Camilo, um conhecedor da alma portuguesa (Discurso)
Sobre a hora final da vida física do maior
romancista português vão escoados já 24 anos, que parece terem pesado como
chumbo na memória dos que o conheceram. Obliterada a memória, fez-se em torno
do grande morto um silêncio opressor.
Estamos num país fraccionável em três classes
irrecusáveis: — a dos analfabetos, que é numerosa, a dos bacharéis, que não é
menos densa, e a dos intelectuais, que constitui a parcela menor, ainda
reduzível pela subtração dos medíocres invejosos. É claro que num país desta
ordem, a invulgaridade artística, o talento, e o gênio passam despercebidos dos
parvos, quase sempre inofensivos, mas precisam evitar os colmilhos do
bacharelato, porque não há nada mais voraz do que a estupidez faminta do bacharel.
Quanto aos intelectuais, aqueles que veem
normalmente e sentem sem perfídia, saúdam a invulgaridade, aclamam o talento e
coroam o gênio. Mas, os medíocres aparentemente unânimes, ficarão reprimindo a
sua inveja até o momento em que ela possa deflagrar-se a coberto de corretivo
condigno.
Há, pois, 24 anos que Camilo Castelo Branco jaz
abandonado num coval de empréstimo, de mais a mais obscuro e obsedante.
E, todavia, Camilo tem irrecusável direito a uma
das maiores e mais nobres capelas do Panteão Nacional.
Cérebro prodigiosamente fecundo, só a morte o
conseguiu esgotar. Dos que vivem, quem o iguala, quem se lhe aproxima sequer?
Quem, melhor do que Camilo, desceu ao âmago da alma portuguesa?
Quem conseguiu ainda, transformando a pena em
pincel, descrever, com todas as suas tonalidades de cor e cambiantes de luz, os
nossos céus, os nossos prados, águas, montanhas, vales, penedias?
O seu espírito de observação era profundo, o seu
poder emotivo era imenso. Desfibrando um coração palpitante ou exumando do
esquecimento cadáveres seculares, a mesma clarividência o guiava, a mesma
firmeza lhe denotava o pulso. Como se fosse um milionário em busca da ruína
prodigalizou em centenas de volumes o ouro da palavra, as gemas do estilo, as
cintilações diamantinas do amor e da graça, as facetas coruscantes da ironia,
da dor e do ódio.
Foi temido porque era forte. Foi mordido na sombra
porque era incomparável. E ser verdadeiramente grande nesta terra de parvos e
de cretinos, é pior que atravessar sozinho, alta noite, uma selva infestada de
bandidos.
Eis, Meus Senhores, a razão do obscurantismo
vergonhoso que hoje sepulta o nome do Mestre. Lê-se pouco a sua obra, exceção
feita a essa trágica epopeia de amor de seu tio Simão Botelho, aquele curioso
tipo de criminoso passional que, no dizer do Mestre, amou, perdeu-se e morreu
amando.
E, no entanto, que maravilhosa obra essa, tão
portuguesa, tão nossa, em todos os seus tipos, na paisagem, no meio social, na
própria linguagem bebida nos livros clássicos, aqueles esquecidos e belíssimos
alfarrábios, de que Camilo dizia com ternura:
Os livros
antigos pagam liberalmente a quem os atura. Não há velhice mais dadivosa e
agradecida do que a deles. Sentam-se conosco à sombra de árvores, suas coevas,
e contam-nos coisas que viram os plantadores das árvores. Nos silêncios das
noites geadas dos nossos janeiros, eles, que os contam aos centos,
aconchegam-se de nós e conversam com o mesmo afeto das tardes estivas, embora o
frio lhes esteja orvalhando os pergaminhos das capas. Ótimos amigos, que nem
quando nos adormecem se agastam e até sofrem ser ouvidos sem ser escutados!
Respondendo a um inquérito sobre qual seria o
melhor livro português dos últimos 30 anos — estranho inquérito esse pela
natureza exclusiva da pergunta, como se uma craveira houvesse para medir o
valor comparado das obras de arte — um ilustre homem de ciência, crítico de
arte e literato de alto valor, com cuja amizade muito me honro, o Sr. Dr.
Ricardo Jorge, defendia para os livros de Camilo a primazia da superioridade a
todos os escritos portugueses, num admirável trecho de prosa que de todo o
coração aplaudo. Tem razão o ilustre sábio, o que não obsta a que poucas
opiniões venham em auxílio da sua, com o que aliás ela nada perde, valorizada
pelo isolamento que a livra do convívio de más companhias.
Poucos tem sido os escritores portugueses que da
obra de Camilo se tem ocupado. Na lista reduzida figuram apenas os nomes de
Teófilo Braga, Ramalho Ortigão e Pinheiro Chagas, nos admiráveis prefácios da
edição monumental do Amor de Perdição;
Fialho em três artigos soberbos da Revista
Ilustrada; Silva Pinto; Alberto Pimentel, Vieira de Castro; Henrique
Marques, o paciente compilador da Bibliografia
Camiliana; Paulo Osório; Melo Freitas, que estudou os seus últimos
momentos; Pedro de Azevedo, que investigou dos seus antepassados; o padre Sena
Freitas; Alberto Pimentel, filho, que escreveu a Nosografia de Camilo; e mais recentemente o visconde de Vila Moura,
que nos dá, no seu Camilo inédito,
uma magnífica coleção de cartas camilianas por ele anotadas; o poeta Jaime
Cortesão, que estudou Camilo em três conferências promovidas pela Renascença Portuguesa; e o Sr. Dr. Jorge
de Faria, que nos seus Criminosos e
degenerados em Camilo realizou um esplêndido esboceto de camiliana criminal.
Camilo Castelo Branco à sua qualidade de grande
escritor aliou a desventura de ter nascido em Portugal juntamente com o
infortúnio que sempre o perseguiu. Romântico por temperamento, duma
sensibilidade estranha, o seu caráter extremamente afetivo fez da sua vida um
verdadeiro romance. Páginas em fora dos seus livros que são, mais do que
valiosas obras de arte, um precioso escrínio de quanto há de mais clássico no
riquíssimo vocabulário português, o grande escritor deixa transparecer pedaços
da sua biografia, que o leitor pode, querendo, facilmente reconstituir.
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OLDEMIRO CÉSAR
“Camilo Castelo Branco: sua vida e sua obra” (1914)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
OLDEMIRO CÉSAR
“Camilo Castelo Branco: sua vida e sua obra” (1914)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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