe o caráter de caricatura. E com esta significação, que os devemos considerar, tomando-os como a mais importante manifestação do seu poder satirizador, a sua habilidade de imitação caricatural. Caricaturar é desenhar alterando as relações das partes, de forma a sobressaírem exageradamente os traços principais por mais diferenciais. E isso com superior mestria fez Camilo.
Assim considerados, o Eusébio Macário e a Corja, não valendo como romances realistas, valem por outras belezas, o estilo duma energia lapidar, infinitamente variado e por descrições flagrantes, das quais é a célebre morte do lobo, que não é uma descrição conjectural, como faziam os românticos, mas muito real, baseada em sensações diretas.
Entretanto Camilo tornara-se um erudito e começara as suas investigações biográficas e históricas. Aos romances acima referidos já vinham apensos alguns estudos históricos. Mas o romance, principalíssima parte da sua atividade literária, não o abandonou. Antes, prosseguindo, publicava em 1882, A Brasileira de Prazins, em que alguma coisa aproveitava do realismo.
O estilo continua o da Corja, mas a índole da obra é diferente, já não obedece a um intento de sátira: é um romance, à maneira camiliana, com grandes defeitos e grandes belezas. Dos defeitos o máximo é a irregularidade da composição, intrometida de peripécias.
Tem o romance por objeto a história duma louca, filha e neta de loucas. Não é este assunto já, por si, um assunto admitido no âmbito dos temas literários por via do naturalismo? A etiologia da louca — permita-se o termo da escola — é interrompida na sua sequência, porque o autor lhe intrometeu a longa narrativa da aventura do falso D. Miguel, que em 1845, apareceu na Povoa de Lanhoso. Também na Relíquia, de Eça de Queirós, o sonho duma personagem ocupa grande parte da obra e constitui mesmo, pode-se dizer, uma obra distinta.
Conservou do realismo outros caráteres: a descrição com acumulação de pormenores; os retratos minuciosos, desde o vestuário às particularidades morais de que são exemplos os retratos dos padres da missão jesuítica; os documentos, tão preconizados pelos teóricos do naturalismo; a atitude de ceticismo para com as personagens: e até o fecho do capítulo final por uma exclamação é imitado do gosto realista.
Da sua antiga maneira romântica conservou a explicação da origem da obra. Entre as páginas dum velho livro, comprado com outros a uma aldeã aparecera um bilhete amoroso. A sua curiosidade levou-o a investigar a história desses amores, que narrados em composição de romance, formaram o fundo da Brasileira de Prazins.
Este romance é, por certo, o melhor da sua longa produtividade. Tem vigor na sua construção e verdade no episódio amoroso, que nos conta. Mas este êxito deveu-o Camilo ao uso moderado e mais inteligente que nele fez dos processos do realismo. E tanto assim é que algumas das suas melhores páginas são a execução plena do naturalismo, quanto às descrições. Camilo, anteriormente à influência do realismo, não escreveria as páginas da morte do lobo e do Melro. E estas páginas, celebres pela sua perfeição e beleza, que são senão belos exemplos do poder descritivo do realismo
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FIDELINO DE FIGUEIREDO
História da Literatura Romântica Portuguesa (1913)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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