5/22/2020

O Cavaleiro das mãos irresistíveis (Conto em versos), de Eugênio de Castro



O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
CONTO EM VERSOS
__________________________________________


I
AO GRANDE ESTATUÁRIO
ANTÔNIO TEIXEIRA LOPES

... las hermosas manos del Conde
Don Garci Fernandez,cconquistavan
la inclinacion de todas las mugeres,
por lo qual las encubria aquel Principe
quando se las podiam ver personas de su atencion.

D. Luiz de Salazar y Castro: Historia de la Casa de Lara

Dia de Santa Clara.
Na janela
Já as frinchas se azulam como veias,
Quando Dom Sancho Sánchez de Moscoso,
Depois dum sono regalado, acorda
Ao cristalino repicar dos sinos,
Que tilintam na torre do mosteiro
Onde, entre círios, orações e rosas,
As cinzas dormem da Rainha Santa.

Defronte, em Coimbra, os sinos da cidade
Associam-se à festa: uns galrejando
Como crianças num jardim em maio;
Outros, de ansioso, de saudoso timbre,
Desatando-se em místicos adeuses,
Em despedidas para a eternidade;
Outros, em Santa Cruz, cantando glória;
E mais em cima, dominando-os todos,
Como um aviso às almas tresmalhadas,
Os da Sé, retumbando com ameaças
E rouquidões de temporal distante...

Tão doce despertar e tão alegre
Não o tinha Dom Sancho desde a hora
Em que um fatal desastre aos pés da morte
O arremessara.
Desta feita, o moço
Acordava sem dores, antes sentindo
Um bem-estar delicioso...

Espreguiçou-se
Com a prudência dos estropiados,
E a cada movimento ia notando
Que voltava ao que fora, que de novo
Podia abrir os braços livremente,
As pernas esticar, mexer o tronco,
Sem já sentir uma ligeira sombra
Das guinadas cruéis que longo tempo
O tinham consumido nesse leito,
Arrancando-lhe gritos aflitivos
E encharcando-lhe as fontes com suores...

Renascia. Quebrava-o inda, é certo,
Esse torpor que na convalescença,
Quebrando o corpo, quebra os maus desejos,
Em troca suscitando honestas ânsias
De calmos dias, de leais afetos;
Sentia ainda os olhos fatigados
De tanto haverem procurado embalde
Uma estrela nas trevas da agonia;
Mas ao contrário das manhas passadas,
Em que, rendido, desejava apenas
Dormir, dormir indefinidamente
Na abafada penumbra dessa alcova,
O que ele agora, inquieto, apetecia
Era a luz d'ouro e o ar livre, de diamante.

Das nebrinas rosadas do futuro,
Lindo cantar chegava aos seus ouvidos,
Penugento cantar d'alma sereia,
Anunciando em notas, que eram mimos,
As doçuras dum próximo noivado;
E Sancho, embevecido, adormecendo
Desse canto no berço flexuoso,
Cerrava os olhos delicadamente,
E delicadamente via ao longe
De Beatriz a virginal figura
Deslizando graciosa entre açucenas,
Ao cristalino repicar dos sinos...

II
Pouco mais tinha Sancho de vinte anos.

Órfão de pai quando contava doze,
Com sua austera mãe se recolhera
A um severo palácio em Tordesilhas,
E aí vivera como bom fidalgo
Em descuidosa mas honesta estúrdia,
Cavalgando, monteando e namorando,
Até que um dia, aos incessantes rogos
Dum primo seu, D Pedro de Mendanha,
Brioso alcaide-mor de Castro-Nunho,
Do lusitano rei seguindo as partes,
Na guerra se meteu, quase fraterna,
Que em Toro veio a ter incerto fecho.

Finda a batalha, achou mimoso exílio
Em Barcelos, nas margens nemorosas
Do Cávado sereno, cujas águas
A cada instante aumentam engrossadas
Pelas saudosas lágrimas que verte
Deixando a cada passo um encanto novo.
Soube ele aí que os bens que possuía
Em Castela, lhos tinham confiscado
Os católicos reis. Vendo-se pobre,
Ele, que dias antes poderia
Aos alqueires medir o ouro e a prata;
Vendo-se aí sem lar, tendo possuído
Soberbos paços de ameadas torres,
Onde talvez ainda, nessa hora,
Se visse trapejar ao vento morno
A bandeira com as armas dos Moscosos;
Vendo-se aí sem pão, tendo deixado
As suas tulhas cheias, que podiam
A farta sustentar por mais dum ano
Uma província inteira; então lembrou-se
De uma tença pedir a Afonso Quinto,
E com essa intenção pôs-se a caminho
De Santarém, onde pousava a corte.

Passando em Coimbra, com surpresa alegre,
Lá encontrou patrícios e parentes,
Exilados também, que o receberam
Como um querido irmão ressuscitado.
Sancho levava pressa, impaciente
De alcançar bom despacho ao seu pedido;
Mas tão felizes, tão risonhas horas
Saboreou ali, em cavalgadas,
Banquetes e serões, que a breve trecho,
Mandando ao demo tenças e negócios,
Resolveu demorar-se uns tantos dias
E arranchar com os mais numa caçada
Aos javalis, caçada de fidalgos
De que era promotor ativo e guapo
Um certo Rui de Sá, dos Sás ilustres,
Tão destros em terçar guerreiras armas
Como hábeis em compor sonoros versos.
Deviam ser uns vinte os cavaleiros,
Que em luminoso amanhecer de julho
Saíram da cidade a trote largo.
Atravessada a ponte, para a esquerda
Tomaram com marcial desenvoltura,
E já da Esperança o monte iam subindo
Quando o vivo murzelo de Dom Sancho,
Retrocedendo num galão abrupto,
Rompeu, desenfreado, em correr doido.

Era Sancho um acabado cavaleiro,
Mas nesta ocasião fatal, de nada
As equestres manhas lhe serviram:
Chapou-se-lhe o cavalo, e o pobre moço
Violentissimamente ei-lo cuspido
Sobre os brutos calhaus duma pedreira,
Onde os amigos foram encontrá-lo
Exânime, no chão, com um pé estroncado,
Com as mãos escalavradas e com a fronte
Amassada, a sangrar por duas gaivas.

III
Perto dali ficava a nobre casa
De Dora Guterre Lopes que, apiedado
Por tal desgraça, recolheu o ferido
E o ajudou a deitar na própria cama,
Enquanto a criadagem, de corrida,
Abalava à procura de Heitor Pires,
Ervanário, carcunda e feiticeiro,
E que além disso, entre Mondego e Douro,
Tinha fama de ser o mais sabido
Algebrista da terra portuguesa.
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Quando os sentidos recobrou Dom Sancho,
Já o grotesco Heitor se fora embora
Depois de lhe encanar o pé dorido
E de lhe haver bandado subtilmente
Cabeça e mãos com alvas ligaduras.
De branco mascarado, do seu rosto
Só os olhos se viam, olhos negros,
Pasmados e febris, quais os do infante
Que exposto foi numa azinhaga à noite,
E que ao luzir da estrela d'alva chora
Sem consciência da dor que o mortifica;
Só seus olhos se viam e seus lábios
Repuxados num ricto doloroso
Que descobria a cintilante alvura
Dos seus dentes magníficos, de lobo.

 — “Onde estou eu?” disse ele, percorrendo
Do teto, com a vista, as grossas traves,
E as paredes forradas de precioso
Guadamecil, cujos lavores metálicos
Vivamente brilhavam na penumbra
Tépida e aveludada do aposento.
Sobre um solene escano de carvalho,
De ferro chapeado, qual se fora
Porta de cubicada fortaleza,
Uns calções, um pelote esfarrapado,
E um tabardo poeirento, todos cheios
De sangue coagulado, rediziam
Da desastrosa queda a violência.

 “Onde estou eu?”
Torcendo-se com dores,
A máscara voltou e viu ao lado,
Ao pé de si, um velho cabeludo
De gigantesco mas risonho aspecto,
Imóvel e vestido gravemente
Com golpeado gibão de cetim preto,
Sobre o qual faiscava uma cadeia
De fuzis cravejados de esmeraldas.
Era o bom Dom Guterre, o nobre alcaide
De três fortes castelos e abastado
Senhor de quatro vilas portuguesas,
Do conselho del-rei e pertencente
A veneranda estirpe de Azevedos.

“Como estais?” diz a medo Dom Guterre.

 — “Morro, morro de sede!” volve Sancho.

Duma credencia, toma o ancião hirsuto
Um jarro castelhano d'alva prata,
Bem lavrado a cinzel, e enche uma copa
Que o doente febril bebe dum trago.

 — “Mais! Por piedade, mais!”
E esvaziada
Segunda copa, o moço os olhos cerra,
Deliciado momentaneamente.
Mas as dores recrescem de tal jeito
Que, embora sofredor, o pobre Sancho
Já não tem mão em si que não prorrompa
Em altos gritos de animal trilhado.

Três longuíssimas noites e três dias
Deslizaram morosos como lesmas,
Sem que a tanto sofrer chegasse alívio.
E só depois, já quando se esgotava
Do suspeito ervanário o misterioso
Repertório de emplastros e de unguentos,
É que Sancho cobrou tênues melhoras,
E conheceu a extrema caridade
Dessa nobre família que o acolhera
Como a dileto filho há muito ausente.

Secundando o fervor de Dom Guterre
No empenho de abrandar as dores de Sancho,
Que eram dores de ferido e expatriado,
Com materna piedade, ao pé do leito,
Docemente velavam, noite e dia,
Do bom fidalgo a majestosa esposa,
Dona Mor de Menezes, sua filha,
A suave Beatriz, e uma parenta,
Dona Iseu de Aboim, velha senhora
Que, tendo enviuvado e sendo pobre,
Naquele paço generoso entrara
Onde as portas do céu abria a todos
Confeccionando celestiais compotas
E angélicas, translúcidas geleias.
Dia sim, dia não, era infalível
Um irmão de Dom Guterre, o rubicundo
Dom Bento da Santíssima Trindade,
Frade crúzio e varão de grandes letras,
Tão grande canonista como exímio
Cultor da genealógica ciência.

Quando às eternas noites desveladas
Outras, mais bem dormidas, sucederam,
E a estas, mansos, aliviados dias,
De Sancho o quarto enorme transformou-se
Em locutório amável da família.
De lá não se arredava um só instante
O hercúleo Dom Guterre, e as três senhoras
Lá se acolhiam do calor da sesta,
Conversando, bordando e preparando
Os fios com que Heitor pensava o doente.

Era o bom Dom Guterre tão brilhante
Conversador como na mocidade
Bravo guerreiro fora; e assim, no intuito
De arejar a loquela e ao mesmo tempo
De distrair o hospede, contou-lhe
Em breve prazo toda a sua vida,
Longa epopeia de façanhas altas
Com sangue moço e generoso escritas
Na Alfarrobeira e na caiada Ceuta;
Epopeia marcial, entrecortada
De episódios d'amor que Sancho ouvia
Com interesse infantil, preferindo a todos
Aquele em que o fidalgo lhe pintava
Certa escrava d'Arzila, esbelta e lânguida,
Dançando à tarde religiosas danças,
Ao som do adufe que rufava um mouro,
Junto duma cisterna, entre palmeiras.

Depois de ouvir, chegou a vez a Sancho
De dar conta de si: sendo tão novo,
Pouco tinha a dizer, mas esse pouco
Bastou para que o crúzio descobrisse
Que era com Dom Guterre quarto primo
Do jovem castelhano.
Nessa noite,
Com que ajoelhada adoração e enlevo,
Com que ternura Sancho ouviu a loira
E láctea Beatriz sair da alcova
Dizendo afável: — “Boas noites, primo!”

IV
Passou-se isto na véspera do alegre
Dia de Santa Clara. O moço amante
Pensando em Beatriz cerrou os olhos,
Dormiu com a inocência dum menino,
Vendo-a constantemente nos seus sonhos,
E a pensar nela despertou ditoso
Ao cristalino repicar dos sinos.

Amava-a? Sim. Humilde e fortemente
A amava, embora mal a conhecesse...
.
Mal lhe tinha falado um dia ou outro,
Mas a sua lindeza era tão pura,
A sua voz tão cheia de amavios
E os seus amaviosos olhos verdes
Tão enluarados de candura e sonho,
Que tudo nela revelava logo
Um desses raros seres que, exilados
No mundo, vivem conhecendo apenas
Ânsias de perfeição e de beleza.
P'ra adivinhar os lúcidos tesouros
De amor e mansidão que ela possuía,
Não precisara Sancho de falar-lhe,
De espreitar, deslumbrado, a sua alma,
De sondar seus mais íntimos desejos:
Bastara-lhe só vê-la aérea e branca,
Sempre alheada e loira qual se fora
Um anjo anunciador d'olhos aquáticos
Passando ao luar, numa missão divina.

Nunca Sancho sentira o que sentia.
Era mais do que amor, era uma alta
E funda adoração extasiada,
Um quase medo de a possuir um dia,
Como se fosse um sacrilégio tê-la,
E um desejo infinito, uma ânsia doida
De sofrer toda a casta de martírios
Só p'ra alcançar o saboroso prêmio
De oscular castamente, de joelhos,
Dos seus chapins de lhama a aguda ponta.

Assim pensava Sancho na penumbra
Da sua alcova, ao repicar dos sinos,
Quando viu, no retângulo dourado
Da porta que se abrira de repente,
Recortada a figura de Ana Mosca,
Ama de Beatriz.
 “Como estais hoje?”
Diz a boa mulher, no quarto entrando.

 — “Deus te pague o cuidado!” volve Sancho
“Ainda que eu de rojo vos seguisse,
A ti e aos teus senhor s, a vida inteira,
Nem metade da dívida pagara
Que vos devo...
Tão bem passei a noite
E sinto-me tão bem agora mesmo,
Que já comigo concertei há pouco
Desta cama sair daqui a um instante.”

 “Louvado seja Deus!” atalha a serva:
Grande boda, vereis, farão meus amos
 Festejando com gosto essas melhoras...
Todos vos querem nesta casa...
 — Todos!”
Pergunta Sancho. “Todos? E até mesmo
Beatriz?
 — E por que não? Santa acabada,
É um saquinho d'amor a sua alma,
Saquinho aberto para toda a gente...”

 — “E que eu quisera só p'ra mim aberto!
Diz Sancho lá consigo... E continua:
 “Olha, falemos dela... Acho-a tão triste,
Tão fora de si mesmo, que parece
 Que traz a alma inocente noutro mundo...”

 “Tem na no céu”, diz Ana; “todos sabem,
 Senhor Dom Sancho, que ela quer ser freira,
 Meter-se em Santa Clara... E lá estaria
 Há muitos meses já, se o pai choroso
 Lhe não pedisse, quase de joelhos,
 Que o não deixasse enquanto fosse vivo,
 Que não partisse sem fechar-lhe os olhos...”

Ouvindo tal e ouvindo ao mesmo tempo
O cristalino repicar dos sinos
Que em Santa Clara, na morena torre,
Chamando os fieis, anunciavam rindo
Místicos gozos, hálitos de incenso,
Doces eflúvios de esmaiadas rosas,
Suspiros d'órgão, d’embriagar fraguedos,
Doces palpitações de círios alvos
Refletidas no ouro das casulas
E nas mansas safiras da custódia;
Ouvindo tal, parecia-lhe, a Dom Sancho,
Que na sua cabeça desvairada
Ruía, aos golpes de cem catapultas,
Uma cidade imensa de cem portas!
Ana Mosca partira...
O cavaleiro,
Rendido por cruel abatimento,
Longo espaço ficou cismando triste
Na prematura ruína dos seus sonhos...

 “Ter Deus como rival!” dizia Sancho,
Cheio de íntima dor..."Deus inclemente,
Se para Esposa a tinhas elegido,
Por que é que tão formosa ma mostraste?
“Porque não morri eu antes de vê-la?”

Mas de repente, em revoltado assomo,
Sobrepondo ao desânimo do amante
O audacioso brio do soldado,
A si mesmo se anima e se encoraja,
Arquitetando traças engenhosas
De conquistar, soberbo, a torre ebúrnea
Dentro da qual Beatriz se recolhera.
Enterrando-se viva num mosteiro,
Sacrificando os seus cabelos d'ouro,
Deixando o mundo, o que buscava ela?

 — Aproximar-se da divina glória;
Mas o amor, o amor forte e verdadeiro
Também conduz a Deus (pensava Sancho);
O amor verdadeiro é uma sagrada
Comunhão de bondade e de beleza,
E aos ouvidos de Deus, sorvido e dado
Num sublime delírio de ternura,
Um longo beijo é uma oração fremente,
Uma antevisão da glória eterna.

Não, não queria Sancho desviá-la,
A sua amada, do bom Deus piedoso,
Mas só que ela mudasse de caminho
Para ascender à Bem-aventurança;
Que o aceitasse como companheiro
Nessa radiosa, mística viagem
Que os dois fariam, trêmulos, seguindo
Por doce estrada de clarões e aromas,
Coroados de flores, rezando beijos,
E erguendo à noite, como grandes fachos,
Nas próprias mãos os corações ardentes.

Nessa manhã, depois do curativo,
A rogo seu, foi Sancho transportado
Para uma sombra do jardim... Sentaram-no,
Entre coxins, num cadeirão de espaldas,
E aí lhe foi servido um lauto almoço
Cujas finas vitualhas rescendiam,
Tentando mortos, em sonoras pratas.
Dom Guterre abancara ao pé de Sancho,
E comia também, falando sempre...

Sobre a mesa corria uma latada
Toda folhuda, donde a luz descia,
Sedosa e mansa, como a dum santuário;
E quando a viração morna e indolente
Perpassava entre os pâmpanos espessos,
No chão, a sombra azul, toda ocelada
D'ouro, como um pavão armado, tinha
Frémitos lentos e macios d'água...
Do Mondego nos choupos, as cigarras,
Nos olivais, as rolas gemebundas,
E sobre as alfazemas perfumadas
As douradas abelhas sussurrantes,
Celebravam em coro a calma adusta...
Mas refrescando o ar, ali bem perto,
Uma fonte cantava, antiga fonte,
Aonde um São Miguel, de lança em riste,
Dominava um Diabo monstruoso
Cuja limosa boca vomitava
Uma espadana d' água diamantina.

 “Ah! como é bom viver!... e quanto eu dera
Para ter neste instante a vossa idade!”
Disse o velho, enxugando o seu bigode
Que uma golada de espumoso vinho
De rubis orvalhara, e saboreando
O almoço e o dia com igual deleite...
 “O pior... o pior é eu estar tão ruço...”
Continuou ele com melancolia:
“Amigo, é para vós que está a vida!”
Dizendo isto, o bom e nobre velho
Olhava fixamente para Sancho
Cujo rosto, já sem as ligaduras,
Todo resplandecia de beleza,
Uma beleza insinuante e máscula
De Procônsul romano, moço e forte.

Fitando Sancho demoradamente,
Reparando no corte imperioso
Daquela boca fresca e voluptuosa
Que dizia o desejo impaciente
De saborear da vida os frutos todos;
Reparando no brilho desses olhos
Cheios de entusiasmo e de ousadia,
Uma esperança afagava Dom Guterre:
A esperança de que, em breve, sua filha,
Ao ver Sancho afinal desmascarado,
Docemente vencida pelo prestigio
De tão bela e radiosa mocidade,
Esqueceria os místicos projetos
Que, endoidecendo-a com subtis promessas,
Iam tramando o fim duma família
Das mais ricas do reino e mais gloriosas.

Foi animado dessa rósea esperança
Que ele dali se foi, tanto que ao longe
Viu assomar a filha.
Regressando
De Santa Clara, a moça caminhava
Branca e toda de branco, com uma túnica
Tão desataviada e tão modesta
Que mais parecia um hábito de monja
Do que vestido de donzela nobre.
De precioso só nas mãos trazia
Umas pesadas contas d'âmbar pálido
Donde pendia um crucifixo d'ouro.

Estremeceu, ao vê-la, o cavaleiro
E ocultou vivamente no tabardo
Suas mãos entrapadas, não fosse ela
Com aqueles trambolhos desgostar-se.
Mas a fluida Beatriz vinha tão longe
Dos homens e da vida, que somente
O viu quando ao pé dele era chegada.
Como ave assustadiça, divisando
Pela primeira vez tão belo rosto,
Para, corando, hesita, e só tem força
Para dizer com voz sumida e trêmula:
  “Ah!... como estais?”
 Melhor, infelizmente...”
Diz o moço. E Beatriz, ingênua, volve:
 “Infelizmente?”
 — “Infelizmente, é certo,
Exclama Sancho com sincera angústia,
“Infelizmente, porque, enfim curado,
“Sairei daqui e deixarei de ver-vos!”

Uma onda de pudor soergue os seios
Da tímida Beatriz, tinge de rosa
Suas pálidas faces e mareja
De lágrimas rogais seus olhos verdes.
 “Ofendi-vos, bem vejo... Perdoai-me!”
Dizia o cavaleiro humildemente...
“Perdoai-me, Beatriz... Não vos mereço.
Às estrelas não chega a voz dos sapos...”

De olhos no chão, Beatriz petrificada
Era uma estátua ali. Penhores de vida,
Só se lhe viam no arquejar do peito
E nas brilhantes, silenciosas lágrimas,
Que lhe corriam copiosamente
Das transparentes pálpebras descidas...

“Perdoai-me, Beatriz!” tornava Sancho.

Chorando, nada a moça respondia.
De súbito, porém, limpando os olhos
E animada por essa misteriosa
Força com que a fé viva vigoriza
Os seres mais débeis nos mais rudes lances,
Ei-la que diz com singular firmeza:
 “Meu muito amado irmão em Jesus Cristo,
De joelhos vos peço e vos suplico
 Que em mim vejais apenas uma escrava
Do alto Deus a quem fiz solenes votos!”
E afastou-se, osculando as contas d'âmbar...

VI
Pouco depois, num abafado dia
De suão abrasador, roncava o ilustre
Dom Guterre, dormindo a sua sesta,
Quando acordado foi pela voz do obeso
Dom Bento da Santíssima Trindade.

 “A pé! A pé!” dizia o crúzio. “Erguei-vos
“E abri esses ouvidos bem abertos,
“Que vos trago uma nova de importância!”

O fidalgo sentou-se então na cama,
Os olhos esfregou, espreguiçou-se,
Três vezes bocejou e, finalmente,
Como quem salta, contrariado, a um tanque,
Em fralda, para o chão pulou num pulo
Que fez estremecer a casa toda.

Numa vasta cadeira espapaçado
E enxugando o cachaço d’elefante
Onde o suor brilhava em camarinhas,
Dom Bento, quando viu o irmão vestido,
Com a fofa e guedelhuda mão puxou-o
Pela golpeada manga do pelote,
E gravemente disse-lhe em voz baixa:
 “Esse primo Dom Sancho, é necessário
Pô-lo a andar quanto antes desta casa!”
Abrindo a boca num bocejo novo,
Dom Guterre os seus olhos arregala
Sem nada perceber.
Então o crúzio
Elucida-o:
 — “Sabeis como Dom Sancho
Há dias me falou de seus maiores,
E como do que ouvi deduzi logo
O parentesco que com ele temos;
Mas o que não sabeis, nem eu sabia,
É que esse moço, por seu pai, descende
Do celebrado e voluptuoso conde
Dom Garcia Fernandez, alto príncipe
Cujas mãos diabólicas possuíam
O funesto poder, o poder mágico
De endoidecer d'amor as mulheres todas,
Todas! velhas e novas, sem diferença,
A ponto que ele próprio as escondia,
Para evitar tragédias, se avistava
Qualquer nobre matrona já caduca...
Esse conde morreu, é certo, há muito,
Porém, o venerando manuscrito
Onde forrageei estas noticias
Acrescenta — abri bem esses ouvidos,
Que ê nisto que está toda a gravidade! —
Acrescenta que a mágica influência
Das mãos de Dom Garcia continua
Em todos os varões seus descendentes!
Aqui tendes! E agora com prudência
Se quereis evitar um grande escândalo,
Imponde sem demora o castelhano,
E, antes disso, ordenai ao curandeiro
Que não lhe desentrape as mãos perigosas
Enquanto hóspede for deste palácio!”

Com seu alto e risonho cepticismo
Dom Guterre exclamou, de mão na ilharga:
 “Pois quê? acreditais nessas patranhas?”

 “Patranhas, não!” atalha logo o crúzio,
Aprumando-se, grave, na cadeira:
“O autor do manuscrito onde li isto
Foi um sério varão, honesto e sábio,
Incapaz de mentir; e a rajão mesmo
Nos observa que o caso, sendo estranho,
Bem pode ter seus visos de verdade.
Reparai bem: por seu variado aspecto,
Pela própria cor e pelos movimentos,
Mãos há que são fieis espelhos d'almas.
Há mãos contentes, como há mãos bisonhas,
Mãos frívolas e mãos meditativas,
Umas ingênuas, outras depravadas.
Eco e instrumento de paixões diversas,
É a mão que maldiz e que abençoa,
É a mão que mata e a mão que acaricia,
É a mão que sustém e que despenha;
Jubilosa, se dá, triste, se pede,
Lúbrica, ao afagar desnudo flanco,
Piedosa, ao abrochar fria mortalha,
Enérgica, empunhando um gládio heroico,
Frouxa, embainhando uma vencida espada,
Receosa, apalpando um filho doente,
Vilíssima, compondo atroz veneno,
Puríssima, enfeitando um altar com flores!
Vede que expressão vária as mãos acusam
Conforme rejam, pálidas, erguidas,
Ou se torcem, convulsas, com remorsos,
Ou, estranguladoras, se enclavinham,
Ou acariciadoras, se aveludam,
Ou se espalmam, com os dedos distendidos,
Numa suprema crise de amargura,
Como as da Santa Virgem no Calvário!
As mãos falam, irmão, as mãos revelam
Tudo quanto cá dentro está escondido,
E, quando eloquentes, tanto podem
Conduzir-nos ao Céu como ao Inferno!”

 “Se o que direis das mãos é verdadeiro”,
Com ironia atalha o velho alcaide,
“Bem devo eu esconder estas que vedes,
Não me vão elas chocalhar pelo mundo
O saco de misérias da minh’alma...”

 “Por Deus! senhor irmão, não tombeis disto!”
Diz Dom Bento. “Oxalá que aqui em breve
Não se junte a Desgraça com a Vergonha!
Cumpri o meu dever! Ride à vontade
Já que entendeis que o caso é para risos...”

E, furioso, agastado, foi-se embora.

VII
Assim que o irmão partiu, foi Dom Guterre
Contar logo às senhoras quanto ouvira.

Achavam-se elas todas no discreto
“Quarto da fruta”, vasta e fresca sala
De cujo teto, roxos e dourados,
Pendiam grandes, belos cachos d'uvas,
Futuro mimo de hibernais merendas.
Fiava Dona Mor; Beatriz, atenta,
Bordava ao bastidor um brasão d'armas,
Na argêntea lhama dum xairel de gala,
E Dona Iseu tocava a dobadoura...

Ao contrário do que ele supusera,
A notícia trazida pelo crúzio,
Longe de as fazer rir, deixou nas damas
Uma funda impressão terrificante.
Debalde Dom Guterre as excitava,
Tecendo sobre o caso mil facécias,
Que da esposa e da filha rudemente
Os sensíveis ouvidos melindravam,
Como anedotas vãs, inoportunas,
Contadas numa câmara mortuária.
Dona Mor, com o cenho carrancudo,
Acremente falava da imprudência
De dar pousada a um desconhecido;
A velha Dona Iseu, dissimulando
Toda a perturbação que lhe ia n'alma,
Murmurava palavras de esconjuro;
E Beatriz, pensando na delícia
De se ver no mosteiro dos seus sonhos,
Bem longe das torpezas desta vida,
Distraída, picava-se com a agulha
E no lenço enxugava o dedo em sangue...

Desapontado então e acastelando
Graves e filosóficos juízos
Sobre a simplicidade das mulheres,
Foi-se o velho dali e encaminhou-se
Para o quarto de Sancho a passos lentos...

Era excelente o humor que nesse instante
Animava o mancebo. Muito embora
Quatro dias houvessem deslizado
Sem que ele visse a delicada prima,
Sem lhe ter escutado a voz ao menos,
Funda alegria lhe dourava o peito,
Nascida do palpite inexplicável,
Palpite que era quase uma certeza,
De que veria em breve os seus anseios
Docemente escutados, de que em breve
Com a sua linda noiva ajoelharia
Aos pés dum altar em cujo supedâneo
Dom Bento da Santíssima Trindade,
Resplandecente d'ouro e de diamantes,
Lhes lançaria, sumptuoso, a benção,
Ao cristalino repicar dos sinos...

Nesses sonhos d'amor se deliciara
Sancho durante passageiras horas,
E deles viera numa plenitude
De alegria que, ardente, ressumbrava,
Ao falar com o sogro presuntivo,
Pela animação dos olhos e dos gestos
E sobretudo pela eloquência estranha
Que fazia faiscar suas palavras.

Resvalara a conversa para a luta
Ferida em Toro havia pouco tempo,
E como o velho desejasse muito
Notícias ter da épica aventura
De Duarte d'Almeida, o bravo Sancho,
Que desse lance fora testemunha,
Tudo pintou em pinceladas vivas,
Pondo viva defronte do fidalgo
A admirável figura do alferes-mártir,
Cheio de heroico ardor, cheio de sangue,
Segurando com os dentes e com os cotos
A bandeira da pátria lusitana,
Enquanto as suas pobres mãos cortadas,
Brancas, exangues como lírios doentes,
Pisadas eram pelos inimigos
Que de roldão fugiam desvairados.
Enaltecendo a alheia valentia,
Sancho, inconsciente, enaltecia a sua,
Tal o calor com que evocava aos gritos
Os feitos de maior heroicidade.

Ouvindo-lhe a espantosa narrativa
Em que transparecia, pura e clara,
A beleza sublime da sua alma
Ao mesmo tempo ardente e compassiva,
Mais Dom Guterre achava caluniosa
A suspeita aventada por Dom Bento,
E mais se lhe arreigava a doce ideia
De fazer desse nobre cavaleiro
O noivo-redentor de sua filha.

VIII
No entanto, as três senhoras aterradas
Com o que Dom Guterre lhes dissera,
Interrompido haviam seus trabalhos
E cada uma delas, recolhendo
A sua própria alcova, procurava
Na meditação grave e no silêncio
Qualquer meio eficaz de defender-se
Das tentações do jovem desterrado.

A altiva Dona Mor, em cujos olhos
Crescera a glacial severidade
Com que os seus familiares oprimia,
Era uma dama de altas, intangíveis
Mas frígidas virtudes. Orgulhosa,
Seu orgulho tolhia na sua alma
O florejar dos sentimentos meigos.
De mães e esposas sempre claro espelho,
Nem uma vez a sofreada estima
Que votava ao marido afetuoso
Se abrira num sorriso de ternura;
E o invariável beijo que ela punha
Na ebúrnea testa da graciosa filha,
Quando a loira Beatriz ia deitar-se,
Tinha a dura, metálica frieza
Dum firmai carregando em branda cera,
Era como que o selo com que à noite
Invariavelmente chancelava
Seus direitos de mãe e de senhora.

D'alma e corpo insensível, hibernando
Em permanente e rígida apatia
De sentidos, jamais se lhe exaltara
Um desejo no corpo, um anseio n'alma,
Jamais se lhe abrasara o frio sangue
Na visão dum capricho adulterino;
E havia então de ser agora, quando
Se acercava a velhice, após tão lisa,
Tão serena e tão límpida existência,
Que ela, esquecendo tudo, desceria
Do inferno os degraus incandescentes,
Por duas mãos infames arrastada?
Não! Não era possível!

 “No entretanto”,
Pensava Dona Mor, “se nenhum medo
Tenho dos homens, já não digo o mesmo
Das manhas e artifícios do Diabo,
Que entrando em severíssimas clausuras
E alcançando recônditos cenóbios,
Tanta vez faz ruir da castidade
As mais inexpugnáveis fortalezas!
E pode alguém ter dúvidas acaso
Sobre a origem satânica do torpe
Do execrável poder das mãos de Sancho?”

Estas razões seguindo, a nobre dama
Consigo mesmo ali determinava
Partir com a filha para a sua quinta
De Vinhas Mortas, caso Dom Guterre
Não despedisse em vinte e quatro horas
O moço dos lascivos sortilégios.

Dona Iseu de Aboim, vetusta dona,
Se os não tinha, roçava pelos setenta,
Circunstância cruel que deveria
Excluí-la dos perigos iminentes.
Mas costumada a ouvir a todo o instante
(Sem perceber a troça do estribilho)
Que estava otimamente conservada,
Que humilhava as mocinhas mais viçosas,
Intimamente enfim se convencera
De que as mãos liberais do bom Destino,
Dando-lhe uma infinita mocidade,
A tinham preservado da velhice,
Tal como haviam feito, noutros tempos,
Segundo a lenda reza, a Helena, a linda,
Láctea filha de Tíndaro e de Leda,
Que aos cem anos ainda possuía
As graças e a frescura dos dezoito.
Desde a sua longínqua puberdade
Sentira grande, decidida queda
Para os doces enredos amorosos;
E mal via um varão, caduco ou moço,
Logo o desejo lhe assaltava o espírito
De lançar-se, arrojada, de cabeça,
Da paixão nos abismos mais profundos.

Finalmente casada com um primo
Molengão e enfermiço, cujo corpo
Era um canteiro eterno de leicenços,
O antegozado e ansiado matrimônio
Foi-lhe uma decepção tristonha, amarga,
Uma rosa esfolhada ao ser colhida...
Enviuvou depois... Gentil viúva,
Em rigoroso dó, ficou à espera
Que a sábia Providência a desforrasse,
Trazendo-lhe pela mão o Cavaleiro,
Esbelto e namorado, dos seus sonhos,
O alto Cavaleiro que devia
Abrasá-la d'amor, atravessando-lhe
O irrequieto sangue comas faúlhas
Dos seus divinos beijos langorosos...
Porém a Providência nesses tempos
Já começava a estar um pouco surda...
Sempre à espera do Eleito da sua alma,
Esqueceu-se a viúva de que os anos
Iam passando inexoravelmente
Com asas nos seus pés; e já dobrado
O tormentoso cabo dos sessenta,
Ainda Dona Iseu ia tão lesta
Atrás do louro Amor, que muitas vezes
Dona Mor intervinha asperamente,
Machucando-lhe os loucos devaneios,
Que seriam, no povo divulgados,
O escandaloso escárnio da família.

Assim, nessa africana e longa tarde,
Enquanto Dona Mor e sua filha,
Cada uma em seu quarto, vão ideando
Traças subtis que possam defendê-las,
Encorajando a feminil tibieza,
Uma na prece humilde, outra no orgulho,
A velha Dona Iseu, como um castelo
Que, em vez de resistir, as portas abre,
Já se prepara para o sacrifício,
E querendo, vaidosa, que a derrota
Não venha surpreendê-la em desalinho,
Mas com o decoro, sim, de roupas brancas
Próprio de sua ilustre jerarquia,
Dum velho e chapeado arcaz flamengo
Tira uma anágua de espumosas rendas,
Uma camisa de aracnídeo lenço,
Um par de meias, que, na mão premidas,
Duma noz o volume alcançariam,
E, completando o seu trajar de vítima,
Uns agudos chapins, uma radiante,
Bela touca de felpa d'ouro fiado,
E uma opa roxa, de veludo brando,
Com botões sumptuosos de ametista.

Quanto a Beatriz, assim que entrou na alcova,
Ante uma Virgem se ajoelhou, de prata,
Ingênua estatueta bizantina
De cabochões e esmaltes enfeitada,
Que, havia muitos anos, a Rainha
Dona Filipa de Lencastre dera
A mãe de Dona Mor.
De mãos erguidas,
De comoção tremendo e de receio,
Com tal fervor jamais Beatriz rezara...

Mas enquanto que as preces dessa alminha
Noutros momentos de tristeza e angústia
Logravam animar a imagem santa
Que lhe sorria bem visivelmente
Com promessas suavíssimas de amparo,
Desta feita, por mais que a virgem loira
Suplicasse e gemesse, de joelhos,
A Mãe de Deus quedava-se indiferente
Com a boca cerrada e os olhos quedos.

Essa figura bela e compassiva
Que tanta vez parecera humanizar-se
Tal como se o metal de que era feita,
Em nervos, carne e sangue se mudara;
Essa figura que, em passados dias,
Toda animada pela divina graça,
Palpitava qual viva criatura,
Envolvendo a donzela suplicante
Em doces véus de compaixão celeste;
Essa figura, agora, no momento
Em que Beatriz se via arrebatada
Num redemoinho de aflição suprema,
Inexpressiva, inerte, cega e muda,
Era somente uma preciosa alfaia
Anquilosada nas severas linhas
Da sua fria, hierática atitude.

Arremessada do jardim, de súbito,
Entra pela janela e cai no soalho,
Junto de Beatriz, cândida rosa
Em cujos róseos tons se acusa o pejo
Duma virgem no banho surpreendida.

Quem na atirou? De certo foi Dom Sancho
Que, no desejo de alcançar depressa
De seus desejos lúbricos o fito,
Cansado de esperar que o curandeiro
Lhe desvelasse as mãos irresistíveis,
E pecadoramente, como aquele
Que duma ingênua criancinha abusa,
Fazia dessa rosa imaculada
A embaixatriz de seus rogais intuitos.

Ante esse lindo mas perverso ultraje.
Num ímpeto, Beatriz tomou a rosa
Para a lançar bem longe, mas vencida
Pelos lânguidos filtros que exalava,
Não teve mão em si que a não cheirasse
Mais de perto, e, ao chegá-la ao pé da boca,
Sentiu que uma torrente impetuosa
De fogo vivo lhe corria as veias,
E que uma chama lhe crestava os lábios,
Que entre as macias pétalas acharam,
Ainda quente e a palpitar, um beijo!
Lanceada de escrúpulos, tremendo,
Enojada de si como se acaso
Os dois braços violentos a cingissem
Dum sátiro baboso e cabeludo,
Então Beatriz caiu desamparada
Sobre o seu leitozinho de donzela,
Com a impressão de que dentro do seu peito
Rudemente um moinho velejava
Dum furacão às chicotadas doidas!
Aflitivo garrote de soluços
Duramente apertava-lhe a garganta;
Dentro da sua cabecinha loira
Estouravam pelouros e bombardas;
Rútilas chamas de infernal violência
Requeimavam, cruéis, seus olhos verdes;
Até que enfim, com os ímpetos furiosos
Dum oceano irado rebentando um dique,
Toda essa dor profunda e lancinante
Rompeu num grande temporal de lágrimas.
Chorou... chorou... chorou como um menino
Perdido num pinhal à meia-noite!
Chorou... chorou... chorou... mas o seu choro,
A princípio convulso e desabrido,
Como se repuxasse fortemente
Do seu coração trêmulo, apertado
Pela brônzea manopla dum guerreiro,
A pouco e pouco foi tomando um ritmo
Velado e manso, de silvestre fonte
Gotejando em fraguedos afofados
D'avencas verdes e sedosos musgos;
A pouco e pouco foi amolecendo
Aquela cruciantíssima amargura,
Lançando enfim a extenuada moça
Numa quase gostosa sonolência...
Agora, dormitando, parecia-lhe
Que flutuava sobre nuvens brandas
Na mansidão violácea do crepúsculo...
A delicada rosa, que os seus dedos
Inocentes ainda seguravam,
De novo a perturbou, embalsamando-a
Numa onda de vagos amavios...
Então julgou Beatriz ver no ar suspensas
Duas fosforescências que desciam
Sobre a sua cabeça, lentamente,
Tomando, lentamente, a estranha forma
De duas mãos singularmente belas...
P'ra ver melhor, Beatriz cerrou os olhos...
E as duas mãos desciam sempre, sempre,
Cada vez mais distintas e formosas,
Agitando-se em leves movimentos
De imploração fremente e apaixonada,
Como se fossem as dum anjo cego
A procura duma alma fugitiva...
Mãos de beleza nunca vista, feitas
Duma vaga matéria luminosa
Parecendo ao mesmo tempo astros e flores,
Movendo-se num halo de perfumes
E desenhando nos macios gestos
Promessas, que eram hinos de ventura,
Súplicas, que eram beijos ajoelhados,
Bem via Beatriz que mãos tão lindas
Não as tinha criado o escuro inferno,
Mas que eram lírios, sim, enraizados
Num puro coração que Deus enchera
De transcendentes sonhos de Beleza!
E as mãos desciam sempre, e já tão perto
Do rosto estavam da gentil dormente
Que o bafo dela refluía delas
Escaldando-lhe as faces pudibundas.
E as mãos por fim tocaram-na! em tão doce
Tão delicada e lânguida carícia,
Que Beatriz estremeceu ditosa
E caiu num delíquio, qual se fora
Levada ao Paraíso pelos anjos...

Mas, repentinamente, abriu-se a porta
E de candil na mão, eis que Ana Mosca
Entrou para vestir a sua joia.
Do seu bem curto sono estrovinhada,
Semitonta, Beatriz desceu do leito,
E alisando a lã alva do vestido,
Que a pressão do seu corpo amarfanhara,
Dessa lã lhe parecia levantar-se,
Às ligeiras pancadas de seus dedos,
Uma pulverescência luminosa,
Talvez a poeira d'ouro do caminho
Dos amorosos sonhos, onde andara
E donde agora vinha outra, sentindo
Dentro dum corpo novo uma alma nova.

E olhou p'ra a Virgem novamente: e a Virgem
Sorriu-lhe cheia de materna graça,
Encorajando-lhe a paixão nascente
E aconselhando-a a ajoelhar submissa
Aos pés do Amor que, perto, lhe acenava
Com uma capela de inocentes rosas.

Então Beatriz, chilreando, entreabre um cofre
E dele tira, já vaidosa e rindo,
Uma crespina de custosas pérolas,
Dois anéis resplendentes de diamantes,
De rubis uma dupla gargantilha,
E pede a Ana o seu vestido verde,
Feito de tesa lhama em cujo fundo
Grandes pinhas refulgem d'ouro ardente.

 “Penteia-me depressa e põe-me linda!”
Diz Beatriz, sentando-se num banco
De morado veludo recoberto.

E a boa da Ana Mosca, atarantada
Com aquela mudança repentina,
Entre os dentes meteu o pente ebúrneo
E começou a desfazer-lhe as trancas...

IX
Nessa noite, ao entrar na vasta sala
Onde a opípara ceia fumegava,
Não se conteve o ilustre Dom Guterre
Que não soltasse logo uma sonora
E retumbante exclamação de pasmo,
Vendo, ao ruivo clarão bruxuleante
Dos tocheiros chumbados na parede,
O faustoso trajar das três senhoras,
Que ali estavam de pé, hirtas e mudas,
Numa pompa de boda principesca.
Todas elas, vestindo-se p'ra a ceia,
O pensamento tinham posto em Sancho,
Até a fria Dona Mor!... e todas,
Não vendo que dess'arte trairiam
Os seus mais escondidos sentimentos,
E entregando, indefesa, a consciência
A implacável força do destino,
Todas elas se tinham preparado
Com tão dengues apuros de elegância
Como se cada uma nessa noite
Bailar devesse nos salões da corte.

 “Mas que é isto, Senhoras? Temos festa?”
Dizia Dom Guterre examinando-as:
“Virá el-rei cear hoje conosco?”

E em seguida, mirando-se a si próprio,
Continuou: — “Mas eu é que não devo
Ficar nesta pobreza de beguino!
Dai-me uns momentos, que vou por depressa
O meu pelote novo, a adaga d'ouro,
E o meu chapéu melhor, o de penacho!”

Fez menção de sair: mas de repente
Uma ideia o picou, áspide viva,
Petrificando-o ali e incendiando
Seus olhos que se encheram de coriscos.
Da velha Dona Iseu não se admirava;
Mas da esposa e da filha! Quem diria
Que tão pudendas, tão discretas damas,
Renegando, insensatas, num momento,
Todo um passado d’honra e de pureza,
Logo ao primeiro aceno do Diabo,
Sem resistência se lhe entregariam,
E em vez de erguerem frios baluartes
Contra os assaltos da lascívia impura,
Com tal despejo ao seu encontro iriam
Aliciantes galas ostentando?

Doido furor lhe requeimava as fontes:
Domou-se, porém; encaminhou-se
Para a mesa e, chamando a ativa serva,
Que a capricho também se ataviara,
Friamente lhe disse, d'olhos baixos:
 “Chama o senhor Dom Sancho e serve a ceia!”

Quando Dom Sancho entrou airosamente,
Envolto num tabardo de veludo,
Todos viram a íntima surpresa
Com que ele olhava a demudada prima
Em cujo seio virginal, segura
Por um broche de pérolas, sorria
A rosa que o mancebo lhe atirara.

Abancaram à mesa silenciosos...
Ana Mosca servia, e Dom Guterre,
Mexendo a canja e recalcando os ímpetos
Que o coração inquieto lhe infernavam,
Perguntou de repente ao desterrado:
 “Com tamanho calor, que significa
Esse tabardo preto?
 — Quis fazer-vos
Uma surpresa!” diz o moço, erguendo-se;
E então, lançando fora a negra capa:
 “Vede como já estou são e escorreito!”
E estendeu sobre a mesa, nuas, brancas,
As suas belas mãos sem ligaduras!

A torre de Babel, pela vez segunda,
Parecia ruir naquela sala,
Tal o terror, a confusão e os gritos
Que a suculenta ceia interromperam.
Dona Mor com as mãos tapava os olhos;
Desmaiando, Beatriz no chão fazia
Rolar dois cuvilhetes de geleia;
Ana Mosca, sem tino, pespegava
Com um leitão assado no regaço
Da pobre Dona Iseu, que, vendo o bicho,
Julgou ver, tão grande era o seu desvairo,
Um fruto já dos seus novos amores;
E Dom Guterre, doido, enfim rendido
Aos prudentes avisos do irmão crúzio,
 “Fujam! Fujam!” dizia às três senhoras;
E ao mesmo tempo, como um Deus irado,
Cerrando os punhos, espumando, aos urros,
Dando patadas que eram terramotos,
Fazia cachoar sobre Dom Sancho
Lufadas de praguentos vitupérios:
 “Fora! Fora daqui, vil castelhano,
Que assim pagas a minha caridade,
Tentando desonrar tão nobre casa!
Fora, vil corruptor!”
Debalde Sancho
Pedia a explicação dessa tormenta,
Dessa onda de insultos que o afogavam;
O velho não no ouvia, e arrebatado
Pela ira mais fremente, ei-lo que rompe
A gritar aos criados que se acercam,
Pelo troar das injúrias atraídos:
 “Tirai da minha vista sem demora
Essa imundície humana! Vá, depressa!
Amarrai-o sem dó, ponde-mo fora!
Não quero vê-lo mais! E lá na estrada
Cortai-lhe as mãos obscenas! Que ele veja
Os seus cotos sangrar, por justa pena,
Como sangrando me pintou há pouco
 Os do alferes-mártir! Não lhe ouçais as súplicas!
Cortai-lhe as mãos!”
Então Lourenço Gato,
Porqueiro atarracado, de ar simplório,
Mas como Hércules forte e decidido,
Cumpre, ajudado pelos companheiros,
As ordens do senhor, levando Sancho
Cujos gritos inúteis breve expiram
Rija e barbaramente amordaçados.

X
No pó da estrada, à doce luz da lua,
Todo enleado de cordas, remordendo
A estopa que lhe serve de mordaça,
Debalde o pobre Sancho se contorce,
Cuidando ver chegar a todo o instante
O feroz abegão partido à busca
Do machado que as mãos deve cortar-lhe.

Range o portão da quinta, e dele avança
Não o servo cruel, mas sim o vulto
Airoso de Beatriz que, de joelhos,
Cai desvairadamente ao pé do amante,
E que ao desabafar-lhe a seca boca
De lágrimas piedosas lha refresca...

Quer desatar-lhe os nós das rijas cordas,
Mas os seus dedos são tão delicados
E aqueles nós tão duros! Porém, breve,
O industrioso Amor, que lestamente
Acode sempre aos que lhe são devotos,
Ilumina-a: Beatriz abre a escarcela
Tira um punhado de moedas d'ouro,
Pelos criados as reparte e diz-lhes:
 “Desatai estes nós e retirai-vos!”

Lourenço, deslumbrado, os nós desata,
Com a sinistra o ouro abocetando,
Mas depois cai em si, e então objeta:
 “E o que hei de eu responder quando o meu amo
Me perguntar pelas mãos deste fidalgo?”

 “Olha!” volve Beatriz, auxiliada
Novamente pelo Amor, e aurificando
De novo as mãos do sórdido porqueiro;
“Na forca ao pé do rio, ontem à tarde,
Um enforcado vi; vai lá, correndo,
Corta-lhe as mãos e, ensopando-as ambas
 “Dum animal qualquer no sangue quente,
“Leva-as depois ao teu senhor!”
Lourenço
E os outros serviçais, contando as moedas,
Partem, chalreando, em direção do rio,
No instante em que o abegão enfim regressa,
Cantarolando, de machado ao ombro.

 “E agora foge!” diz Beatriz a Sancho
Que as mãos lhe aperta comovidamente:
“Tens amigos em Coimbra, que um te esconda,
E que amanhã vá ter comigo à igreja
De Santa Clara, mal desponte o dia.
Por ele saberás noticias minhas...
Adeus l Tem fé em mim!”
Um longo beijo
Docemente casou aquelas almas
Sob a benção puríssima da lua...

Partiu Sancho.
Beatriz, voltando a casa,
Pé ante pé, parou junto da sala,
Onde seu pobre pai, numa estadela,
Amarrotado e triste, era o joguete
De dois contraditórios sentimentos:
Dum lado, a sua natural bondade,
Do outro, o seu orgulho vigilante.
Orgulhoso, parecia-lhe ainda escasso
O castigo inumano que impusera,
Mas, bondoso, acusava-se a si próprio
De tão duro ter sido e tão severo.
Umas vezes rugia, outras chorava...
E Beatriz, a meiga e compassiva,
Vendo-o sofrer assim, ânsias sentia
De ir sossegá-lo, de contar-lhe tudo,
De lhe abrir os segredos da sua alma;
Mas o receio de que aquela sanha,
Tudo sabendo, logo se ateasse,
Acobardou-a, cautelosamente,
Que um pai é muito, mas bem mais um noivo...

E uma hora passou... até que ao cabo
Dessa hora secular, inextinguível,
Bárbara estropeada fez ouvir-se:
Os criados voltavam, tendo à frente
Lourenço Gato, que nas mãos trazia
Uma pequena trouxa ensanguentada.

 “O que irares ai?” grita o fidalgo,
Mais pálido ficando que um defunto.

 “Cumpridas são, senhor, as vossas ordens!”
Diz o porqueiro.
Dom Guterre, erguendo-se,
Aperta as mãos convulsas na cabeça,
Quer falar e não pode, cai redondo
Na orgulhosa estadela de carvalho,
Bate fortes punhadas nos joelhos,
Pucha as guedelhas num furor leonino
E rompe enfim:
 — “O que é que vós fizestes?
“Pois não vistes, estúpidos! que eu estava
Doido, doido de todo, quando há pouco
Vos disse o que vos disse, delirando?
E cortastes-lhe as mãos? Ah! miseráveis,
 E trajeis-me essas mãos? Ah! por piedade,
Não rias mostreis! Levai-as, escondei-mas!”

Nisto soam ao longe três pancadas
No portão, ecoando cavamente,
Como argoladas lúgubres batidas,
No pavoroso dia do Juízo,
Pela própria mão de Deus, à brônzea porta
Do mausoléu dum imperador perverso!

 “Quem será? Ide ver!”
Passado um instante,
Volta um dos servos que a seu amo entrega
Uma carta selada.
Dom Guterre
Ergue-se lentamente, cambaleando,
Aproxima-se mais dum dos tocheiros,
Quebra o lacre que fecha o pergaminho,
E a meia-voz, sempre a hesitar, soletra
As seguintes palavras de Dom Bento:
Senhor Irmão: “Tal peso estou sentindo
Sobre a minha consciência atribulada,
Que, não podendo ir já, visto que a regra
Me impede de sair caída a noite,
Venho por estas leiras desdizer-me
Do que sobre Dom Sancho vos disse hoje.
Folheando aquele livro de linhagens
Que me levara a imaginar Dom Sancho
Neto do antigo conde Dom Garcia,
Nele acabo de achar uma apostila
Donde se vê que o vosso hóspede ilustre
Nada tem de comum com o mesmo conde.
Confesso humildemente o meu engano,
E em pessoa, amanhã, mal rompa o dia,
Irei pedir perdão ao nobre moço
Do agravo que lhe fiz por falsa crença.”

Lívido, amarfanhando o pergaminho
Numa louca explosão de desespero,
Torcendo as mãos, o desvairado velho
Grita para os atônitos criados:
 “O que eu fiz! O que eu fiz a um inocente!
Por verdade aceitando uma calúnia,
E uma calúnia pueril t sem mesmo
Primeiro o ter interrogado e ouvido,
Eis que de raiva num fatal assomo,
Num incendiado acesso de loucura,
Lhe fiz cortar as mãos, como se o pobre
Fosse um vil rogador ou um parricida!
Mas que fadeis aí? Ide buscá-lo!
Ide! Correi! Trazei-mo sem demora!
E não no magoeis, tende cuidado!
Vamos! Trajei-mo já! E tu, Lourenço,
Corre a Coimbra, chama quem no cure,
Chama um físico, dois... quantos achares!”

Mas Beatriz, surgindo de repente,
Beatriz que tudo ouviu, chorando e rindo,
Corre a abraçar seu pai:
 “Meu Pai, sossega!
Sancho, o querido Sancho da minh’alma,
Nem uma gota só perdeu de sangue!
Mandaste-lhe cortar as mãos, é certo,
Mas eu, ouvindo a bárbara sentença,
Corri atrás dos servos que o levavam,
Salvei-lhe as mãos pelas quais eu dera as minhas,
E para te enganar, disse a Lourenço
Que viesse entregar te as dum enforcado
Que eu tinha visto a baloiçar na forca!”

 “Será verdade, filha, o que me dizes?”
Pergunta D. Guterre: “Mas aquelas
(E aponta para a trouxa ensanguentada)
Inda tintas estão de sangue fresco!”

“Mas ê dum galo!”, diz Lourenço Gato.”

E Beatriz prossegue carinhosa:
 “Enganamos-te Pai! mas tu perdoas,
Não é verdade? Foi por bem o engano,
Que tu não eras tu dando tal ordem!”

 “Ah! Deus te pague, filha da minh'alma,
Que, salvando-o, a mim próprio me salvaste,
Porque se ele morresse, eu morreria
Devorado de penas e remorsos!
Mas onde é que ele está! Quero pedir-lhe
De joelhos, sim, filha, de joelhos,
Que me perdoe, que esqueça o que lhe disse,
Que tenha dó de mim! Quero abraçar-vos,
A ele e a ti no mesmo estreito abraço!
Mas onde é que ele está? Onde está ele?”

 “Não sei, não sei...” diz Beatriz corando
“Não sei... mas amanhã, de manhãzinha,
“Logo que rompa o sol hei de trazer-to,
“Para que tu nos abençoes a ambos!”

Pai e filha abraçaram-se chorando

XI
Sancho e Beatriz casaram...
Alguns dias
Depois da alegre e sumptuosa boda,
Por mansa e rósea tarde de setembro,
Dom Guterre e Dom Bento caminhavam
A beira do Mondego, conversando
Sobre coisas da sua mocidade,
Quando entre os salgueirais viram ao longe
Sancho e Beatriz que iam de braço dado...
E o crúzio exclama:
 “Como são felizes!
“E pensar eu que só por um milagre
É que não destruí tanta ventura!
Eu é que merecia as mãos cortadas!
Não digo as mãos, mas, sim, estas orelhas
Que surdas sejam se não cobram tino!
Vá lá a gente acreditar naquilo
“Que o mundo diz! A voz do mundo é falsa,
Não é a voz de Deus! Dá-nos por tolos
Os que menos o são, e por virtuosos,
Ladrões capares de roubar seus filhos!
Eu é que tenho sido um bom palerma,
Acreditando em tudo o que me dizem...
Mas agora já sei, ninguém me engana!
Do Prior-mor de Santa Cruz, dizia-se,
Antes de o escolhermos, que era um sábio
E mais que um sábio, um santo; eis se não quando
Nos sai, assim que ao báculo se arrima,
Além dum mariola, um grande bruto...”

Escurecia...
Sempre conversando,
Os dois irmãos voltavam para casa
Quando os dois noivos foram ter com eles,
Rompendo alegres dentre madressilvas;
Rio acima singrava um barco à vela;
E das Trindades o saudoso toque,
Alagando de unção religiosa
As ínsulas de nebrina fumegantes,
Vibrava ali bem perto, em Santa Clara,
Num cristalino repicar de sinos...

Coimbra, 24 de dezembro de 1915.

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