Na vida de Camilo Castelo Branco
há um episódio que, a ser verdadeiro, define de maneira bem precisa o
temperamento de romancista do truculento solitário de São Miguel de Seide.
Camilo tinha um filho maluco. E era a esse filho que o escritor dedicava a
melhor de sua afeição. Ao tempo, andava Camilo em turras com Teófilo Braga. Um dia certo jornalista, encontrando-se no gabinete
de trabalho do romancista, viu a porta
se abrir e o maluco aparecer. O doido encarou o visitante com ar apalermado;
riu e tornou a desaparecer. O jornalista olhou, logo depois, para o dono da
casa: Camilo tinha os olhos cheios d'água. Imediatamente um sorriso repuxou-lhe
o canto dos lábios. E o visitante ouviu-lhe estas palavras:
— O senhor viu bem como se acha o meu filho?
O rapaz estava bom quando resolveu ler ura livro do Teófilo. Leu e quis
entender. Logo depois perdeu a cabeça...
E riu, com a pilhéria dolorosa.
O comentário a extrair-se desse
episódio é que nele se acha descrito o temperamento de Camilo Castelo Branco.
Primeiro, a sua capacidade de emocionar-se. Segundo, a sua capacidade de
superpor o riso às dores mais lacerantes.
Nada devia fazê-lo sofrer mais do
que o espetáculo do filho doente e sem remédio, justamente o filho em quem
depositava a melhor de suas esperanças e por quem fizera todos os sacrifícios,
inclusive o de raptar uma namorada para ele.
Este caso revestiu-se de todas as
tintas de uma cena romântica. Camilo e o filho, altas horas da noite,
aproximaram-se da casa da rapariga. Camilo, mais experiente em a tais lances de
novela, encarregou-se de aguardar a moça, que ia saltar um muro. Jorge, o
filho, menos hábil, ficou sentado num banco, um pouco distante, à espera do pai
e da namorada. Os minutos se passaram. Decorreu quase uma hora. Quando Camilo chegou,
acompanhado pela rapariga, não avistou, de longe, a figura do Jorge. Aproximou-se, inquieto. Mais perto,
deparou afinal o rapaz, na mais surpreendente das atitudes: Jorge estava
estirado no banco e dormia profundamente!
Toda a existência do romancista
foi marcada pela tragédia. O destino não lhe deu a oportunidade das alegrias. Entre
tristezas e ódios, perseguições e doenças, viu defluir a sua vida atribulada.
Só na velhice o sofrimento o derrotou, quando Camilo, cego e doente, encerrou
com uma bala a sua jornada sobre a terra.
Ao sentir a vizinhança da
cegueira, não abandonou Camilo o seu ofício de escritor. Com uma pala sobre os
olhos e a lâmpada acesa durante o dia, escreveu em, A Corja e no Eusébio Macário
algumas das grandes páginas da novelística portuguesa. E o curioso nesses dois
romances é que ambos representavam uma inovação na obra do romancista.
Vindo de uma geração romântica, o
escritor assistira, subitamente, a eclosão vitoriosa do realismo. Eça de Queirós
passava a ser o escritor da moda. E contra Camilo voltavam-se os críticos,
apontando-lhe nos livros os defeitos literários que, anos antes, tinham sido
admirados como qualidades.
Camilo, então, deliberou dar a
essas críticas a mais inesperada das respostas. Já velho, quase cego, sentou-se
à mesa de trabalho. A sombra ia-se avolumando nas suas retinas fatigadas. O sol
entrava pela casa, banhava-a de luz, mas o escritor já não percebia o contorno
dos objetos. O clarão da lâmpada, que era o seu companheiro de vigílias noturnas,
passou a acompanhá-lo durante as horas do dia. Durante algumas semanas, o romancista
escreveu. À proporção que a pena deslizava pelo papel, o escritor alterava inteiramente
os seus processos de composição. Em vez de simples pinceladas breves na
descrição de uma paisagem, recorria à minúcia, referindo-se a todos os objetos,
aos pormenores mais destituídos de importância. Em vez dos diálogos românticos,
jogava na página as falas naturais, copiadas da oralidade do povo.
Foi assim que surgiram os
romances realistas com que Camilo Castelo Branco encerrou o seu destino de
criador de tipos e fixador de sensações.
Na dedicatória do Eusébio Macário, Camilo Castelo Branco,
dirigindo-se a uma pessoa de suas relações, declara que foi uma pergunta dessa
pessoa que o fez escrever o livro: "Perguntas-me se um velho escritor de
antigas novelas poderia escrever, segundo os processos novos, um romance com
todos os "tics" do estilo realista. Respondi temerariamente que sim e
tu apostaste que não. Venho depositar no teu regaço o romance, e na tua mão o
beijo da aposta que perdi". Camilo não perdeu a aposta, como declara nesse
trecho. Ganhou-a, realmente. E seus livros, escritos depois do desafio, mostram
a genialidade do romancista que fixou não somente as emoções mais violentas da
prosa portuguesa, mas também as gargalhadas mais sarcásticas que já se ouviram,
depois de Cervantes, na literatura da Península Ibérica.
Qualquer que fosse a escola ou o
processo de composição de novelas, o escritor não se deixava diminuir ou
apagar. Romântico ou naturalista, sentimental ou irônico, aplaudindo ou
combatendo, Camilo Castelo Branco era o escritor do mesmo porte, dominando os
mistérios da língua portuguesa e fazendo-a submeter-se-lhe ao gênio. Nem antes
nem depois de Camilo apareceu um outro escritor capaz de superá-lo nesse
domínio. Pode-se dizer, numa imagem, que ele a dominou com uma força hipnótica,
compelindo-a a entregar-se-lhe em todos os seus segredos e em todos os seus
recursos.
E é por esse aspecto que tem de
ser admirada, principalmente, a obra camiliana.
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JOSUÉ MONTELLO
JOSUÉ MONTELLO
Revista Ilustração
Brasileira, março de 1945.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2020).
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