Das tendências
camilianas
Camilo,
figura máxima da nossa literatura, repisou persistentemente, intencionalmente,
certo assunto que com atenção analisado, deixa aperceber uma vaga finalidade de
revolta.
Acusam-no
de abusar da personagem lorpa do labroste simplório que volta rico e cheio de pose.
Certos,
não viram...
Zurzindo
sem dó o brasileiro ricalhaço,
advindo de Santa Cruz com as aljabas tingidas de pintos, falando ridiculamente, pretensiosamente com o sotaque
carioca, e exteriorizando sempre, ao chegar, suas intenções amorudas — Camilo
deu as primeiras machadadas no palanque podre, onde a sociedade rica se estava
exibindo.
Daí,
talvez, o primeiro passo para a transformação da fácies moral da família
portuguesa, daí, talvez, o magno motivo, porque, a propósito da sua estátua, se
sentiu sempre o peso de uma obstrução
misteriosa, de uma descrença que se adivinha, mas se não enfrenta...
Mas,
não resta dúvida a certos.
Esvurma-se
ainda um cediço ódio à memória do grande escritor: a sua geração já passou, jaz
quase em cinzas no eterno estágio das sepulturas, mas o cáustico ficou sólido
como um monumento e, se contorceu a burguesia censurável do passado, como que
calunia ainda os filhos das personagens vergastadas pelo seu látego de colosso
torturado pelos desgostos e pelas injustiças do meio burguês.
Porém
ele, caminhando impávido e independente, mais agitava a temerosa áspide da sua
ironia.
Camilo
foi, é certo, um crucificado do sofrimento.
Todavia
o grande escritor devia ter sentido a hora de um íntimo regozijo, manejando o
escalpelo da sua verve contundente,
estripando os bubões de certos a supurar ridículo e nauseabundo pus.
Zurziu
os maus na razão direta do seu poder e do seu fausto.
***
Em
verdade, a sua obra não representou, apenas, uma simples transformação;
representou mais: uma agitação superior e calma, uma revolução silenciosa e
forte. Ele procurou com firmeza colocar certo número de criaturas no lugar
devido, mostra-las como eram, crivar-lhes o prestígio com os zagalotes da sua
análise, corroendo a pretensão dum grosso grupo de ricalhaços impudentes que
imaginavam poder comprar o talento a dinheiro de contado com o acrescente da
espórtula de corretagem.
Ocultando
algumas das suas personagens com a mascarilha de nomes fantásticos apontou
indivíduos da sua época, pessoas conhecidas, fatos conhecidos, onde o ridículo
se ajustava como castigo tardo.
Na
sua obra surpreendente há muito de produto da sua imaginação; mas abundam as
descrições de passos, de gentes e locais que arredam dúvidas dos espíritos de
que Camilo seria um gênio mais criador do que analista.
Há
tragédia e lágrimas, emoção e sangue na série, inultrapassada em Portugal, dos
seus volumes; mas, existe nela superabundante o sorriso cáustico que rebentou
tanta rã cheia de vento, reprimiu tanto desejo inconfessável e aniquilou os estranhos
e soberbos ímpetos do ouro ridicularizado.
Molière
amalgamando a comédia com a tragédia e atirando-lhes a flux o seu talento, a
sua fantasia castigou certas castas da sociedade do tempo em que viveu; Zola
analisou os podres de ricos e pobres em águas-fortes admiráveis, insuflando na
escumalha o desejo de vida e de vingança; Rochefort abalou o poder da política
e dos políticos, provando a incompatibilidade do povo com os títeres da nobreza
e da finança; Eça e Ramalho nas Farpas
com a sua mordacidade, trouxeram a terreno muitas gloríolas manchadas; depois,
Fialho zurziu com segurança muito pedante estúpido...
Mas,
Camilo foi maior porque tentou desde mais distante época machucar o despotismo
e sorrir das castas — e assim conseguiu que a arca do peito da sociedade
portuguesa se elevasse num austo mais amplo e respirasse, dentro em pouco, mais
livremente.
Ministros,
nobres, conselheiros e outros que o não eram, mas pretendiam crachás e veneras,
sangrou-os o seu acicate aguçado.
E
a sociedade, rindo da cáfila, se não cavalgou logo sobre ela, pôs-lhe pela
primeira vez o pé no estribo.
Essa
atitude, naturalmente, granjeou-lhe um ódio que não fatiga. Há de extinguir-se
quando esta geração se extinguir, por que como legítima herança, ele
transmitiu-se de pais a filhos. Esse ódio que não se patenteia, circula-lhes
nas veias, nos próprios glóbulos sanguíneos.
É
por esse motivo, já adivinhado por alguns, que eu vejo a consagração póstuma de
Camilo — a consagração condigna — muito longe deste nosso tempo, que será
santíssimo — mas que, para a memória de Camilo, não será ainda o ano de
completa justiça.
Ainda
hoje a sua memória paga as tendências iconoclastas de seu espírito.
---
M. DUARTE LOPES
Livro Memorial: a Camilo Castelo Branco no seu centenário (1925)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
M. DUARTE LOPES
Livro Memorial: a Camilo Castelo Branco no seu centenário (1925)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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