A FORMOSA
DAS VIOLETAS
Júlio Janin,
no folhetim do Jornal dos Debates, de
30 de março do corrente ano, escreveu o seguinte:
“No
ano da graça de 1836, o mês de abril correu aprazível e delicioso; e no mês de
maio ressoaram canções que farte. Ora, a ponto de expirar o mavioso abril e
nascer o maio, (apenas são volvidos vinte e sete anos e três revoluções!) as
multidões afanadas e curiosas premiam-se contra o vestíbulo do teatro da Porte-Saint-Martin. O já popular e
glorificado autor de “Henrique III”, de “Antony”, de “Ricardo de Arlington”, da
“Torre de Nesle” e de “Ângelo” tinha, naquela noite, em cena um Mistério, em
que figuravam anjos e demônios. Muitos mancebos daquele tempo, agrupados no
pórtico do teatro, cediam o passo às turbas azafamadas, recreavam-se de vê-las
assim entusiastas, e notavam a meia voz os homens conhecidos, os homens
célebres, uns que começavam, outros que iam no termo da sua carreira. Senão
quando, todos os olhares confluíram sobre um magnífico trem, uma berlinda de Erhler,
arreada à Brune, e tirada por dois enormes urcos ingleses, saídos das
cavalariças de madame la Dauphine. Um corpulento cocheiro, e um espadaúdo
húngaro de sete palmos de altura, afora o penacho, todo broslado de galões
doirados, completavam a equipagem que parou rápida à porta do teatro. E abrindo
logo o keiduque a portinhola, e
baixando com estrondo os degraus da carruagem, viu-se apear um elegante moço. Não
tinha ainda trinta anos; trajava com apontado esmero; de gravata branca e luvas
amarelas; estatura corpulenta e belamente conformada, cabeleira anelada, boca
um tanto grande, mas graciosa, olhar ardente, e airosa compostura de semblante.
No braço do mancebo apoiou-se a leve mão de uma dama, juvenil como ele, ansiosa
de volitar por sobre o espaço interposto. Que formosa ela vinha com o seu
vestir de Primavera! Violetas na mão, violetas por adorno do chapéu de palha,
ondulante faixa a tiracolo, calçada à perfeição de botinhas mordorées, viçosa e linda a mais não
ser! A impaciência tirava por ela, e ele caminhava pausado, com aquele ar de
homem que escuta em si a fada benigna da suprema fortuna. Exornavam o peito do
cavalheiro as mais peregrinas cores de pedraria das condecorações e dos
ornatos. Era barão em França, marquês em Espanha, e membro do clube dos
fidalgos em Florença. Dizia-se — e era verdade — que o mais somenos utensílio
dos seus aposentos era de ouro, o seu lavatório de ouro armoreado, doirada a
sua câmara. E contudo, crede-me, se vos apraz, a sensação que ele causou foi a
da admiração simpática, a da inveja, não. Nesta França apontada e embevecida
nas aparições de cada dia, tais como — de manhã, “As Orientais”; depois, “A Carnagem
de Missolonghi” de Eugênio Delacroix; ao meio-dia, os discursos de Thiers; à
noite, a ópera de Meyerbeer; no dia seguinte, um romance de Balzac, uma canção
de Alfredo de Musset... entre nós aquele mancebo tinha de pouco revelado Hoffmann
e os seus contos. Escrevia ele depressa, pouco, e bem. Sabia inglês como um
diplomata, e alemão como um filósofo. Pertencia, naquele tempo, à nascente redação
do Jornal dos Debates, e chamava-se LOCRE
VEIMARS.”
Até aqui Júlio
Janin.
***
Nos arrabaldes
de Londres, em uma quinta de delícias, quantas pode imitar da natureza o
artifício britânico, vivia, naquela época, um português, que a intolerância
política expatriara em 1832.
A fortuna
dava-lhe formosas mulheres para o coração, e desvelados amigos para o espírito
e também para a mesa. O nosso patrício, encarreirado prosperamente no comércio,
entendeu que ao emigrado pobre devia ele desvelos de irmão; e assim, quantos
portugueses se socorriam do seu valimento encontravam franco e inexaurível
aquele coração de ouro, e o ouro das gavetas, cujo quilate é superiormente
apreciado. Os convivas habituais da sua mesa eram um jurisconsulto inglês dos
mais afamados de Londres, e um português de excelentes qualidades, hoje nosso
ministro na corte de Madrid.
Um dia, porém,
os comensais saíram do aprazível abrigo do emigrado, porque eram de mais numas
alegrias, cuja doce poesia está no resguardo e solidão de dois.
O português
fora o preferido daquela formosa das violetas que Júlio Janin recorda no seu
folhetim. Mademoiselle Loewe Weimars, a irmã do barão folhetinista, do marquês
em Espanha, do fidalgo florentino, casara com o nosso patrício, que era, então,
um moço alegre como a felicidade, descuidado do futuro como criança que brinca
entre flores, todo expansibilidade em olhos e palavras de muito bem-querer que
lhe exuberava do coração.
Coração e nome
são ainda os mesmos naquele homem vinte e sete anos depois. Todavia, quem há de
hoje reconhecer o festejado e amado noivo da irmã de Locre Veimars naqueles
cabelos brancos e fronte avincada do jornalista portuense? Aqui vo-lo apresento
agora: estendei a mão àquela mão liberal que beijaram muitos infelizes. Abraçai
José Joaquim Gonçalves Basto, que sentireis bater o melhor e mais infeliz dos
corações!
***
Infeliz! Com
tão próspera monção ao entrar no bonançoso mar da vida?! Amado por aquela
peregrina dama, cujos espíritos cultivados em Paris e Londres competiam com a
distinção de sua beleza?
Infeliz, sim, por
que não? A desgraça, quando assalta de ímpeto os seus prediletos, não respeita
a virtude, nem os anjos, nem o amor. Os mais elevados espíritos, as mais
generosas almas é que ela se compraz de humilhar e rasoirar pelo nível das
baixas e estúpidas condições.
Gonçalves Basto,
volvidos dois anos de felicidade santa na intimidade de esposa e filhos,
achou-se pobre e vencido na luta com insuperáveis calamidades comerciais.
Deixou a Inglaterra,
e voltou à Pátria com sua família.
De repente, os
amigos todos o desampararam, os amigos que se desobrigaram do que deviam com a
infâmia de esquecerem a dívida.
Permaneceu
leal no infortúnio o que se mantivera desprendido na propriedade: era José Vieira
de Carvalho, moço portuense, abastado, instruído, e de nobilíssima índole. Deliberara
este fundar um jornal de camaradagem com o falecido Antônio Bernardo Ferreira,
da Régua, e o atual deputado e insigne industrial, Faria Ribeiro Guimarães.
Fundou-se a Coalisão, jornal de que Gonçalves Basto
aceitou a redação principal e a responsabilidade. Cada qual por sua vez, os proprietários
retiraram-se, declinando sobre o redator o encargo de sustentar o periódico. Gonçalves
Basto fundou o Nacional há dezoito
anos, com os elementos da Coalisão
extinta.
José Vieira de
Carvalho, solteiro, rico e doente, antevendo o próximo termo da vida, anuncia
que a sorte dos filhos do seu amigo está segura nos seus haveres. Morre em França,
Vieira de Carvalho, e o testamento é subtraído.
Na contrarrevolução
de 1846, Gonçalves Basto é nomeado comandante de um batalhão de artistas. Domina
o descomedimento dos seus subordinados, e, no campo, dá-lhes o exemplo da
coragem. Quando o exército espanhol transpôs as raias pelo Norte, as últimas
espingardas que obedeceram às ordens da junta foram as dos artistas comandados
por Gonçalves Basto.
E, neste
entretanto, a família do jornalista, esposa, e três filhos, belos como anjos,
viviam, da gratificação mensal do, comandante: DEZ MIL RÉIS!
Entrou, ao
cabo de dez meses, o jornalista em mais perigosa e sanguenta batalha. Os
caceteiros fardados enxameavam nas ruas do Porto; os partidários da Junta, que
não emigravam, escondiam-se; a cada passo, os mais audazes eram assaltados nas
praças e espancados. José Joaquim Gonçalves Basto está tranquilo à sua banca de
trabalho, ouvindo gemer os prelos, que afrontam a cobardia das autoridades
civis e militares, de cujas mãos os sicários recebem o cacete e o punhal.
O escritório do
Nacional é assaltado por uma malta de
sargentos e soldadesca ébria e furiosa. Gonçalves Basto, Sousa Reis e os
tipógrafos defendem-se com os galeões, e os cobardes fogem a grandes brados
invocando a guarnição.
Alguns amigos
de Gonçalves Basto reduzem-no a dar-se à prisão, para evitar o incêndio da casa
e a carnagem. O jornalista, com alguns dos seus cúmplices de defesa, entram na
Relação.
***
O duque de Saldanha voltou
vitorioso de Lóbios.
Gonçalves Basto
saudou o homem que apregoava a Regeneração.
Eu fui convidado a colaborar no Nacional,
e este foi o periódico mais veemente em apregoar as virtudes do velho general.
Ali, na casa
pia, no salão donde desalojara o conde de Casal, o duque atirou às rebatinhas
empregos, retribuições de serviços fabulosos, lugares diplomáticos, consulados,
escrivaninhas, títulos; mas, a esse tempo, Gonçalves Basto, em vez de ir à casa
pia, estava no escritório do Nacional
encarecendo as virtudes políticas do marechal, e explicando a justiça de suas
liberalidades. Os amigos diziam-lhe: “Vai, não percas a ocasião”; e ele
respondia: “Se alguma coisa mereço, em vinte anos de serviço, a ocasião me virá
procurar.”
Ora, aconteceu
que a ocasião o não procurou. Todos os a amigos da Junta se levantaram; todos
os talentos e capacidades se identificaram com a regeneração: triunfaram em
1851 as ideias de 1846; mas Gonçalves Basto, nomeado cônsul de Vigo pela Junta,
e condecorado na ordem de Nossa Senhora de Vila Viçosa — graça não solicitada
nem rejeitada — esqueceu maiorais da Junta que se bandearam com Saldanha, e
esqueceu àquelas mãos-rotas do dadivoso duque, o qual alegremente lia as
apologias do Nacional.
***
José Joaquim Gonçalves
Basto envelheceu, curtido de lancinantes dores; lágrimas, porém, só duas vezes
lhe vi o rosto lavado delas: foi ao fugirem-lhe dos braços para Deus dois dos
seus filhos. A pobreza cerra-o de perto há quinze anos, e ele como que tem
minas de ouro no coração. É sempre com um sorriso que vos ele diz: “Não tenho
nada.” A desgraça tem estes sorrisos, que são dentro do peito unhas de ferro.
E ela, a
formosa das violetas de 1836,
a irmã do marquês em Espanha, do revelador de Hoffmann,
do diplomata ilustre, há tantos anos morto, na opulência da vida, do nome, e
das esperanças?
Elisa Loewe
Weimars vai, de tempo a tempo, ao cemitério da Foz, onde estão umas flores
plantadas por sua mão sobre as cinzas de um filho. Ali, decerto lhe esquecem as
glórias de Paris e as glórias de Londres. Aquele cômoro de terra é um pregão
contra as vaidades da formosura, flor de um dia requeimada pelo gear de uma
noite e contra as vaidades do talento, flama brilhantíssima que mais escuras
deixa as trevas em redor, quando se extingue.
Ó santa de
todas as dores de mulher, de esposa e mãe! quem saberá contar as tuas horas
excruciantes? Quais almas descerão do teu Calvário com o segredo dos teus
suplícios?!
***
Meu caro Basto,
releva ao teu amigo de dezesseis anos o vir ele falar de teus infortúnios em
face do mundo, que os há de ler, por ser isto dito em folhetim, e ajeitado em
forma de romance. Quando eu entrei nesta via dolorosa das letras, achei-me
contigo. Por força devia ser um desgraçado quem me abrisse as portas deste
inferno. Achei-o nesse tormento de Sísifo, e aí te vejo agora. Rolas o penedo
ao píncaro da montanha, o penedo revolve-se ao fundo da precipitosa ladeira, e
tu lá vais de novo costa acima limpando o suor e as lágrimas. Se às vezes paras
um instante nesse trabalho de forçado, é para contemplares como a estupidez e a
infâmia trazem avassalados os fiscais da república, e como eles sobem arreados
de placas e fitas, enquanto tu vais descendo às margens do rio da morte,
olhando em ti, e pensando que vem perto o dia em que não possa repartir um pão
com a tua família.
Há trinta anos
que sofres e trabalhas por amor da Pátria, meu pobre amigo. Deves ter
quebrantos de angustioso desalento, quando em ti reparas, e não achas um só
homem que te possa dizer: “Eu sofri e lidei tanto como tu, e recebi dos
governos do meu país a retribuição vilipendiosa de tamanho desprezo!”
Luta, meu
amigo; e, quando mais não puderes, pergunta à Providência Divina que mal
fizeste à Pátria para tamanha ingratidão, ou que mal devias fazer aos homens
para eles te recompensarem com benefícios.
Lisboa, 14 de julho de 1863.
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