5/30/2020

Como ela o amava! (Conto), de Camilo Castelo Branco




COMO ELA O AMAVA!
Aos 24 de agosto, na povoação chamada Cavês, cuja ponte, sobre o Tâmega, estrema pelo norte as duas províncias do Minho e Trás-os-Montes, celebra-se a festa de S. Bartolomeu, santo gravemente infesto a Satanás. Vêm aqui, de muitas léguas em volta, dezenas de criaturas obsessas. E para notar que raro homem ali vá incubado de demônio. As mulheres é que, por cima de muitas outras penas, sofrem o dissabor de serem visitadas pelos espíritos infernais, caso único, a meu ver, em que os sobreditos espíritos se mostram espirituosos.
É de saber que o demo tem caprichos sujos; e nisto, como em muitas outras coisas, parece homem, com ressalva do leitor. A legião deles, que se entranhou na vara de cochinos, era indecente. S. Jerônimo, na vida do beato Hilarião, conta de um formidável demônio que se alojou num camelo, o qual, levado à presença daquele santo, urrou, caiu, e desfez-se do sevandija que o incomodava. O mesmo conta frei Luís de Sousa de um urso possesso, que, ao sinal da cruz de São Bartolomeu dos Mártires, caiu, estrebuchou, e morreu. Também se mete nos legumes o maldito! O mesmo santo farejou-o nuns feijões fradinhos. Já é condição mui rasteira, ou muito má vontade aos feijões em ódio aos frades!
Afirmam insigníssimos autores que há seis espécies de demônios: ígneos, aéreos, aquáticos, subterrâneos e lucífugos. Anda a gente cercada destes malandrins, que zombam da polícia, e fazem praça do seu despejo até ao escândalo de se meterem nela!
A mim, pois, não me espantava o grande concurso de mulheres endiabradas que vi na romaria de São Bartolomeu, em Cavês. Do usurpado senhorio de algumas direi que me fez inveja a besta imunda! Eram desempenadas raparigas de Barroso, escarlates e possantes como as matriarcas do gênero humano; pulsos de ferro, olhos coriscantes, e formas tão esculturais de beleza antiga, que eu fiquei cismando se o demônio desengraça com as raças adelgaçadas, e vai às montanhas procurar corpos com capacidade de o receberem. Ainda bem que vai. Se assim não fosse, a sala de baile havia de ser um pandemônio!... E quem sabe se é? O regirar vertiginoso dos bailados não parece coisa macabra, doidice satânica, vórtice em que as almas vão remoinhando até caírem nas fauces do dragão? Eminentes sábios e santos estão comigo.
Ouçamos o congregado Bernardes:
“Que o que baila e dança tem parte de louco e furioso, basta vê-lo de fora para confessá-lo. Aqueles mesmos movimentos do corpo, tão vários, tão ligeiros, tão violentos, tão afetados, estão indicando que o siso está movido algum tanto do seu assento.”
E ajunta:
“...Bem certificados podemos ficar de que os bailes, danças e saraus costumam trazer consigo muitos pecados. A não ser assim, nem os demônios insistiram tanto em os persuadir...”
São Valeriano na Homilia , De otiosis verbis, diz que as danças são laços do demônio que ajudam a dar muitos garrotes. E o Salmo 139, quando diz caput circuitus eorum quer dizer que o diabo é o cabeça das reviravoltas de um baile.
Logo: os bailados são diabruras.
Mas, enfiando outra vez o conto, gentis mocetonas eram aquelas energúmenas que eu vi na igreja de Cavês, em 1842. Há que anos isto vai!... Naquele tempo, até as mulheres com espírito ruim me pareciam boas.
Voltei lá no ano seguinte, armado de figas que espantam maus ares, e nôminas e amuletos refratários ao demônio.
Na aldeia, onde eu então estudava latim, correu a nova de se terem desafiado para a romagem de S. Bartolomeu os valentes de dois concelhos inimigos, desde muito enrixados e aprazados para ali. Um morgado, meu vizinho, de nome José Pacheco de Andrade, filho do antigo capitão-mor de Basto, Serafim dos Anjos Pacheco de Andrade, oito dias antes, mandara demolhar em poças um braçado de paus de carvalho, com o fim de lhes dar elastério, e cingirem-se melhor com as costas das vítimas. Estes preparatórios aqueciam-me o ânimo belicoso, posto que os chibantes da terra avisadamente se rissem dos meus quinze anos.
Por nove horas da noite do dia 23, saímos em malta, caminho da ponte de Cavês, uma légua distante. Por volta de onze horas, fizemos alta numa aldeia, chamada Arosa, convizinha dos montados por onde se estendia o arraial. Ali reuniu-se conosco uma estúrdia, que vinha dos lados de Cerva, e nesta os mais graúdos brigões da comarca, homicidas igualmente impunes que arrogantes, e espécie de barões feudais, a cujas barbacãs não ousavam chegar as justiças del-rei. A cantadeira da estúrdia era uma rapariga de dezoito anos, sécia e talhada a primor, carregada de ouro, mas ainda assim leve como uma alféloa, saltando quando não cantava, rindo a escâncaras quando não saltava, linda como as dríades dos córregos, alegre como a felicidade das serras. Oh! que moça! Que legião de tentadores demônios ia nela!
O morgado Pacheco de Andrade abraçou o maioral da turba, e concertou o plano da batalha.
Dizia o de Cerva:
— Eu quero-me ver peito a peito com o Vítor de Mondim! Um de nós há de ficar escutando a cavalaria.
— Que tens tu com ele? — perguntou o morgado.
— Tenho que ele conversou dois anos com a Isabelinha do Reguengo; depois ela deixou-o à minha conta, e voltou-se para mim. E vai ele, na feira de São Miguel, caiu sobre mim, e mais vinte dos seus. Fiz face a todos, enquanto o pau me não estalou na cabeça de um. Depois caí debaixo de um bosque de estadulhos, e estive à morte. Aqui tem o senhor morgado o que eu tenho com ele.
— A moça vale a pena?
— É esta que está a cantar.
— Guapa rapariga!... Tens razão, Lobo!
— Já correu o primeiro pregão dos banhos.
— Casas com ela?
— É a melhor lavradeira do povo, é de cara ninguém no concelho lhe deita água às mãos.
— Então será bom que te poupes, Lobo! Nada de morrer!...
— Que tem lá isso? Se morrer, já não preciso casar. Morra o homem e fique fama!
A este tempo, cantava a Isabelinha do Reguengo:
Quem quiser cantar comigo
há de ter no peito amores;
amam as aves cantando
entre arvoredos e flores.


E o competidor respondia:

Entre arvoredos e flores
já te eu vi, linda pombinha,
deixei-te ir sem te dar fogo,
que eras doutro, e nenja minha.

O Lobo de Cerva ouviu esta copla e franziu a sobrancelha, envesgando os olhos ao cantor; depois foi à beira de Isabel, e disse-lhe:
— Não cantes mais.
— Por que, João?!
— Não cantes mais, faze-me isso... Oiço cantigas que me bolem cá no interior.
— Pois não canto. Vamos conversando — disse ela com alegre condescendência.
À meia-noite entrámos no arraial. Já o tiroteio tinha rompido das duas margens do Tâmega. As balas assoviavam nas ramagens de carvalheira onde se ajuntavam os caudilhos em conselho de guerra. Nenhum romeiro pacífico já se metia à ponte. Os atrevidos agrupavam-se nas extremidades; os da esquerda esperavam a ronda de Cerva, os da direita a de Mondim. Na ponte passeavam uns doze soldados de infantaria, idos de Guimarães; pobres homens de quem os contendores não faziam caso nem conta. Os tiros, pelo arder da escorva, viam-se romper dos altos das matas fronteiras. A tropa estacionara na ponte, encarregada de evitar o choque das duas rondas inimigas.
Ora eu, prevalecendo-me da inofensiva presença dos meus anos, desci à ponte, e atravessei-a como coisa que ninguém vira. Fui direito à igreja observar a luta de S. Bartolomeu com o diabo. Era isto principalmente que me chamava.
Quando cheguei, vi simplesmente cinco demoníacos, amarrados por cinquenta braços de pujantes barrosãos, enquanto o santo, de bom tamanho e de pedra, era levado da cabeça de uma para a das outras energúmenas. O demônio rabiava nelas desencabrestadamente, quando o milagroso granito lhes pesava. O padre levantava a voz também enfurecida, e insultava desabridamente o inimigo do gênero humano, obrigando-o a ir esconder sua derrota nas profundezas do Inferno. As raparigas desincubadas caíam sem forças no regaço das mães chorosas, arquejavam, iam-se a pouco e pouco restaurando, e erguiam-se afinal sãs, para irem depor no altar do santo o voto, e rodearem sobre joelhos a igreja.
Disseram-me que, passadas algumas semanas, todas estas moças casavam com os sujeitos que o demônio respectivo de cada uma tinha declarado.
Que ofício adota o diabo às vezes!... Assim mesmo é o mais útil que eu lhe conheço.
***
Quando volvi à ponte já não pude romper a mó de povo que se baldeava de uma a outra margem do caminho, e se desfazia em filas desordenadas, as quais pareciam serpentes negras a colearem pela ribanceira acima.
Tinha começado a luta.

A ronda de Cerva avançava da parte d’além; a de Mondim, recebendo aquele movimento como sinal de batalha, avançou também. Ribombavam os zabumbas de ambos os lados, e guinchavam as requintas por sobre a vozearia da tropa, que se esforçava em evitar o encontro, de baioneta calada.
O alarido das mulheres e rapazio de um e de outro lado retinia nos ecos das margens penhascosas do Tâmega. As fuziladas relampagueavam entre os matagais. A vertigem do terror estendera-se a todo o arraial. Diríeis que os demônios desalojados dos corpos das mocetonas, exasperados de raiva satânica, tomaram à sua conta fazer ali um inferno provisório, mesmo nas barbas de São Bartolomeu!
Ouvi o retintim das baionetas sacudidas dos seus engastes pelos paus certeiros dos barrosãos, bandeados na hoste de Mondim. Divisei os doze soldados espremidos entre as multidões inimigas. De repente os de Cerva fizeram pé atrás; os de Mondim também, e por momentos reinou um silêncio, que devia ser como a serenidade de um céu torvo de borrascas na intercadência de dois raios. Que suspensão fora aquela? Cingi-me com a guarda da ponte, e cheguei ao meio. Avizinhei-me do primeiro grupo dos d’além, e ouvi dizer que, no afogo da briga, Isabel do Reguengo se lançara entre as vanguardas dos combatentes, e bradara: “Matem-me primeiro a mim!” E, dito isto, cruzara os braços.
Vítor de Mondim reconheceu-a, clamara aos seus: “Alto, meus rapazes!” e o Lobo de Cerva, cobrindo-a com o seu argolado de cobre, exclamara: “Olhai que é minha noiva!”
Assim se explicava o improviso regresso de cada exército aos seus arraiais. Caso digno de memória!
É, pois, certo, que Vítor de Mondim lhe queria muito ainda. Que milagre! Dois anos a vê-la todos os dias santificados, e andar duas léguas para vê-la, duas léguas tão queridas na ida, e outras duas tão longas e saudosas na volta!... Porque assim deslealmente o deixaste, Isabelinha do Reguengo? Porque havias de ser tu mulher como tantas? Que átomos da peste das cidades coavam em tua alma, ó virgem dos arvoredos?
Fui onde estava a gente de Cerva. Isabel comia cavacas, e repartia delas com o Lobo, que ensopava um lenço de seda em camarinhas de suor. Uns pimpões estavam encostados aos paus, cruzando com eles as pernas, outros emborcavam grandes pichéis e canecas de vinho. O meu vizinho morgado José Pacheco de Andrade empanava a cabeça partida, e desequilibrava as pernas, não já por causa do terreno, senão que o vinho desmentia nele o característico humano da posição vertical, conquanto o meu vizinho, mais que nenhum outro corpo, com grande glória de Newton, pendesse ao centro da Terra.
Aí por volta das três horas vieram parlamentários d’além, propondo a passagem livre das rondas de parte a parte. O morgado tomou a si o encargo de responder, e tartamudeou:
— Não há convenções! O mundo acaba-se aqui hoje!
Disse, e deu ares de se acabar primeiro que o restante do mundo. Cambaleou floreando o cerquinho elástico, tropeçou no próprio pau, e caiu na calçada, que, porventura, a fantasia rica e ardente lhe afigurou almofadada com toda a flacidez convidativa de um longo sono.
Os parlamentários foram repetir com gravidade as palavras do ébrio. Rompeu de lá temerosa grita, e logo o tiroteio.
Lobo depôs o varapau, e pegou da sua clavina de dois canos. Isabel segurou-o pelos alamares de prata da jaqueta, rogando-lhe que se aquietasse. O bravo, que seguia a máxima do “morra o homem e fique fama” sacudiu de si a moça, e bradou:
— Rapazes! à ponte!
Ergueram-se todos, e o próprio morgado lá das trevas espessas da sua modorra ainda rugiu:
— A eles!
Os de Mondim, quando ouviram o instrumental, avançaram à entrada da ponte. A passo igual iam ganhando terreno uns e outros.
Uma voz estridente se fez ouvir por sobre a algazarra dos brados e toada da música. Era Vítor de Mondim que bradava:
— João Lobo de Cerva!
Lobo fez calar os seus, e respondeu:
— Quem me chama?
— É Vítor de Mondim.
— Aqui estou.
— Se és homem, sai sozinho, que eu também saio ao meio da ponte.
— Nunca o diabo te mostrou homem mais homem! Aí vou.
Isabel lançou-se-lhe ao pescoço, dando vozes de aflição e ternura. E ele repeliu-a com desamor de inimigo, exclamando:
— Que diabo me pedes tu, mulher? Queres que eu caia aqui morto de vergonha?!
E eu estava de ângulo a espreitar, como um santo bispo de Sevilha diz em seus cantares, o qual santo, segundo modestamente confessa, espreitava de ângulo o batalhar de godos e sarracenos.
Senão quando, os dois paladinos, adiantados de suas imóveis coortes, param a vinte passos, com as clavinas aperradas.
— Não há de ser tua nem minha! — disse Vítor.
— Tua, por Deus te juro que não será! — respondeu Lobo.
E, a um tempo, desfecharam; e, a um tempo, bateram em terra os dois moribundos arquejantes.
Que horror de grita restrugiu então! Que frenesi de espedaçarem-se conglobou em feroz abraço os dois campos! Era um segundo duelo de homem para homem com cem braços. Os de Mondim levantaram o cadáver de Vítor, e defenderam-no; os de Cerva, cegos de furial vingança, não viram que os outros remessavam ao Tâmega o cadáver de João Lobo.
Isabel tinha caído como fulminada pelo relâmpago das escorvas. Passaram por cima dela os seus parentes e amigos a vingarem-lhe o noivo. Pisaram-lhe o peito, onde já não havia coração que sentisse a dor. E eu aproximei-me, reconhecia-a entre a multidão, e pedi que me ajudassem a tirá-la da ponte.
Assim se fez. Deram-lhe um encosto sobre as caniçadas de um carro de fruta, e rodearam-na algumas mulheres temerosas que, pouco depois, a desampararam, fugindo ao silvo das balas.
Eu tinha ido ao longo da ponte, na aberta em que os de Mondim retiravam a segurarem da represália o cadáver do seu chefe.
Quando voltei, ao nascer do Sol, fui às caniçadas, e não vi Isabel. Perguntei por ela, e disseram-me que tinha fugido como doida.
Por ambas as margens do Tâmega se alinharam duas fileiras de homens, rebuscando o cadáver de João Lobo. Palmilharam meia légua de caminho fragoso, sem o encontrarem. Volveram desanimados, cuidando que o cadáver fora ao fundo, e lá encalhara na penedia, ou se engastara nas raízes dos salgueiros. Os melhores mergulhadores bateram todas as cavernas conhecidas. Perdidas forças e esperanças, volveram de novo à ira, e recobraram alento para se vingarem.
Enquanto a raiva os reacende, e o arraial fica abandonado às correrias dos valentes e dos ébrios, vamos encontrar Isabel, sentada na margem esquerda do Tâmega, sobre uma rocha que se debruça a cavaleiras da corrente.
Tem o rosto entre as mãos, e os olhos cravados na espuma do jorro de água precipitada em bacia de fragas. Assim está desde que o Sol nasceu, o Sol ardente de 24 de agosto, que lhe cai a prumo sobre a cabeça.
Que espera ali aquela mulher, como empedernida pela dor?
Que pensam dela uns pastorinhos que da serra fronteira lhe perguntam que faz ali?
Não os vê nem ouve.
Espera o resvalar do cadáver do noivo no rolheiro donde não descrava os olhos pávidos?
O Sol inclina já ao poente, e ela cerra as pálpebras, e cobre-as com as mãos, baixando a cabeça ao regaço.
Talvez que o fogo do céu lhe houvesse calcinado o cérebro, e os lampejos da torrente a cegassem!
A rocha em que Isabel está é puída e resvaladiça.
Instantes de desmaio bastarão a despenhá-la. Um ancião, que d’além a vira, desde a madrugada até sobre a tarde, vadeou o Tâmega nas poldras, chegou à raiz da rocha, e disse:
— Ó cachopa, que fazes aí?
Isabel estremeceu e circungirou os olhos, esfregando-os.
— Que fazes aí, moça? — tornou o velho.
— Estou à espera do meu defunto — respondeu Isabel.
— Do teu defunto!? Então ele vem pelo rio!? Querem vocês ver que tu eras mulher do Lobo de Cerva?... Eras ou não?...
— Havia de ser... — disse Isabel a grandes brados, erguendo-se de golpe — havia de ser!... havia de ser!...
— Desce cá para baixo, criatura, que o mal da morte não tem remédio. Vem daí que eu dou-te agasalho, e amanhã irás para os teus. Olha que tu malhas ao poço, mulher. Deus te defenda, que morres!
Neste momento, Isabel abordara mais à aresta do penedo.
O velho, que não podia trepar à rocha escorregadia, gritou pelos pastores d’além. A moça pôs as mãos em oração; e, depois, tapando os olhos despenhou-se!
Antes de baquear-se na refervente cachoeira da bacia, já tinha abolado o crânio num ângulo da rocha.
Os pastores esperaram o cadáver num remanso de água, e ali o velaram, durante a noite, aguardando que a justiça fosse alevantá-lo.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).

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