5/25/2020

Luar de Janeiro (Poesia), de Augusto Gil


Luar de Janeiro
____________________
A Coelho de Carvalho
Tout court, porque não há adjetivos 
que não empalideçam ante a claridade dos seus talentos.

Luar de janeiro,
Fria claridade
À luz dele foi talvez
Que primeiro
A boca dum português
Disse a palavra saudade...
Luar de platina,
Luar que alumia
Mas que não aquece,
Fotografia
De alegre menina
Que há muitos anos já... envelhecesse.
Luar de janeiro,
O gelo tornado
Luminosidade...
Rosa sem cheiro,
Amor passado
De que ficasse apenas a amizade...
Luar das nevadas,
Álgido e lindo,
Janelas fechadas,
Fechadas as portas
E ele fulgindo,
Límpido e lindo,
Como boquinhas de crianças mortas,
Na morte geladas
— E ainda sorrindo...
Luar de janeiro,
Luzente candeia
De quem não tem nada,
— Nem o calor dum braseiro,
Nem pão duro para a ceia,
Nem uma pobre morada...
Luar dos poetas e dos miseráveis,
Como se um laço estreito nos unisse,
São semelháveis
O nosso mau destino e o que tens...
De nós, da nossa dor, a turba — ri-se
— E a ti, sagrado ladram-te os cães!
***

SEXTILHAS A UM MENINO JESUS DE ÉVORA
(A João Barreira)

Em Évora vi um menino...
...Que a dois anos não chegava
...Era de maravilhar...
Garcia de Rezende: Miscelânea.
Num convento solitário
De Évora, cidade clara,
Claro celeiro de pão,
Existe uma imagem rara
Obra dum imaginário
Dos tempos que já lá vão...
É um menino Jesus,
De bochechinha brunida
Cor de maçã camoesa,
Mas no seu rosto transluz
Uma expressão dolorida
Que enche a gente de tristeza...
De tantíssimas imagens
Nenhuma vi que mais prenda,
Que maior ternura expanda,
Com suas calças de renda,
Seu vestido de ramagens,
— E coroa posta à banda...
Gordo, nédio, bem trajado,
Deveria ser feliz,
Deveria estar sorrindo;
Mas o seu olhar magoado,
Tão magoado, tão lindo,
Que não o é, bem no diz...
Se não fosse por ser Deus
E o seu poder infinito
Ter sempre que o demonstrar,
Cá na terra e lá nos céus,
Estenderia o beicito
— E desatava a chorar!...
Corre o tempo descuidado,
Passa uma hora, outra hora,
Atrás desta outras se vão
E, quem o vê, encantado,
Sem se poder ir embora
Numa perpétua atração...
Eu entrei com sol a pino.
Pouco depois da chegada
(Pouco a mim me pareceu)
Deixei de ver o Menino...
Não era a vista cansada,
— Foi a noite que desceu...
Mesmo assim lá ficaria
Absorto em muda prece
De quem mal sabe rezar,
Se o sacristão não viesse,
Com rodas de Senhoria,
Dizer-me que ia fechar...
Pudesse tê-lo trazido
E não fosse eu rico, apenas
De fantasias, de esperanças,
Punha-o num nicho florido
Por sobre as camas pequenas
Dum hospital de crianças...
Dum hospital modelar
Sustentado por meus bens,
Entre olaias e roseiras,
Cheio de sol, cheio de ar,
E em que as boas enfermeiras
— Seriam as próprias mães...
A mais ampla enfermaria
Desse escolhido local
De bondade e sofrimento
— Era o fundo natural
Da funda melancolia
Do Menino do convento...
***
BALADA DA NEVE
(A Vicente Arnoso)
Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine
Batem leve, levemente
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim...
É talvez a ventania;
Mas há pouco, há poucochinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...
Quem bate assim levemente
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?...
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu
Branca e leve, branca e fria...
— Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e quando passa
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho...
Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezitos de criança...
E descalcinhos, doridos...
A neve deixa inda vê-los
Primeiro bem definidos,
— Depois em sulcos compridos,
Porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Por que lhes dais tanta dor?!...
Por que padecem assim?!...
E uma infinita tristeza
Uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza...
— E cai no meu coração.
***

TOADA PARA AS MÃES ACALENTAREM OS FILHOS
(A Berta Cayolla Gil Viana, minha sobrinha)

Oh Desgraça! vai-te embora,
Que esta linda criancinha
Andou no meu ventre e agora
Trago-a nos braços. É minha!...
Do berço, segue-me os passos;
Onde eu vou, seus olhos vão...
E quando a aperto nos braços
— Abraço o meu coração.
Quando o seu choro receio,
Embalo-a, faço que aceite
A alegria do meu seio
Na brancura do meu leite...
E quando assim não descansa,
Que tristezas me consomem!
— Mas antes chore em criança
Que depois, quando for homem...
Se ao dá-lo ao mundo sofri
Tormentos, ânsias mortais,
Desgraça, vai-te daqui,
O que pretendes tu mais?!
Bate as asas, mas ao voares,
Não me apagueis esta estrela.
Se alguém daqui precisares,
— Aqui me tens, em vez dela!
Tocam às ave-marias.
Foi-se o sol. Não vem a lua.
Luzinha que me alumias,
Que sorte será a tua?...
Riquezas tenhas tão grandes,
E tal bondade também,
Que ao redor donde tu andes
Não fique pobre ninguém.
Que a todos chegue a ventura:
Toda a boca tenha pão,
Toda a nudez cobertura,
Toda a dor, consolação...
Mas se o ouro é mau caminho,
— Antes tu venhas a ser
O pobre mais pobrezinho
De quantos pobres houver.
Iremos por esses montes
Altos e azuis, como os céus...
Que onde há frutos e onde há fontes,
— Está a mesa de Deus!
E, quando a neve cair
E as seivas adormecerem,
Iremos então pedir...
(Aceitar o que nos derem!)
Andaremos à mercê
Dos gênios bons, e dos falsos,
Léguas e léguas a pé,
Rotinhos, magros, descalços...
E onde houver urzes e tojos,
Pedras que rasgam a pele,
Porei o corpo de rojos
— Passarás por cima dele!
Dorme, dorme, meu menino,
Foi-se o sol. Nasceu a lua.
Qual será o teu destino?
Que sorte será a tua?...
Se um crime tens de fazer,
Antes fique vago um trono,
Antes um palácio a arder,
— Do que uma enxada sem dono...
Se, porém, no teu destino,
Há tão cruentos sinais,
Dorme, dorme, meu menino,
— Não tornes a acordar mais!
***

O NOSSO LAR
(A Antônio Arroio)

Sonhar a vida é apenas entretê-la.
Partamos dela para nós, senão
Lá vai o coração para uma estrela
E fica a gente sem o coração!
Guedes Teixeira: Esperança Nossa
Quem vir — como eu os vejo — decorrer
Anos e anos duma vida rasa
Em miseráveis quartos de aluguer,
Frios no inverno e no estio em brasa,
— A um amor sonhado de mulher
Alia sempre o sonho duma casa...
O aspecto duma casa raro mente,
A cor, as linhas duma frontaria
Dão logo a perceber nitidamente,
Melhor do que um vizinho o contaria,
O gênio e a índole da gente
Que nela tem o lar, a moradia.
Vejam esses cotages tanto em moda
Entre os ingleses e os capitalistas,
Com grades no jardim, a toda a roda...
Impenetráveis às alheias vistas...
Não abrem nunca uma janela toda...
São mudos, graves, individualistas.
E aqueles caixotões de pedra e cal
Que surgem ao formar-se um bairro novo,
No constante engordar da Capital,
(O que eu, aliás, muito aprecio e louvo...)
— Não mostram bem, com o seu ar banal,
A falta de caráter deste povo?
Quando uma santa e pobre rapariga,
Em cujo olhar se abranda o meu sofrer
E a cujo coração o meu se liga,
Puder chegar a ser minha mulher,
Eu quero então que a nossa casa diga
Bondade e alegria de viver.
Terá um só andar. Grandes alturas
Causam vertigens, trazem ambições.
Os sonhos de riqueza e de aventuras
Enchem as almas de desilusões.
A felicidade vem às criaturas
Da pacificação dos corações.
As portas sem degraus. Que sejam rentes
Da terra. Portas largas e rasgadas,
Convidativas, francas, atraentes;
Ao rés da terra, para as aleijadas
E os trôpegos velhinhos indigentes
Se não cansarem a subir escadas...
Amplas janelas para a natureza.
Que o sol na sua clara irradiação
Dissipe através delas a tristeza;
Amplas — e baixas. Quem precise pão,
E o vir da rua sobre a nossa mesa,
Que estenda o braço, que lhe lance a mão...
Ao lado um horto e um jardim fragrante,
Sem grades aguçadas para o céu.
A grade é agressiva, hostilizante,
E sempre a impressão cruel me deu
Dum dono que bradasse ao caminhante:
— Tudo isto aqui é meu, somente meu...
Sem gradeamento. Um murosito apenas
Revestido de rosas de toucar,
De aréolas, de glicínias, de verbenas.
Muro donde os que forem a passar
Vejam lilases, cravos, açucenas...
— E a paz, a doce paz do nosso lar.
***

O QUE O FOGO POUPOU DUM POEMETO QUEIMADO
(Ao Cónego Manuel do Nascimento Simão)

I

Escrevo em testamento este poema
Que ele tenha, na angustia com que o ligo,
O brilho rutilante duma gema
Achada nos farrapos dum mendigo...
Ao vesperal crepúsculo da vida
E sob o olhar da morte é que o componho;
Erguendo assim, por minha despedida,
O último escalão dum alto sonho.
Nesse degrau que dentre os soes dispersos
Há de atingir a cúpula dos céus,
Direi ao mundo os derradeiros versos,
Porei o coração nas mãos de Deus!
E as mãos de Deus que os astros têm guiado
Como se leve pluma cada um fora,
Hão de o sentir pesar, solicitado
Pelo lugar da terra onde ela mora...

II

...Sei lá pintar!
Se eu soubesse pintar, era pintor.
Guedes Teixeira
Na mais alta cidade portuguesa
Nasceu, para abrandar meu fundo mal,
A mais santa, a mais cheia de pureza
Das moças deste lindo Portugal.
Os seus olhos são tristes e sugerem
Todo um passado de resignação.
São tristes, certamente por não verem
O rosto incomparável onde estão...
A voz é clara como as açucenas
E dolorida, cândida, modesta.
É dolorida, porque sente penas
De abandonar a sua boca honesta...
O riso, que é em nótulas delidas
Vibra em seus lábios tão rapidamente
Como um beijo de amor, às escondidas,
Na curva duma estrada em que vem gente...
A mão dela, uma vez, pousou na minha;
Pareceu-me ao sentir-lhe a comoção,
Que era o seu próprio coração que eu tinha
A palpitar dentro da minha mão...
Se passa, às tardes, e de traz caindo,
O sol abrasa os longes da paisagem,
A sombra que em sua frente vai seguindo
É a luz— a abrir-se, para lhe dar passagem...
Se passa, acalma os corações magoados
Como outrora as parábolas de Cristo
Acalmavam a dor aos desgraçados.
Acalma os corações?! Não... não é isto.
As estrofes de amor, a quem o sinta,
Dão um trabalho cheio de tormento;
O tenebroso liquido da tinta
Apaga, rouba a cor ao sentimento.
Quis celebrar dum modo original
As finas graças do seu corpo. Errei-as.
Oh Forma! És como um fato de hospital.
Palavras! Sois a nevoa das ideias...
***

MELODIA CONFIDENCIAL
(De Albert Samain)

Num andamento
 Discreto, lento,
Mal se ouve o pêndulo lavrado e antigo.
Vamos vogando
 No lago brando
E sem limites do silêncio amigo...
O último e cavo
 Acorde do cravo
Ficou vibrando exclamativamente.
E, em espiral
 Ascensional,
Cingiu-nos num abraço elanguescente.
Na alcatifa macia
 Entrou na agonia
Uma rosa sedenta e abandonada,
E a ambos nos invade
 A mística vontade
De entrar na morte, no não ser, no nada...
Com seu dossel vermelho
 Forrado de ouro velho,
Que evoca velhas eras de esplendor,
O leito pesado,
 Como um deus concentrado,
Remembra obscuramente o nosso amor...
Na atmosfera morna
 O teu corpo entorna
Um perfume sutil, sensual, complexo,
Aroma inapagável,
 Filtro informulável
Gerado à chama clara do teu sexo.
Teus olhos silentes
 E transparentes
Têm, no fundo, verdes melancólicos,
E as brasas do fogão,
 Já quase extintas, dão
Clarões hipnotizantes e simbólicos...
Amemo-nos assim
 Com um amor sem fim,
Verdadeiro na carne e nas ideias;
Pelos dedos enlaçados
 Sejamos penetrados
De amor, até às mais miudinhas veias.
Em êxtases intensos
 Quedemo-nos suspensos
Por sobre a terra irônica e brutal
Sem nada saber,
 Sem nada ver,
— Numa vida isolada e musical...
Não fales. Não?
 Ou se o fizeres, então
Que seja de vagar, muito baixinho,
Numa toada, leve
 Como o hálito breve
Duns lábios de anjo numa pele de arminho...
***

O PASSEIO DE SANTO ANTÔNIO
(A Columbano)

La fleur des traditions nationales est flétrie. Mais libre a tous de puiser, dans l'herbier cosmopolite des legendes, les admirables pretextes à fiction qu'il recèle.
 (Literature à Tout à L'Heure.)
Saíra Santo Antônio do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.
Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando...
E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.
Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo...
O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.
Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia... o coração no peito.
Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O menino, porém, ouviu e disse:
— Oh Frei Antônio, o que foi aquilo?...
O santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
— Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada...
Uma risada límpida, sonora,
Vibrou com timbres de ouro no caminho.
— Ouviste, Frei Antônio? Ouviste agora?
— Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...
— Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo Antônio de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,
Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
— Se o Menino Jesus pregunta mais,
...Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!
Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: Jesus,
São horas...
 — E abalaram para o convento.
***

UM GRÃO DE INCENSO
(A Lourenço Cayolla)

Entraste com ar cansado
Numa igreja fria e triste.
Ajoelhei-me ao teu lado
— E nem ao menos me viste...
Ficaste a rezar ali,
Naquela imensa tristeza.
Rezei também, mas a ti,
— Que aos anjos também se reza...
Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta.
Como é que tens tanta fé
— E a caridade te falta?...
***

A MÁSCARA
(A Santos Tavares)

Por acaso, parou na minha frente,
De loup e dominó de seda negra,
Uma mulher de olhar resplandecente
E mento breve de figura grega.
Tomei-lhe as mãos esguias entre as minhas...
E os seus olhos doirados reluziram
Como os punhais ao sol, quando se tiram,
Aguçados e frios, das bainhas.
— Máscara, quem és tu?
— E tu quem és?...
— Um homem que te viu e te deseja...
E um riso vago, de desdém talvez,
Floriu na sua boca de cereja.
Ergui-lhe as mãos ascéticas. Beijei-as.
Em vibrações entrecortadas, secas,
Tiniam taças irisadas, cheias.
E uma frase de amor, toda em colcheias,
Vibrava nas arcadas das rebecas.
Levei-a para o vão duma janela.
— Máscara, quem és tu?
— Para que insistes?...
Outro riso subiu da boca dela
Aos olhos enigmáticos e tristes.
E descobriu a face. No capuz
Emoldurou-se um rosto lindo e sério.
Que diferente porém do que eu supus!
A gente nunca deve entrar com luz
Nos divinos recantos do mistério...
***

IN PROMPTUM PASTORAL
(A Amadeu de Freitas)

“Muito vence quem se vence
Muito diz quem não diz tudo,
Porque a um discreto pertence
A tempo fazer-se mudo.”
(Copla do Infante D. Luiz.)
Sob este céu criador
De manhã virgiliana,
Apetece ser pastor
E tocar flauta de cana;
Não, pastor de autos de amor,
De éclogas frias e velhas,
Mas verdadeiro pastor
De verdadeiras ovelhas...
Não conhecer o talento
Nem nada do que se ensina.
Esta dor do entendimento
É pior do que se imagina...
Guiar o meu coração
Num ingênuo cristianismo.
Esta civilização
É cheia de pessimismo...
Comer pão negro, pão duro,
Beber o leite das pearas.
Pão de centeio é escuro,
— Mas põe as almas às claras...
Amar alguma pastora
Com palavras e com obras.
Estas senhoras de agora
São mais falsas do que as cobras...
E ver criar com carinho,
Com cuidados infinitos,
À companheira, um filhinho...
E às ovelhas, borreguitos...
***
MEDITAÇÕES SOBRE TEMAS DO ECLESIASTES
(A Celestino Steffanina)

I

Vaidade de vaidades, disse o Eclesiastes:
vaidade de vaidades, e tudo vaidade.
(Capit. I, v. 1).
Semeador de iniquidades,
Por que é que mandas sobre os teus iguais?!
O mando o que é? Vaidade de vaidades,
Fumo que ao desfazer-se engrossa mais...
Oh minha vista o que é que foi que viste
Cá neste mundo impiedoso e rude?
Que só a vaidade existe — Em todos nós, e em tudo!...

II
(A Israel Anahory)

Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar com palavras.
Os olhos não se fartam de ver nem o ouvido se enche de escutar.

(Capit. I, v. 8).

Palavras são palavras... Nada dizem.
Teias de aranha que jamais impedem
Que as ideias se escapem e deslizem...
Néscios os homens são quando procedem
Como quem a verdade sempre traja
E nunca dela se encontrou despido...
Difícil é... o que mais simples haja
— Quanto mais o que for mais escondido!...
Para que uma verdade vá julgar,
Para que um sentimento vá sentir,
Olhos: não vos canseis nunca de olhar
E vós, ouvidos, não deixeis de ouvir.
Mas por fim
 Nem assim...
O mais profundo pensamento
É sempre insubsistente e aéreo,
Porque a todo o momento
— Se perde no mistério...

III
(A José Barbosa)

Que é o que foi? É o mesmo que há de ser.
Que é o que se fez? É o
 mesmo que o que se há de fazer.
Que é o que foi?
 — O mesmo que há de ser...
A vida é como o passo igual dum boi
Que vem dos campos ao anoitecer;
Com o seu lento e resignado aspecto,
Andou um passo, e logo um outro dá.
Tudo quanto foi feito
 De novo se fará
...

IV
(A Ladislau Patrício)


Os olhos do sábio estão na sua cabeça:
o insensato anda em trevas: e aprendi
que era uma e mesma a morte dum e doutro.
 (Capit. II, v. 14)
O sábio tem os olhos da razão
Além desses que tu na fronte levas,
Oh néscio que sem guia e sem bordão
Vais pela vida a caminhar nas trevas...
(E daí? E depois?
 Se surge um incidente,
 Fere indistintamente
Ou ambos eles, ou qualquer dos dois
...)

V
(A Adelaide Gil, minha irmã)

Todas as coisas caminham a um lugar:
de terra foram feitas e em terra
se hão de tornar do mesmo modo.


(Capit. III, v. 3).
Mas o que é, afinal, a perfeição?
Como é que tudo, oh sábios, evolui
Se as coisas todas caminhando vão
Para um igual e único lugar,
 Se o pó que as constitui
 Em pó se há de tornar
?

VI
(A Eduardo Graça)

Todas as coisas têm seu tempo e todas
elas passam debaixo do céu segundo
o termo que a cada uma foi prescrito.

(Capit. III, v. 2).
Sossega, coração atribulado,
De toda a dor se apaga todo o traço.
Pois quanto ao mundo vem, traz já marcado
O seu tempo e também o seu espaço...
E queira Deus, coração,
 Que esta hora de ansiedade
 E de pranto e de aflição
 — Nunca te cause saudade!...
***

A CANÇÃO DAS PERDIDAS
(A Viana da Mota)

I

Quem por amor se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
— É Maria Magdalena...

II

Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!

III

Meu pai foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora — de pena...

IV

E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce água limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vae...

V

Aquele que me roubou
A virtude de donzela
Se outra honra lhe não dou,
— É porque só tive aquela!...

VI

Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte de água cantante,
Quem te quer, para um bocado.
Quem não quer, passa adiante...

VII

O meu amor, por amá-lo,
Pôs-me o peito numa chaga:
Deu-me facadas. Deixá-lo.
Mas ao menos não me paga!

VIII

Nem toda a água do mar
Por estes olhos chorada
Daria bem a mostrar
O que eu sou de desgraçada!

IX

Como querem ver contente
Este país desgraçado,
Se dão só livros à gente
Nas escolas do pecado...

X

Dormia o meu coração
Cansado de fingimento.
Bateste-me, e vai então
Acordou nesse momento.

XI

Se aquilo que a gente sente,
Cá dentro, tivesse voz,
Muita gente... toda a gente
Teria pena de nós!
***

CARTA A UM RAPAZ SENTIMENTAL

Um mover de olhos brando e piedoso
Sem ver de quê; um riso brando e honesto
Quase forçado; um doce e humilde gesto
De qualquer alegria duvidoso
Um encolhido ousar; uma brandura,
Um medo sem ter culpa; um ar sereno,
Um longo e obediente sofrimento.
Camões
Num quente e perturbante fim de tarde,
Cujo magnético e profundo enlevo
Ainda agora em mim crepita e arde,
Como se fosse a tarde em que te escrevo,
Ergui os olhos distraidamente,
A ver se já brilhava alguma estrela
No côncavo do céu opalescente
— E vi, numa varanda, os olhos dela...
Do episódio que acabo de contar-te
Tão simples, tão banal, que dá vontade,
Para lhe por um bocadinho de arte,
De lhe roubar um pouco de verdade,
Foi que este amor espiritual nasceu,
Nasceu, cresceu e se tornou eterno...
Repara, amigo, como olhando o céu
A gente, às vezes, pode achar o inferno.
Mas quem podia então adivinhá-lo?
O olhar dessa mulher era tão lindo
Que deslumbrado me fiquei a olhá-lo.
Descera a noite. A lua ia subindo...
Era lua cheia e, para mais, de agosto;
Dava em toda a varanda. Assim, eu via
As formas portuguesas do seu rosto
Nitidamente, como à luz do dia.
E cá dentro de mim senti nascer
A dúvida, a incerteza, a hesitação
Sobre o que mais desejaria ser:
Se o noivo dela, se o primeiro irmão...
Uma estrela cadente reluziu
Por sobre as torres da vizinha igreja,
Pensei comigo: Deus o decidiu:
É minha noiva que Ele quer que seja.
Não dizia ventura, mas desgraça,
A claridade do sinal aéreo.
(Na mesma direção da igreja, passa
A rua que vai dar ao cemitério...)
Porém, como querendo agradecer-me
A decisão que atribuíra a Deus,
Inclinou-se de leve para ver-me
E os doces olhos demorou nos meus.
Sob a carícia desse olhar cinzento,
Que ao abaixar-se parecia negro,
O coração que me batia lento,
Mudou o andamento para alegro.
Uma hora decorreu. Outras passaram.
Passaram, foram-se; e naquele enleio
Que tempo os nossos olhos conversaram!...
Estava a noite já em mais de meio.
Vinha dos montes uma brisa ardente.
O céu ganhara tons de azul cobalto.
O luar caía silenciosamente.
Na sombra, os rouxinóis cantavam alto.
Arrependidos, ou então, cansados
De se fitarem com demora em mim,
Os seus olhos piedosos e sagrados
Ao dialogo de amor puseram fim.
Desviara-os; e entre as pálpebras discretas,
Pousara-os nas mãos claras e pequenas,
Como se foram duas borboletas
Voando para duas açucenas.
Ergueu-se. O busto delicado e fino
Tinha os suaves, religiosos traços
Da Virgem num altar. Só o Menino
Faltava na doçura dos seus braços...
Num olhar impregnado de candura,
Disse-me adeus e recolheu. Depois...
A luminosa noite fez-se escura.
Calaram-se na sombra os rouxinóis.
Entrei em casa e quis dormir. Raiara
A madrugada sem que o conseguisse.
Quem um sonho tão límpido sonhara,
Inútil se tornava que dormisse...
Anos felizes neste amor gastei.
Vieram em seguida as horas más.
O que nelas sofri, o que passei,
Um dia, noutra carta, o saberás.
***

MÃOS FRIAS CORAÇÃO QUENTE

Dez da manhã. Vento da serra. Três graus negativos
Mãos frias, coração quente!
Quanta vez isto dizias
Com o teu ar sorridente,
Apertando-me as mãos frias...
Agora decerto o tenho
Num braseiro, num vulcão.
O frio é tanto, é tamanho
Que a pena cai-me da mão...
Queria dizer-te o que penso
E o que faço e premedito,
Mas posso lá ser extenso
Com este frio maldito!
Tu perdoas certamente,
Tu não te zangas, pois não?
Mãos frias, coração quente
— Lá diz o velho rifão...
***

NOIVA
(A João da Silva)

Anda a dor dissimulada
Mas ela dará seu fruto.
Crisfal
Vai ser pedida. Casa qualquer dia.
(Trecho duma carta)
Tive notícias hoje a teu respeito:
“Vai ser pedida. Casa qualquer dia”.
E o coração tranquilo no meu peito
— Continuou a bater como batia...
Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciúme? Nem sequer saudade?!
— E nem ciúmes, nem saudade achava...
Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aqueles grãos de trigo
Que após centenas danos deram pão...
Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o próprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dor nas almas cava fundo?
Causei-te longas horas de amargura,
Não conseguis voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar — lá fica a cicatriz.
À luz dum juramento que traíste
Tu hás de ver-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois...
Ciúmes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu pecado.
Porém, embora a tua falta aponte,
Para mim és a que foste (ou que eu supus);
O sol desaparece no horizonte
— E a gente vê-o ainda a dar-nos luz...
Pode a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas de elevados cumes.
O sol do amor dourá-las-á, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciúmes.
Ciúmes! Ele é que há de tê-los, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.
Versos para te ungirem os ouvidos
E os lábios de anêmica e de santa,
Tão pobres, tão ingênuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.
Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
— E apenas o teu corpo lhe pertence.
***

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE
(A Leo)

Ao charco mais escuso e mais imundo
Chega uma hora no correr do dia
Em que um raio de sol, claro e jucundo,
O visita, o alegra, o alumia;
Pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
Nesta contínua e intérmina agonia,
Nem tenho uma hora só dessa alegria
Que chega às coisas ínfimas do mundo!...
Deus meu, acaso a roda do destino
A movimentam vossas mãos leais
Num aceno impulsivo e repentino,
Sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! Não é um seixo o que esmagais;
Olhai que é — o coração dum homem!...
***

JOANINHA
(A Maier Garção)

Descanse de quando em quando...
Passar assim toda a tarde
Sempre bordando, bordando,
Sem que um momento desista,
Até faz pena! Não lhe arde
Nem se lhe perturba a vista?...
Descanse de quando em quando...
Erga os olhos do bordado
E veja quem vai passando.
O trabalho alegra a gente,
Mas assim, tão aturado,
— Não lhe faz bem certamente.
Erga a carinha tranquila,
Erga esse rosto tão lindo
E veja os moços da vila
A passarem por aqui,
Uns descendo, outros subindo,
— E todos de olhos em si...
Descanse de quando em quando
E veja se escolhe algum;
Já é tempo de ir pensando
Em casar. Não é assim?...
Se não lhe agrada nenhum,
— Diga se gosta de mim.
Desde os começos do outono
Que eu a trago no sentido,
Não como, não tenho sono,
Tudo me dá ralação?
Quer-me para seu marido?
— Diga que sim ou que não...
***

QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM...
(A Cassiano Neves)

Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.
Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.
Chegou-lhes às alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,
— E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a primavera...
***

A PARÁBOLA DO PÚCARO D’ÁGUA
(A Manuel Penteado)

Acreditaram os românticos que a arte residia principalmente na disformidade. Se através das próprias dores descessem às profundas realidades da vida, teriam observado que... o viver do povo encerra em si uma poesia sagrada. Senti-la e mostrá-la não é tarefa de maquinista; para tal, não é necessário juntar-lhe efeitos teatrais.

... O que é preciso é ter olhos para ver na sombra, na pequenez e na humildade, é um coração que auxilie a vista nestes recessos do lar, nestas sombras de Rembrandt.

Michelet: O Povo

Buscava em algum assunto adrede
A versos que inculcassem novidade,
Quando uma intensa e irreprimível sede
Me fez voltar do sonho à realidade.
E pedi água (já se vê) que veio
Consoante é de uso cá por entre o povo
Num púcaro de barro ingênuo e feio,
Servindo-lhe de salva um prato covo.
Bebi o liquido dum trago só;
E dito o “Deus te pague” habitual,
Subi de novo a escada de Jacó
No heroico intuito de escalar o ideal...
Mas o idealismo é como a nevoa ondeante
Que os rios erguem pela madrugada;
O olhar distingue-a, quando está distante,
E da que nos rodeia — não vê nada...
De que serve afinal tentar a gente
Reter, dentro das mãos, fumo de palha,
Se aqui, aos nossos olhos, no existente,
Há tanta coisa que os atraia e valha?...
A água vinda neste vaso frágil
Que um ignorado artista modelou
Num gesto — já mecanizado e ágil —
À força de imitar o que encontrou,
É um assunto cheio de beleza,
Cheio de claro e alto ensinamento.
Assim na branda fala portuguesa
O desse eu, como o tenho em pensamento!...
A água é como a esperança
Que a tudo se sujeita...
Onde quer que se deita
Lá fica humildemente acomodada,
Seja a concha da mão duma criança,
Ou a taça lendária da balada...
Tanto sacia
Num vaso tirreno dos da antiga Roma
(Que um só valia
O rútilo ouro de avaro banqueiro)
Como a que se toma
Na argila porosa,
Alegre trabalho dum simples oleiro...
E é
Até
Bem mais saborosa
No barro suarento
Deixado à janela,
Que num opulento
Copo lavrado
Que seja pertença de rica baixela
E sonho gentil, cinzel fantasista
Dalgum grande artista
Dos raros de agora, ou do tempo afastado...
Bichos humanos, feras em pé,
Sede bondosos como a água o é...
No luzente alcantil da magnitude,
Ou no áspero declive da pobreza,
Nunca cerreis o espírito à virtude,
Nunca fecheis os olhos à beleza.
Que todo o coração,
Desde o sábio de gênio ao cavador,
Seja o Cálix de paz e de perdão
Contendo a água límpida e lustral
Dum irmanado e perpétuo amor...
Agua que limpe a mácula do mal
E mitigue a miséria, a ânsia, a mágoa
Desta cruenta e impiedosa guerra
Em que tantas criaturas se consomem.
Nem só da água
 Que vem da terra
 Tem sede o homem...
Nasce uma fonte
Rumurejante
Na encosta dum monte;
E mal que do seio
Da terra brotou,
Logo o seu veio
Transparente
E diligente
Buscou e achou
Mais baixo lugar...
E sempre descendo,
E sempre a cantar,
Vai andando,
Galgando,
Vencendo,
(Ou tenta vencer...)
Folha, raiz, areia, o que tolher
A sua descida...
Ao brotar da dura frágua
— É uma lágrima de água...
Mas esse humilde fiozinho,
Que um destino bom impele,
Encontra pelo caminho
Um outro que é como ele...
Reúnem-se, fundem-se os dois,
Prosseguem de companhia,
E fica dupla depois
A força que os leva e guia...
Junta-se aos dois um terceiro,
Outros confluindo vão,
E o regato é já ribeiro
E o ribeiro é rio então...
E nada agora o domina
Ao fiozinho da fonte.
Entre colina e colina,
Ou entre um monte e outro monte,
Caminha sem descansar,
Circula através do mundo
— Até à beira do mar
Onipotente e profundo...
Da altura em que estejais (ou vos pareça;
A vaidade é uma amante enganadora)
Que o mais alto de vós se humilhe e desça
Como se humilde e pobre sempre fora...
E que os demais desçam também de todo
O orgulho e mando sobre escravas gentes
Até ao vale, de lágrimas e lodo
Onde a miséria brada e range os dentes.
E como as águas que se vão juntando
E juntas, e cantando, vão descendo,
Reuni o choro derramado, quando
Atravessardes esse vale horrendo.
E o atoleiro que se havia feito
No vale, dantesco, pútrido, sombrio,
Mudar-se-á no irrigante leito
Dum fertilizador e claro rio;
E o rio, andando, andando, há de alargar
— Com biliões de lágrimas vertidas —
Num infinito e luminoso mar
De novas e amplas e cantantes vidas!
Outubro de 1909.

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