5/25/2020

Musa Cerúlea (Poesia), de Augusto Gil


MUSA CERÚLEA
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DEDICATÓRIA
Almas irmãs da minha, a vós dedico e oferto
Este livro de amor — meu coração aberto.
Folhas soltas ao ar na alegre revoada
De pombas a fugir no azul duma alvorada.
Com elas vejo ir pela amplitude calma
Pedaços do meu ser, pedaços da minh'alma:
É tudo o que eu cantei de idílico e olorante,
Desde o cerúleo olhar da minha terna amante
Até à coma ideal da minha santa mãe,
Alva como um lilás, branca como a cecém.
Almas irmãs da minha, a vós dedico e oferto
Este livro de amor — meu coração aberto.
***

PROFISSÃO DE FÉ
Não vão pensar que a minha musa seja
Alguma aparição alucinante
De olhar azul e lábios de cereja,
Diadema de ouro e espada flamejante.
A musa protetora destes versos
Detesta a rima altiva dos panfletos,
Educa-me em princípios bem diversos:
— Lê-me Petrarca, o mestre dos sonetos.
Não me ensina a cantar imprecações
Contra as torpes gangrenas mundanais,
Inspira-me somente estas canções
Que vos falam de amor — e nada mais.
Apostolo do Belo e da Bondade,
Ela anda a propagar por toda a parte,
Às almas auroreais da mocidade,
A nova religião chamada — Arte.
Consagra um culto fervoroso e santo
Aos sentimentos bons, às coisas mansas.
Respeita a Dor nas lágrimas do pranto,
Adora a Paz nos risos das crianças.
Por alta noite, quando a evoco e chamo,
Segreda-me ao ouvido brandamente,
Qual brisa leve a perpassar num ramo:
Traduz em verso o que a tua alma sente.
Canta os sorrisos, canta as amarguras
Dos teus vinte e dois anos incompletos.
Faz deles um colar de estrofes puras,
Faz deles um rosário de sonetos.
........................................
Já veem, pois, que a minha musa é calma:
E agora, se quiserem ler sem pressa,
Verão que em cada estrofe vai impressa
Uma afecção diversa da minh'alma.
***
A MINHA MÃE
As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Mas entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma suspensa há de ficar.
Das minhas ilusões, dos meus afetos,
Longo colar de amores prediletos,
Muitos rolaram já no pó também.
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais preso entre os demais.
— O teu amor santíssimo de mãe.

***
IMPRESSÕES DELA

I

Os lábios são dois imãs de desejos.
A boca, então, é cálix de venenos
 Com infusão de beijos.
Eu, se o mortal licor provasse ao menos
 Alguma vez somente,
Envolto já nas sombras da agonia
Ainda um beijo mais lhe pediria
 — Para morrer contente...

II

A voz tem a dolente melopeia
Que Dom Juan tirava à guitarrilha,
 À luz da lua cheia
 Nas ruas de Sevilha;
Tem os enervamentos do Falerno
E a atração da música de Orfeu;
 Se a ouvisse, o inferno
 — Tornava-se num céu.

III

Os olhos não são olhos, são punhais.
E tanto mais me fita, quanto mais
 Os crava no meu peito;
Contudo hei de dizer-lhe: — ”Oh minha amada
Desfia-o, fibra a fibra, à punhalada
 Que morro satisfeito!”...
***
O MATRIMÔNIO
De banza a tiracolo e capa à trovador,
Eu nunca fui cantar endechas amorosas,
Lirismos de Romeu junto aos balcões em flor,
Por sob o luar dormente e as nuvens vaporosas.
Tão pouco tenho a linha airosa, aristocrata,
Da fina flor do tom, os dândis adamados
Que andam pelos salões, monoculando, à cata
Dum dote que lhes salve a pança de cuidados.
Tenho, como qualquer, a aspiração ideal
Duma noiva gentil, dum ninho conjugal;
Mas tudo se desfaz se penso um só momento
Neste quadro banal, depois do casamento:
O sogro, a sogra, a esposa, um filho já taludo
E eu, muito aborrecido... a olhar para aquilo tudo.
***
DOLOROSA
Deitada sobre o esquife funerário
E vista à chama trêmula dos círios,
Tinha a alvura das hóstias do sacrário
E a palidez suavíssima dos lírios.
No seu rosto gentil e sorridente
Havia a languidez da pomba mansa.
Parecia dormir serenamente,
Imersa em vagos sonhos de criança.
Anos passaram desde que morreu;
Contudo vibra intensa no meu ser,
A sensação do beijo que me deu
Poucos momentos antes de morrer.
E julgo vê-la ainda à luz dos círios,
Deitada sobre o esquife funerário,
Mais pálida que as pétalas dos lírios,
Mais branca do que as hóstias do sacrário.
***
SONHO DE NÚPCIAS
Eu punha no teu lábio a nota quente
A música vibrante dos desejos,
Pousava-te no colo branco, ardente,
O poema rendilhado dos meus beijos.
Ao íntimo contato desses beijos,
Erguia-se em volutas de serpente
A curva delicada, alvinitente,
Das tuas formas, trêmulas de pejos.
Senti então, alucinado e mudo,
O elo dos teus braços de veludo
Cingir-me contra a carne feiticeira.
E sobre o véu de gaze delicado,
Murchavam na capela do noivado
Os albentes botões da laranjeira...
***
SERENATA
(A uma vizinha)
Vai serena, desmaiada,
Entornando luar no azul,
A lua, taça quebrada
Dos festins do rei de Tule.
As estrelas maceradas
São como beijos de luz,
Ou lágrimas condensadas
Do martírio de Jesus.
Serena como uma prece,
Cariciosa como um ninho,
A via-láctea parece
Estrada feita de arminho.
Estrada feita de arminho
E flocos alvinitentes,
Que talvez seja o caminho
Para a morada dos crentes.
Curvam-se os lírios abertos,
Escutando o som da aragem,
E os rouxinóis dão concertos
Sob as folhas da ramagem.
Na atmosfera encantada
Anda a vibrar soluçante
A voz doce e requebrada
Dum bandolim tremulante.
Oh dona de olhos sensuais
— Olha o luar tão bonito!
Façamos os esponsais
Do nosso amor infinito.
Vamos vibrar os arpejos
Duma serenata louca.
As notas, serão meus beijos
E a guitarra... a tua boca.
***
IMPRESSÃO DA BÍBLIA DO SONHO
(A Alberto de Oliveira)
Enquanto os outros vão, ao som das guitarradas,
Capas a desfiar, batinas sem botões,
Entre explosões joviais de intensas gargalhadas,
Cantando alegremente eróticas canções,
Ele despreza a vida, o riso, os corações
E num místico horror de almas fanatizadas,
Foge do mundo e vai, à busca de ilusões,
Em frágeis bergantins de velas enfunadas.
Talento peregrino o seu ideal recorda
Um êxtases de monja em frente dum altar,
À hora em que o sol morre e a lua meiga acorda.
E o seu verso dolente evoca dentro em mim:
Ao longe, muito ao longe, à branca luz do luar,
Os tremulantes sons de ignoto bandolim...
***
PERDULÁRIA
(A Pio Cavalheiro)
Passou junto de nós, pedindo esmola,
Uma criança rota, magra, invalida.
Deitaste-lhe dinheiro na sacola,
Beijaste-lhe em seguida a face pálida.
Que feliz foi o pobre da sacola!
O seu desejo era bem mais modesto.
Podias dar-lhe unicamente a esmola
E a mim — dares-me o resto...
*** 
EM WAGON
A chaminé vomita fumarada.
A máquina assobia: parto enfim.
Na gare, ao longe, a minha namorada
Agita o lenço branco para mim.
Como retas traçadas a nanquim,
Sobre um fundo cerúleo de aguada,
Vejo no espaço nítidas, assim,
As linhas telegráficas da estrada.
O sol, hóstia de luz resplandecente,
Vai-se elevando gloriosamente
Na abobada vastíssima dos céus
E dois choupos batidos pelo vento
Curvam-se num ligeiro cumprimento,
Cerimoniosos, a dizer-me adeus...
***
BLASFÊMIA SANTA
Jurou-me eterno amor. A noite ia caindo.
 E, entre outras fantasias,
 Eu disse-lhe sorrindo:
Se Deus surgisse agora, aqui, perante nós
 O que é que lhe dizias?
— Que nos deixasse sós...
***
À SOBREMESA
VARIAÇÃO SOBRE UM TEMA DE HEINE
(A Egas Moniz)
Na sala de jantar da baronesa
A conversa caíra molemente,
E um criado esguio, sorridente,
 Trazia sobremesa.
Os comensais falavam sobre a vida.
— Viver é ir morrendo lentamente —
Dizia suspirando, em voz sentida.
 Um lírico doente.
A vida, acrescentou, volvendo os olhos,
Um bacharel vermelho, de melenas:
— É um jardim de lírios e de abrolhos
 De cardos e verbenas...
Continuou depois solenemente
Um outro, literato, de lunetas,
Com fama de escritor inteligente,
 Autor de várias tretas:
— A vida é a viagem dalguns dias:
Uns seguem nela a estrada dos revezes,
 Outros a do prazer. As duas vias
 Encontram-se por vezes...
O barão quase calvo, de olhar vago,
Disse a sorrir, curvado na cadeira:
— A vida é isto. E despejou dum trago
 Um cálix de Madeira.
Ao fundo, um par de jovens namorados
Fazia brindes íntimos de amor
E a digestão punha nos convidados
 Um lânguido torpor.
Ouviu-se então, em voz de confidência,
Dizer à baronesa um titular:
— Minha Senhora, creia-me Vocência,
 A vida — é esse olhar...
***
CARMEN
Sobre as dobras rendadas da mantilha
Brilham-te, como soes em pleno dia,
Os olhos mais galantes de Sevilha
Na fronte mais gentil de Andaluzia.
A tua voz ao som da guitarrilha
Tem vibrações estranhas de harmonia.
Ninguém canta melhor a seguidilha
Nesse país do Amor e da Alegria.
Nas voltas caprichosas do bolero
Não tens rival em graça e em salero
Carmen gentil, oh flor das espanholas!
Tu fazes-me o efeito inebriante
Dos vinhos de Xerez e de Alicante
Quando bailas ao som das castanholas!
***
FERVET AMOR
A conversa caiu no casamento.
E defronte de nós, nesse momento,
Noivava um par alegre de pardais.
Ruborizada, atenta, olhaste os dois.
Em que meditas? disse, e tu depois,
Baixando o doce olhar — coraste mais.
***
CANTARES
(A Ramiro de Figueiredo)
A triste viuvez tua,
Criança de olhos suaves,
Lembra-me as noites sem lua,
Lembra-me os ninhos sem aves.
Tão bonita e sem amores,
À minha mente recordas
Uma jarra sem ter flores
Um bandolim sem ter cordas.
Oh meiga rola sem par,
À fantasia revelas
Uma barca em pleno mar
Sem ter leme e sem ter velas.
Moreninha idolatrada
Que o louro Amor não seduz,
És como estrela apagada
És como um astro sem luz;
És como um cofre doirado
Cheio de gemas de Ofir,
Por tal maneira fechado
Que ninguém o possa abrir.
Oh virgem de negra coma,
Oh minha doce gazela,
És como flor sem aroma
Como moldura sem tela,
Galateia que amo tanto,
Meu amor, pecados meus,
És um altar sem ter santo
— Um paraíso sem Deus!
***
SENHOR DOUTOR
Não há quem endoide as moças
 Como os olhos dum doutor.

 (Cantiga coimbrã).
Houve na aldeia viva sensação
Ao regressar o filho do morgado,
Que fora para Coimbra de calção
E vinha agora bacharel formado.
Vai longe, olé, bradava o vozeirão
Do abade. É só fazê-lo deputado.
E as moças entre si: Que rapagão!...
... Doutor, tão novo... Deus seja louvado...
Chegou a casa e nesse mesmo dia,
Foi visitar radioso de alegria
A filha da velhota que o criou.
E visitou-a tanto e tantas vezes
Que quando decorreram nove meses
— O morgado da aldeia... era avô.
***
RITORNELO
(A Alberto Rego)

I

O seu cabelo louro
E o perturbante olhar
Dos grandes olhos pretos
Serão a chave de ouro
Com que eu hei de fechar
Um livro de sonetos.

II

Posta a gravata branca
E de casaca preta,
Numa atitude franca,
Sem vênias de etiqueta,
Ler-lhe-ei um dos sonetos
Fechado a chave de ouro
Feito aos seus olhos pretos
E ao seu cabelo louro.

III

À nobre cortesã
Há de mover, por certo,
O estranho talismã
Do livro que lhe oferto.
Que para inspirar amor
A uns tais olhos pretos
Não há filtro melhor
Que um livro de sonetos...
***
ESBOCETO
(A Pereira Barata)
Como uma semitinta de aquarela,
Coa-se a luz, dulcíssima, velada
Através das persianas da janela,
Sobre a pequena sala alcatifada.
Num cavalete, apenas debuxada,
A tons cerúleos, sobre larga tela,
Uma marina calma, sossegada,
Com botes de pescar, vogando à vela.
Sobre a mesa rodeada de cadeiras,
Destaca, entre revistas estrangeiras,
Um busto de mulher adolescente
E a brancura leitosa do teclado
Põe no piano, entreaberto, ao lado,
Um ar de monstro, arreganhando o dente.
*** 
CONSUMATUM EST!
Amei-a muito, é certo. Amei-a com o louco
E desvairado amor de alguém que nunca amou.
Por isso que a amei tanto é que a amei por tão pouco.
— Escusa de insistir. O meu amor findou.
Como um perfume leve que pelo ar se expande,
Assim esta paixão ardente se evolou.
Já nada resta agora desse amor tão grande.
— Escusa de insistir. O meu amor findou.
Ontem, ao ler o meu bilhete quase em branco,
Lacônico e conciso, dizem que chorou,
Talvez fosse cruel, mas creia que fui franco.
— Escusa de insistir. O meu amor findou.

I

Numa gaveta, entre papéis dispersos,
Encontrei, por acaso, noutro dia,
 Os meus primeiros versos
 Singelos de harmonia.
Pobres de rima e cristalinos sons,
Mas cheios duma doce ingenuidade,
 Que os torna, na verdade,
 Simpáticos e bons.
Minha sincera e dedicada amiga.
Meu doce amor e minha aspiração,
Como tributo de amizade antiga,
 Deponho na tua mão,
 Apenas retocadas,
Estas simples estrofes desmaiadas,
Para que vejas como os desenganos
Mataram, dia a dia e hora a hora,
As santas ilusões dos meus quinze anos
Que inutilmente invoco e chamo agora...

II

ORAÇÃO
Outono. Morre o dia.
Cai sobre as coisas plácidas e calmas
Um véu de sombra e de melancolia
Que dulcifica e embrandece as almas.
Todo o meu ser se invade
De enervantes e místicas doçuras,
De mansidão, de paz, de suavidade,
De sentimentos bons, de ideias puras.
No coração perpassa
Uma piedade e compaixão serena
Por todos os validos da desgraça,
Por tudo quanto sofre e quanto pena:
Pelos pequenos entes
Sem abrigo, sem lar e sem carinho,
Que são como avezinhas inocentes
Postas por mão cruel fora do ninho;
Pelos encarcerados
Que lançam, dentre as grades da cadeia,
Ao ar, à luz, aos montes afastados
A vista aflita e de amarguras cheia;
Pelos que vão pedindo
De porta em porta o pão de cada dia,
Tristes, que sempre a morte olham sorrindo
Porque ela unicamente os alivia;
Pelos que andam distantes
Entre cruezas, fomes e perigos,
Sentindo a nostalgia lancinante
Da pátria, da família, dos amigos;
E numa emoção crente,
Numa fé viva, forte e benfazeja,
A Deus suplico fervorosamente
Que os guie, que os socorra, que os proteja.
***
DE LONGE
(Num bilhete de visita)
Eis o pedido simples que te indico,
Se acaso o teu amor do meu partilha:
Ama-me com o amor que eu te dedico
E pensa em mim, como em ti penso, filha.
***
MANHÃ NO CAMPO
Manhã no campo. O som, a luz, o aroma, a cor,
Fundem-se alegremente em galas festivais.
A luz por todo o espaço, o aroma em cada flor,
O som na passarada, a cor nos vegetais.
É toda a natureza um êxtases de amor.
Por sob o céu, do tom das rosas outonais,
Concebe o lírio branco, a laranjeira em flor,
A abelha delicada, a pomba dos pombais.
O vento sul dissipa as brumas do nascente,
E, como tem chovido a primavera inteira,
Vai quase a transbordar o leito da ribeira.
O sol envolve o azul num longo beijo ardente
E pelo espaço vão, em fantasiosas linhas,
As boêmias de além-mar, as meigas andorinhas...
***
ADEUS
Há de lembrar-me sempre a imensa mágoa
Que vi transparecer nos olhos teus
Cerúleos, languescentes, rasos de água,
Quando, pousando os lábios sobre os meus,
Num demorado osculo celeste,
Tremente e carinhosa me disseste
 Esta palavra: — Adeus! —
Afastei-me de ti e já distante
Voltei-me para ver-te inda uma vez
Com o pressentimento lancinante
De que te não veria mais, talvez.
Tornei-me então da lividez dum monge,
Quando vi alvejar nos dedos teus
Um lenço branco repelindo ao longe:
 Adeus, adeus, adeus...
***
LÍRICA CHINESA

I

Lembra-me a hástea comprida
Dos lírios brancos em flor,
A elegância apetecida
Do seu corpo tentador.

II

Da sua cor singular
Dá uma ideia leve
A palidez do luar,
Batendo um floco de neve.

III

Nem o breu, nem o carvão,
Nem a noite sem estrelas,
Têm a densa escuridão
Das suas tranças tão belas.

IV

A sua boca, a sorrir,
Quando mostra os alvos dentes,
Lembra pérolas de Ofir
Entre dois rubis fundentes.

V

Das suas falas suaves,
Ao som comovente e ledo,
Cessam os cantos das aves
E as folhas ficam de quedo.

VI

O seu meigo olhar luzente
Nem sei bem o que revela...
Lembra um lago azul, dormente,
O dulcíssimo olhar dela.

VII

Da sua mão pequenina,
Disse o imperador chinês:
Dava o trono, o cetro, a China,
Para beijá-la uma vez.

VIII

Quanto ao pé — que perfeição! —
Eu nem citarei mais factos:
Cabem na palma da mão
As formas dos seus sapatos.
***
PÉROLAS
(A Abílio da Fonseca)
Como os mergulhadores orientais
Que ao leito das ondinas vão roubar
As pérolas fulgentes, virginais,
Sondei o negro abismo desse olhar.
No pélago vastíssimo do mar
Mergulham eles, muita vez em vão;
Pois eu, mulher, roubei ao teu olhar
— A pérola sem par desta paixão...
***
IGNOTUS
Ninguém sabia ao certo quem ele era,
O bondoso pastor do presbitério.
A terra onde nasceu? Donde viera?
— Em vão se investigava tal mistério.
Andava sempre só. Pelos caminhos
Encontravam-no, à tarde, muitas vezes,
Parado, a ouvir a música dos ninhos
Ou as joviais canções dos camponeses.
O sinal do seu livro de orações,
Um dia que passava, absorto, a ler,
Caiu perto dum grupo de aldeões.
Um velho ao apanhar-lho reparara:
— Era um retrato antigo de mulher
Duma beleza peregrina e rara.
***
NEC SEMPER
São gêmeas a Verdade e a Beleza,
Disse-me um grande sábio noutro dia.
Se ele te conhecesse, com certeza,
Tamanha falsidade não diria.
Pois tu oh formosura incomparada
A quem o meu amor ardente aspira,
Sendo a própria Beleza humanizada
— És a sínteses viva da Mentira!
***
COMBATE
Fazer versos delirantes
Ao teu frio coração
É como engastar diamantes
Num adereço de latão;
Contudo meus versos são
Tiros certeiros, constantes,
Ao teu frio coração,
Aos teus desdéns provocantes,
Nesta singular batalha
Não sei mesmo quem mais valha,
Qual de nós seja a vencer.
Nesta campanha secreta
Entre o amor dum poeta
— E o desdém duma mulher!
***
NOSTÁLGICA
O amor é chama enorme que alumia
E nos consome e gasta o coração.
Uma faúlha o ateia — a simpatia,
Termina em labaredas — a paixão.
Tanto é maior a luz que ele irradia,
Quanto intensa é depois a escuridão.
A indiferença é como a cinza fria
Que fica dessa lenta combustão.
Senhora a quem amei perdidamente,
Não me entristece o seu desdém mordente,
Já nada me preocupa, nem me importa...
Porque, desde que vós me não amais,
O meu corpo doente não é mais
— Que a tumba viva da minh'alma morta...
***
IRMÃ DA CARIDADE
(A Henrique Góes)

I

Muitos, ao vê-la, estacam deslumbrados,
Ficam como suspensos desse olhar
Mais tímido que os olhos dos veados,
Mais cândido que os raios do luar.
Indiferente à própria formosura
Segue, porém, impávida, serena,
De habito negro como a noite escura
E touca branca como uma açucena.
A linha escultural do seu perfil
É duma correção incomparável.
É alta, aristocrática, gentil,
De brandos gestos e maneira afável.
E a Rubens, a Murilo, a Ticiano
Excederia certamente em glória
Algum pintor que modelasse o arcano
Do seu busto de virgem merencória.

II

É fria como a neve sobre o polo
E pura como uma alma de criança.
Olha uma rocha como olha um colo;
É-lhe estranha a tormenta ou a bonança.
Nem lhe estremece o lábio virginal
Ao beijar a nudeza de Jesus,
O grande mártir, sonhador ideal
Que expira mansamente numa cruz.
Quando morrer na cela do mosteiro,
À cova num esquife hão de levá-la;
Serão então os braços do coveiro
— Últimos e primeiros a abraçá-la...
***
ABRIL
Enorme, arredondado, reluzente,
Como se fora um olho de Titã,
O sol no azul olhava fixamente
A natureza lubrica, pagã.
E à luminosidade transparente
Do céu aveludado da manhã,
Um melro ia cantando alegremente
Uma canção brejeira e folgazã.
Nuvens de fumo tênues, vaporosas,
Evolavam-se em formas caprichosas
Das chaminés esguias dos casais.
E em choreação festiva, galhofeira,
Ouvia-se nas bandas da ribeira
Um concertante alegre de pardais...
*** 
ALDEÃ
Podem dizer talvez que ela não tem
As formas peregrinas, delicadas,
Das cortesãs de peito de cecém
Que vão à noite aos bailes, decotadas.
Podem dizer talvez, e dizem bem,
Que às suas faces túmidas, rosadas,
Falta a cor macilenta que convém
Às virgens dos sonetos e baladas.
À elegância doente e vaporosa
Eu prefiro, contudo, a forma airosa
Do seu corpo gentil de mulher sã;
Por isso adoro e preso mais que tudo
Os seus olhos dolentes de veludo,
Os seus lábios vermelhos de romã.
***
AMOR ONIA VINCIT
(A Garcia Marques)

I

O amor não se confrange,
 O amor não se combate.
É como a luz do sol que tudo abrange,
É como um raio audaz que tudo abate:
É como em terra fecundante a flor,
Viceja e medra, embora se não trate.
 Não se confrange o amor,
 O amor não se combate.

II

O amor não se comenta,
 O amor não se discute.
Embalde imploro à minh'alma sedenta
Que me ouça, que me atenda, que me escute
Em vão busco acalmar o louco ardor
Desta paixão letal que me atormenta.
 Não se discute o amor,
 O amor não se comenta.
***
A UNS ANOS
Se eu fosse rei, Senhora, neste dia
O pajem mais gentil da minha corte,
Como tributo de amizade, iria
A esses pés miniaturais depor-te
Um brinde sem rival, de alta valia;
Mas sabes bem que não sou rei. De sorte
Que não pode ir, como eu desejaria,
O pajem mais gentil da minha corte
Oferendar-te joias de valia.
Em vez do brinde, mando todavia
Um ramo de lilases e cecéns.
E pelo pajem louro, alvinitente,
Mando, Senhora minha, unicamente
Este soneto a dar-te os parabéns.
***
STRUGLE FOR LIFE
(A Alberto Silva)
“Lutar, lutar!” dizeis-me vós. “A luta
É inerente à própria natureza”,
Mas qual é a vitória absoluta
Nesta guerra sem tréguas, sempre acesa!
Haja quem venha à barra, quem discuta
E me combata e dome esta incerteza.
Sinto a minha alma inerme, irresoluta,
Cheia de abatimento e de fraqueza.
Eu lutaria com denodo, sim,
Se à luta visse um terminus, um fim;
Mas qual de vós que há tanto batalhais
Com ânimo valente e sanha viva,
Pôde alcançar ou conseguir jamais
A vitória final — a decisiva?
***
PONTO FINAL
(Num Álbum)
Pediste-me um soneto delicado,
Esquisito, gentil, galanteador,
Feito com versos de ouro e cravejado
Com rimas de finíssimo lavor.
Ora eu, confesso aqui o meu pecado,
Nunca tive feição de trovador,
Acho o lirismo de álbum requintado,
Banal, elogioso, sem valor.
Aqui me tens; jamais falto às promessas.
Exijo, pois, de ti que não esqueças,
Em troca, filha, este pedido meu:
Que para enobreceres o soneto,
Venhas fechar o último terceto
— Com o ponto final dum beijo teu.
***
EL PUNTO FINAL
(Tradução de José de Siles)
Pedisteme un soneto delicado, exquisito, gentil, galanteador, hecho con versos de oro, y cincelado con rima de finissima labor.
Ahora bien, yo confieso mi pecado; nunca tuve afición de trovador, y detesto al poeta almibarado que en albums habla de banal amor.
Cedo, no obstante. Pero, no te azores si pretendo de ti que colabores, y que en prêmio al trabajo que rehuyo,
para que algún valor tenga el soneto, te dignes terminar este terceto… con el punto final de un beso tuyo.

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