5/23/2020

Bibliografia camiliana (Ensaio), por Joaquim Araújo



BIBLIOGRAFIA CAMILIANA
COM CARTA AO AUTOR
POR: JOAQUIM ARAÚJO (1894)

Meu prezado Henrique Marques
:
Revia eu as últimas provas de um modesto livrinho de homenagem, por mim oferecido à insigne escritora e minha excelente amiga D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, quando me chegou às mãos o precioso exemplar do monumento, que a perseverança de você soube alevantar à memória de Camilo. Compunha-se o meu preito, à alta inteligência e ao nobre caráter da senhora D. Carolina Michaelis, da reunião dos artigos, que em Portugal saudaram a portentosa edição das Obras de Sá de Miranda, na ordem cronológica do seu aparecimento: são dois apenas, que mais não conheço, mas com serem dois, têm a impô-los respectivamente a autoridade de Antero de Quental e do Visconde de Correia Botelho, no único lugar em que Camilo rubricou, com o seu nome transformado, um escrito literário. É ver o folhetim do nº 91 do Comércio do Porto de 13 de abril de 1887. Ali, Camilo presta voto de homenagem ao saber e à honestidade, com que Sá de Miranda foi evocado, em um espírito crítico a que andávamos desabituados, e a que por igual fizeram justiça, nas citações dos seus livros, Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Oliveira Martins, etc.
Neste lanço, e uma vez em meu poder a Bibliografia Camiliana, rebusquei a individuação do estudo de Camilo, que bem interessante é, por sinal. O nº 573 do seu livro não o menciona, nem indica, donde me pareceu que lhe é desconhecido na forma primeira de folhetim; que, de resto, você lá o aponta ao memorar dos trechos componentes do Óbolo às crianças. Junte-o, pois, agora, em forma autônoma, à sua esplêndida Camiliana — por certo a mais notável que ainda se reuniu em Portugal e no Brasil — e consinta que neste lugar, que já agora tenho pelo mais oportuno, e numa cavaqueira amiga, o mais obscuro admirador da sua monografia, carreie duas ou três anotações, que sirvam de aperfeiçoamento à traça de um edifício, nobremente cimentado por trabalho improbo, como é o seu. Acaso vale a pena de consigná-las neste opúsculo, à sombra do nome ilustre da doutíssima escritora alemã, que tirou carta de naturalização entre os mais consideráveis publicistas do nosso país, e sob a égide dos dois grandes homens que firmam as páginas, precedentes a estas linhas corridas, de palestra amiga.
É de mais rápida monção ir inscrevendo as notas em relação a números, e na ordem de secções. Para aqui as traslado, pois, redigindo os hieroglíficos, com que marginei o seu presente de nababo, numas horas rápidas de exame:
Nº 10 — O Clero e o Sr. Alexandre Herculano. Deste curioso folheto extraíram-se exemplares em papel azul, meio cartão. Vi há anos um, na loja do Sr. João V. da Silva Coelho, à rua Augusta. Vem a pelo referir que Latino Coelho inseriu anonimamente, num dos primeiros volumes da Revista Popular, uns valiosos traços de apreciação deste opúsculo.
Nº 95 — Divindade de Jesus. Este livro reúne artigos publicados muitos anos antes, e teve como fim imediato facilitar ao autor a aquisição de um exemplar raríssimo dos Amusements périodiquis do Cavaleiro de Oliveira, que José Gomes Monteiro possuía e que Camilo namorava desde muito. Esse exemplar ajudou à elaboração do Judeu, da Caveira da Mártir, das Noites de Insônia, e, mais tarde, de algumas secções da História de Portugal de Oliveira Martins. Possuo-o eu atualmente, tendo sucessivamente pertencido a Augusto Soromenho, José Gomes, Camilo e Aníbal Fernandes Tomás. Numa das guardas do 1º volume, lançou Camilo a seguinte cota: "Dei por este livro o manuscrito da Divindade de Jesus, reputado em 14 libras, a José Gomes Monteiro".
Nº 146 — O Condenado. É, efetivamente, uma contrafação. Basta que o meu presado Henrique Marques se dê ao incomodo de refletir que em 1871 a casa Moré se achava ainda num período de relativa atividade e que nada tinha que ver com a loja de João Coutinho. Pelo mesmo motivo, aplico esta observação ao número imediato.
Nº 174 — A Caveira da Mártir. Da queima do 1º volume — feita por motivos de consciência,— salvaram-se uns quarenta exemplares, por se acharem deslocados nos depósitos do editor. São esses os que têm sido vendidos. Não há, nem houve reimpressão daquele tomo. O editor recusou mesmo vender a propriedade da obra, quando traspassou a Pedro Correia a de todos os demais livros de Camilo, que havia adquirido. A nota de Henrique Marques é absolutamente injusta. Conheço o Sr. Tavares Cardoso, o bastante para tomar a responsabilidade desta afirmativa, que o seu caráter me garante e abona.
Nº 176 — Curso de literatura. Numa das cartas publicadas no opúsculo adiante descrito, sob nº 289, acha-se, a breve trecho, uma curiosa e incisiva apreciação da parte deste trabalho, redigida por Andrade Ferreira.
Nº 221 — Bhemia do Espírito. O estudo sobre Luís de Camões tem, pelo menos, uma passagem, que se não lê nas impressões anteriores, e que se refere ao Sá de Miranda da Sra. D. Carolina Michaelis.
Nº 237 — Delitos da mocidade. Além da edição especial que ficou apontada, há uma outra, em papel Japão também, mas sem as letras capitais a cores. Possui um exemplar o meu amigo Dr. A. A. de Carvalho Monteiro.
Nº 263 — Amor de perdição. Fui eu quem traçou o plano da edição. Pertence-me a redação do prospecto e a escolha dos indivíduos que tiveram de escrever a parte crítica. Camilo tinha em grande atenção o meu entusiasmo por este admirável livro, a que todavia antepunha o Romance de um homem rico e o Retrato de Ricardina. Dois ou três dias depois de uma das muitas conversas que tivemos, sobre o tema do Amor de Perdição, vinha-me da residência amiga de São Miguel de Seide um exemplar da extraordinária novela, com o seguinte envoi do notável romancista: — "Para fazer chorar de novo Joaquim de Araújo — essa suprema expressão das almas boas, chorar. C. C. Branco". Henrique Marques cita um exemplar especial da 1ª edição. Pode adicionar-lhe o que deve existir na Biblioteca particular de El-rei, o que foi presenteado a Fontes e o que recentemente adquiriu o meu amigo Joaquim Gomes de Macedo. Esta tiragem especial foi de 12 exemplares, com destino a brindes, que por então se efetuaram a indivíduos e sociedades de Portugal e do Brasil, sob indicativa de Camilo e de José Gomes Monteiro.
Nº 289 — Cartas de Camilo Castelo Branco a Joaquim de Araújo. Entre os meus papéis, encontro mais a seguinte missiva de Camilo, bastante curiosa para a história do nº 189:
Meu amigo:
A tarefa de escrever o Perfil do Marquês de P. em 20 dias deixou-me o cérebro em lama. Vou ver se os ares de Braga e a ausência de livros me restauram.
Ana Plácido vai ler os seus versos. Conhece os que apareceram dispersos nas folhas. Diz ela que a linguagem dos poetas lhe está sendo hoje um dialeto oriental. Acrescenta que está muito velha, muito materializada pela vida rural e pelas enormes tristezas da sua vida. Entretanto, as suas poesias alumiam escuridões.
Logo que volte de Braga participo-lho.
De vossa excelência
Admirador e amigo
CAMILO CASTELO BRANCO.
2 de junho de 1882.
Nunca vi exemplares em grand papier do Perfil do Marquês de Pombal, mas o editor Manuel Malheiro asseverou-me que fizera imprimir uns três ou quatro. Só a Sra. viscondessa de Correia Botelho, minha muito estimada e querida amiga, poderá desenvincilhar hoje este pequeno problema bibliográfico.
Nº 291— Gênio do Cristianismo. Embora o frontispício das quatro edições publicadas atribua esta versão a Camilo Castelo Branco, o fato é que a interferência do grande escritor só tem relação com os primeiros capítulos; os demais foram vertidos por Augusto Soromenho. Para compensar o editor Coutinho, Camilo derivou o cumprimento do seu contrato para um romance original — Como Deus castiga! cuja ação se desenrolava pelos tumultos, a que no Porto deu origem a criação da Companhia das Vinhas do Alto Douro. Existem escritos cinco capítulos, um dos quais se acha menos corretamente mencionado, sob nº 607 da Bibliografia. A elaboração deste romance data de 1861; abandonando o assunto, Camilo saldou noutro volume as suas contas com o editor. Como Deus castiga! deve ser citado entre os números 49 e 55, no grupo de obras originais.
Nº 300— A Freira no subterrâneo. Nenhuma das edições traz nome de autor; ouvi que Camilo redigira ele próprio o romance, aproveitando alguns dados de pormenorizadas notícias, aludentes ao sequestro de uma emparedada em um convento russo.
Números 333 e 373 — Catálogos etc. A serem verdadeiras, como são, para mim, as indicações de Henrique Marques, o lugar destes números deve marcar-se entre a série das obras originais do autor.
Nº 470 — Óbolo às crianças. As duas procissões, dos Mortos e dos moribundos, correram mundo em jornais diversos, que não vejo designados no 5º grupo da Bibliografia. A propósito, escreveu Camilo a Bulhão Pato uma eloquente carta, que este distintíssimo poeta engastou num comovido folhetim do Diário Popular, referente à loucura de Freitas e Oliveira. Camilo convidava Bulhão Pato a enfileirar também processionalmente os seus mortos queridos. Com um talento extraordinário de visão das idades transcorridas, com o inestimável estilo que Oliveira Martins considerava impressionavelmente consolador e único, nessas evocações, já, antes do convite de Camilo, Bulhão Pato fundira o inimitável tomo Sob os Ciprestes. Pelo corrente deste livro, as suas recentes Memórias pertencem à categoria dos trabalhos de primeira ordem, que, entre nós, se têm produzido, na segunda metade deste século. Admiro sem restrições o autor de tão altos primores, como os que se revelam nas nobres páginas consagradas a Antero de Quental.
Entre os livros que contêm escritos de Camilo, por certo que ainda falta — e até quando? — acentuar bastantes, embora você apresente uma soberba lista; lembra-me indicar-lhe a A Propriedade intelectual do meu querido amigo e eminente publicista Visconde de Faria Maia, impresso num limitadíssimo número de exemplares, em Ponta Delgada; os Homens e letras de Cândido de Figueiredo; A Ciência e probidade de Francisco Adolfo Coelho; o Fausto de Castilho julgado pelo elogio mutuo de Joaquim de Vasconcelos; e um dos Catálogos do Sr. Lima Calheiros: sendo possível que neste capítulo se possam inscrever os trabalhos filológicos de Manuel de Melo e os opúsculos faustianos de Graça Barreto. Escrevendo estas linhas longe dos meus livros, não posso jurar nas últimas indicações, que registro, apenas, a benefício de inventario.
Quanto à seção de jornais e revistas, há que ter em conta os números do Primeiro de Janeiro, em que Camilo publicou a Necrologia do comendador Vieira de Castro, as cartas a Germano de Meireles por motivo do processo do grande tribuno deste nome, e a João de Oliveira Ramos, em ocasiões várias; o Círculo Camoniano; o Diário da Tarde, onde a colaboração de Camilo foi extensa, e onde se acha reproduzida a matéria do Bico de gás (nº 504), sem a menor obediência às sete chaves com que, anos depois (!), na Biblioteca Municipal do Porto inteligentemente lhe vedaram, a você, o direito de copiar o exemplar, que lá se guarda; o Diário Nacional que revelou em primeira mão alguns dos pormenores históricos de D. Luís de Portugal. Muitos outros haverá decerto. E por se falar em jornais, lembro-lhe a utilidade de nos índices finais do seu trabalho, mencionar à parte os periódicos, de qualquer índole, que tiveram Camilo como redator ou editor exclusivo, e bem assim os volumes que devem a sua impressão ou reedição ao grande escritor, embora com o concurso de livreiros. Dada a lucidíssima organização dos seus números de recorrência, é fácil esmiuçar toda a casta de índices. Um dos mais curiosos seria o de todas as pessoas citadas na Bibliografia Camiliana.
Uma observação ainda: diz respeito a tiragens especiais. Ha, que eu saiba, dos seguintes números: 368 (poucos exemplares em papel Whatman); 401 (oitenta a cem exemplares em velino e linho nacional); 409 (1 exemplar em China, 2 em velino, e 38 em linho) 458 (6 exemplares em Whatman); 462 (diversos exemplares em linho); 488 (8 exemplares em China); 494 (6 exemplares em papel cartão amarelo.) Das Poesias e prosas de Soropita fez-se também uma impressão à parte, de pouquíssimos exemplares, menos talvez ainda do que os que o editor Chardron mandou tirar das Escavações bibliográficas, folhetim do Diário Mercantil, em que Teófilo Braga analisou severamente o aparecimento daquele volume.
Clareia a manhã, e tempo é de ensaiar um termo a esta carta, do tamanho clássico das léguas da Povoa. Infelizmente, não lhe posso dar mais alta prova da minha consideração pelo seu livro, digno, em tudo, do grande escritor a quem é consagrado, e quase pagamento de uma dívida nacional. Por mim, registro-o como um dos mais valiosos subsídios para a nossa moderna história literária, e as pequenas minucias que lhe adito testemunham exuberantemente ao meu amigo o aplauso mais sincero e o parabém mais entusiástico. Do seu editor, e meu excelente amigo A. M. Pereira, tão somente lhe digo que, na publicação da Bibliografia Camiliana, praticou uma das mais belas ações da sua brilhantíssima carreira.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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