
CONTO EM VERSOS
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I
AO GRANDE
ESTATUÁRIO
ANTÔNIO
TEIXEIRA LOPES
...
las hermosas manos del Conde
Don
Garci Fernandez,cconquistavan
la
inclinacion de todas las mugeres,
por
lo qual las encubria aquel Principe
quando
se las podiam ver personas de su atencion.
D. Luiz de
Salazar y Castro: Historia de la Casa de
Lara
Dia de Santa
Clara.
Na janela
Já as frinchas
se azulam como veias,
Quando Dom
Sancho Sánchez de Moscoso,
Depois dum
sono regalado, acorda
Ao cristalino
repicar dos sinos,
Que tilintam
na torre do mosteiro
Onde, entre
círios, orações e rosas,
As cinzas
dormem da Rainha Santa.
Defronte, em
Coimbra, os sinos da cidade
Associam-se à
festa: uns galrejando
Como crianças
num jardim em maio;
Outros, de
ansioso, de saudoso timbre,
Desatando-se
em místicos adeuses,
Em despedidas
para a eternidade;
Outros, em
Santa Cruz, cantando glória;
E mais em
cima, dominando-os todos,
Como um aviso
às almas tresmalhadas,
Os da Sé,
retumbando com ameaças
E rouquidões
de temporal distante...
Tão doce
despertar e tão alegre
Não o tinha
Dom Sancho desde a hora
Em que um
fatal desastre aos pés da morte
O arremessara.
Desta feita, o
moço
Acordava sem
dores, antes sentindo
Um bem-estar
delicioso...
Espreguiçou-se
Com a
prudência dos estropiados,
E a cada
movimento ia notando
Que voltava ao
que fora, que de novo
Podia abrir os
braços livremente,
As pernas
esticar, mexer o tronco,
Sem já sentir
uma ligeira sombra
Das guinadas
cruéis que longo tempo
O tinham
consumido nesse leito,
Arrancando-lhe
gritos aflitivos
E
encharcando-lhe as fontes com suores...
Renascia.
Quebrava-o inda, é certo,
Esse torpor
que na convalescença,
Quebrando o
corpo, quebra os maus desejos,
Em troca
suscitando honestas ânsias
De calmos
dias, de leais afetos;
Sentia ainda
os olhos fatigados
De tanto
haverem procurado embalde
Uma estrela
nas trevas da agonia;
Mas ao
contrário das manhas passadas,
Em que,
rendido, desejava apenas
Dormir, dormir
indefinidamente
Na abafada
penumbra dessa alcova,
O que ele
agora, inquieto, apetecia
Era a luz
d'ouro e o ar livre, de diamante.
Das nebrinas
rosadas do futuro,
Lindo cantar
chegava aos seus ouvidos,
Penugento
cantar d'alma sereia,
Anunciando em
notas, que eram mimos,
As doçuras dum
próximo noivado;
E Sancho,
embevecido, adormecendo
Desse canto no
berço flexuoso,
Cerrava os
olhos delicadamente,
E
delicadamente via ao longe
De Beatriz a
virginal figura
Deslizando
graciosa entre açucenas,
Ao cristalino
repicar dos sinos...
II
Pouco mais
tinha Sancho de vinte anos.
Órfão de pai
quando contava doze,
Com sua
austera mãe se recolhera
A um severo
palácio em Tordesilhas,
E aí vivera
como bom fidalgo
Em descuidosa
mas honesta estúrdia,
Cavalgando,
monteando e namorando,
Até que um
dia, aos incessantes rogos
Dum primo seu,
D Pedro de Mendanha,
Brioso
alcaide-mor de Castro-Nunho,
Do lusitano
rei seguindo as partes,
Na guerra se
meteu, quase fraterna,
Que em Toro
veio a ter incerto fecho.
Finda a
batalha, achou mimoso exílio
Em Barcelos,
nas margens nemorosas
Do Cávado
sereno, cujas águas
A cada
instante aumentam engrossadas
Pelas saudosas
lágrimas que verte
Deixando a
cada passo um encanto novo.
Soube ele aí
que os bens que possuía
Em Castela, lhos
tinham confiscado
Os católicos
reis. Vendo-se pobre,
Ele, que dias
antes poderia
Aos alqueires
medir o ouro e a prata;
Vendo-se aí
sem lar, tendo possuído
Soberbos paços
de ameadas torres,
Onde talvez
ainda, nessa hora,
Se visse
trapejar ao vento morno
A bandeira com
as armas dos Moscosos;
Vendo-se aí
sem pão, tendo deixado
As suas tulhas
cheias, que podiam
A farta
sustentar por mais dum ano
Uma província
inteira; então lembrou-se
De uma tença
pedir a Afonso Quinto,
E com essa
intenção pôs-se a caminho
De Santarém,
onde pousava a corte.
Passando em
Coimbra, com surpresa alegre,
Lá encontrou
patrícios e parentes,
Exilados
também, que o receberam
Como um
querido irmão ressuscitado.
Sancho levava
pressa, impaciente
De alcançar
bom despacho ao seu pedido;
Mas tão
felizes, tão risonhas horas
Saboreou ali,
em cavalgadas,
Banquetes e
serões, que a breve trecho,
Mandando ao
demo tenças e negócios,
Resolveu
demorar-se uns tantos dias
E arranchar
com os mais numa caçada
Aos javalis,
caçada de fidalgos
De que era promotor
ativo e guapo
Um certo Rui
de Sá, dos Sás ilustres,
Tão destros em
terçar guerreiras armas
Como hábeis em
compor sonoros versos.
Deviam ser uns
vinte os cavaleiros,
Que em
luminoso amanhecer de julho
Saíram da
cidade a trote largo.
Atravessada a
ponte, para a esquerda
Tomaram com
marcial desenvoltura,
E já da
Esperança o monte iam subindo
Quando o vivo
murzelo de Dom Sancho,
Retrocedendo
num galão abrupto,
Rompeu,
desenfreado, em correr doido.
Era Sancho um
acabado cavaleiro,
Mas nesta
ocasião fatal, de nada
As equestres
manhas lhe serviram:
Chapou-se-lhe
o cavalo, e o pobre moço
Violentissimamente
ei-lo cuspido
Sobre os
brutos calhaus duma pedreira,
Onde os amigos
foram encontrá-lo
Exânime, no
chão, com um pé estroncado,
Com as mãos
escalavradas e com a fronte
Amassada, a
sangrar por duas gaivas.
III
Perto dali
ficava a nobre casa
De Dora
Guterre Lopes que, apiedado
Por tal
desgraça, recolheu o ferido
E o ajudou a
deitar na própria cama,
Enquanto a
criadagem, de corrida,
Abalava à
procura de Heitor Pires,
Ervanário,
carcunda e feiticeiro,
E que além
disso, entre Mondego e Douro,
Tinha fama de
ser o mais sabido
Algebrista da
terra portuguesa.
..................................................................
Quando os
sentidos recobrou Dom Sancho,
Já o grotesco
Heitor se fora embora
Depois de lhe
encanar o pé dorido
E de lhe haver
bandado subtilmente
Cabeça e mãos
com alvas ligaduras.
De branco
mascarado, do seu rosto
Só os olhos se
viam, olhos negros,
Pasmados e
febris, quais os do infante
Que exposto
foi numa azinhaga à noite,
E que ao luzir
da estrela d'alva chora
Sem
consciência da dor que o mortifica;
Só seus olhos
se viam e seus lábios
Repuxados num
ricto doloroso
Que descobria
a cintilante alvura
Dos seus
dentes magníficos, de lobo.
— “Onde estou
eu?” disse ele, percorrendo
Do teto, com a
vista, as grossas traves,
E as paredes
forradas de precioso
Guadamecil,
cujos lavores metálicos
Vivamente
brilhavam na penumbra
Tépida e
aveludada do aposento.
Sobre um
solene escano de carvalho,
De ferro chapeado,
qual se fora
Porta de
cubicada fortaleza,
Uns calções,
um pelote esfarrapado,
E um tabardo
poeirento, todos cheios
De sangue
coagulado, rediziam
Da desastrosa
queda a violência.
— “Onde
estou eu?”
Torcendo-se
com dores,
A máscara
voltou e viu ao lado,
Ao pé de si,
um velho cabeludo
De gigantesco
mas risonho aspecto,
Imóvel e
vestido gravemente
Com golpeado
gibão de cetim preto,
Sobre o qual
faiscava uma cadeia
De fuzis
cravejados de esmeraldas.
Era o bom Dom
Guterre, o nobre alcaide
De três fortes
castelos e abastado
Senhor de
quatro vilas portuguesas,
Do conselho
del-rei e pertencente
A veneranda
estirpe de Azevedos.
— “Como estais?” diz a medo Dom Guterre.
— “Morro,
morro de sede!” volve Sancho.
Duma
credencia, toma o ancião hirsuto
Um jarro castelhano
d'alva prata,
Bem lavrado a
cinzel, e enche uma copa
Que o doente
febril bebe dum trago.
— “Mais!
Por piedade, mais!”
E esvaziada
Segunda copa,
o moço os olhos cerra,
Deliciado
momentaneamente.
Mas as dores
recrescem de tal jeito
Que, embora sofredor,
o pobre Sancho
Já não tem mão
em si que não prorrompa
Em altos
gritos de animal trilhado.
Três
longuíssimas noites e três dias
Deslizaram
morosos como lesmas,
Sem que a
tanto sofrer chegasse alívio.
E só depois,
já quando se esgotava
Do suspeito ervanário
o misterioso
Repertório de
emplastros e de unguentos,
É que Sancho
cobrou tênues melhoras,
E conheceu a
extrema caridade
Dessa nobre
família que o acolhera
Como a dileto
filho há muito ausente.
Secundando o
fervor de Dom Guterre
No empenho de
abrandar as dores de Sancho,
Que eram dores
de ferido e expatriado,
Com materna
piedade, ao pé do leito,
Docemente
velavam, noite e dia,
Do bom fidalgo
a majestosa esposa,
Dona Mor de
Menezes, sua filha,
A suave
Beatriz, e uma parenta,
Dona Iseu de
Aboim, velha senhora
Que, tendo
enviuvado e sendo pobre,
Naquele paço
generoso entrara
Onde as portas
do céu abria a todos
Confeccionando
celestiais compotas
E angélicas,
translúcidas geleias.
Dia sim, dia
não, era infalível
Um irmão de
Dom Guterre, o rubicundo
Dom Bento da
Santíssima Trindade,
Frade crúzio e
varão de grandes letras,
Tão grande
canonista como exímio
Cultor da
genealógica ciência.
Quando às
eternas noites desveladas
Outras, mais
bem dormidas, sucederam,
E a estas,
mansos, aliviados dias,
De Sancho o
quarto enorme transformou-se
Em locutório
amável da família.
De lá não se
arredava um só instante
O hercúleo Dom
Guterre, e as três senhoras
Lá se acolhiam
do calor da sesta,
Conversando,
bordando e preparando
Os fios com
que Heitor pensava o doente.
Era o bom Dom
Guterre tão brilhante
Conversador
como na mocidade
Bravo
guerreiro fora; e assim, no intuito
De arejar a
loquela e ao mesmo tempo
De distrair o
hospede, contou-lhe
Em breve prazo
toda a sua vida,
Longa epopeia
de façanhas altas
Com sangue
moço e generoso escritas
Na
Alfarrobeira e na caiada Ceuta;
Epopeia
marcial, entrecortada
De episódios
d'amor que Sancho ouvia
Com interesse
infantil, preferindo a todos
Aquele em que
o fidalgo lhe pintava
Certa escrava
d'Arzila, esbelta e lânguida,
Dançando à tarde
religiosas danças,
Ao som do
adufe que rufava um mouro,
Junto duma
cisterna, entre palmeiras.
Depois de
ouvir, chegou a vez a Sancho
De dar conta
de si: sendo tão novo,
Pouco tinha a
dizer, mas esse pouco
Bastou para
que o crúzio descobrisse
Que era com
Dom Guterre quarto primo
Do jovem
castelhano.
Nessa noite,
Com que
ajoelhada adoração e enlevo,
Com que
ternura Sancho ouviu a loira
E láctea
Beatriz sair da alcova
Dizendo
afável: — “Boas noites, primo!”
IV
Passou-se isto
na véspera do alegre
Dia de Santa
Clara. O moço amante
Pensando em
Beatriz cerrou os olhos,
Dormiu com a
inocência dum menino,
Vendo-a
constantemente nos seus sonhos,
E a pensar
nela despertou ditoso
Ao cristalino
repicar dos sinos.
Amava-a? Sim.
Humilde e fortemente
A amava,
embora mal a conhecesse...
.
Mal lhe tinha
falado um dia ou outro,
Mas a sua
lindeza era tão pura,
A sua voz tão
cheia de amavios
E os seus
amaviosos olhos verdes
Tão enluarados
de candura e sonho,
Que tudo nela
revelava logo
Um desses
raros seres que, exilados
No mundo,
vivem conhecendo apenas
Ânsias de
perfeição e de beleza.
P'ra adivinhar
os lúcidos tesouros
De amor e
mansidão que ela possuía,
Não precisara
Sancho de falar-lhe,
De espreitar,
deslumbrado, a sua alma,
De sondar seus
mais íntimos desejos:
Bastara-lhe só
vê-la aérea e branca,
Sempre alheada
e loira qual se fora
Um anjo
anunciador d'olhos aquáticos
Passando ao
luar, numa missão divina.
Nunca Sancho
sentira o que sentia.
Era mais do
que amor, era uma alta
E funda
adoração extasiada,
Um quase medo
de a possuir um dia,
Como se fosse
um sacrilégio tê-la,
E um desejo
infinito, uma ânsia doida
De sofrer toda
a casta de martírios
Só p'ra
alcançar o saboroso prêmio
De oscular
castamente, de joelhos,
Dos seus
chapins de lhama a aguda ponta.
Assim pensava
Sancho na penumbra
Da sua alcova,
ao repicar dos sinos,
Quando viu, no
retângulo dourado
Da porta que
se abrira de repente,
Recortada a
figura de Ana Mosca,
Ama de
Beatriz.
— “Como
estais hoje?”
Diz a boa
mulher, no quarto entrando.
— “Deus
te pague o cuidado!” volve Sancho
“Ainda que eu de rojo vos seguisse,
A ti e aos teus senhor s, a vida inteira,
Nem metade da dívida pagara
Que vos devo...
Tão bem passei a noite
E sinto-me tão bem agora mesmo,
Que já comigo concertei há pouco
Desta cama sair daqui a um instante.”
— “Louvado
seja Deus!” atalha a serva:
“Grande boda, vereis, farão meus amos
Festejando
com gosto essas melhoras...
Todos vos querem nesta casa...
— Todos!”
Pergunta
Sancho. “Todos? E até mesmo
Beatriz?
— E por que
não? Santa acabada,
É um saquinho d'amor a sua alma,
Saquinho aberto para toda a gente...”
— “E que
eu quisera só p'ra mim aberto!”
Diz Sancho lá
consigo... E continua:
— “Olha,
falemos dela... Acho-a tão triste,
Tão fora de si mesmo, que parece
Que traz a
alma inocente noutro mundo...”
— “Tem
na no céu”, diz Ana; “todos sabem,
Senhor Dom
Sancho, que ela quer ser freira,
Meter-se em
Santa Clara... E lá estaria
Há muitos
meses já, se o pai choroso
Lhe não
pedisse, quase de joelhos,
Que o não
deixasse enquanto fosse vivo,
Que não
partisse sem fechar-lhe os olhos...”
Ouvindo tal e
ouvindo ao mesmo tempo
O cristalino
repicar dos sinos
Que em Santa
Clara, na morena torre,
Chamando os
fieis, anunciavam rindo
Místicos
gozos, hálitos de incenso,
Doces eflúvios
de esmaiadas rosas,
Suspiros
d'órgão, d’embriagar fraguedos,
Doces
palpitações de círios alvos
Refletidas no
ouro das casulas
E nas mansas
safiras da custódia;
Ouvindo tal,
parecia-lhe, a Dom Sancho,
Que na sua
cabeça desvairada
Ruía, aos
golpes de cem catapultas,
Uma cidade
imensa de cem portas!
Ana Mosca
partira...
O cavaleiro,
Rendido por
cruel abatimento,
Longo espaço
ficou cismando triste
Na prematura
ruína dos seus sonhos...
— “Ter
Deus como rival!” dizia Sancho,
Cheio de
íntima dor..."Deus inclemente,
Se para Esposa a tinhas elegido,
Por que é que tão formosa ma mostraste?
“Porque não morri eu antes de vê-la?”
Mas de
repente, em revoltado assomo,
Sobrepondo ao
desânimo do amante
O audacioso
brio do soldado,
A si mesmo se
anima e se encoraja,
Arquitetando
traças engenhosas
De conquistar,
soberbo, a torre ebúrnea
Dentro da qual
Beatriz se recolhera.
Enterrando-se
viva num mosteiro,
Sacrificando
os seus cabelos d'ouro,
Deixando o
mundo, o que buscava ela?
— Aproximar-se da divina glória;
Mas o amor, o
amor forte e verdadeiro
Também conduz
a Deus (pensava Sancho);
O amor
verdadeiro é uma sagrada
Comunhão de
bondade e de beleza,
E aos ouvidos
de Deus, sorvido e dado
Num sublime
delírio de ternura,
Um longo beijo
é uma oração fremente,
Uma antevisão
da glória eterna.
Não, não
queria Sancho desviá-la,
A sua amada,
do bom Deus piedoso,
Mas só que ela
mudasse de caminho
Para ascender
à Bem-aventurança;
Que o
aceitasse como companheiro
Nessa radiosa,
mística viagem
Que os dois
fariam, trêmulos, seguindo
Por doce
estrada de clarões e aromas,
Coroados de
flores, rezando beijos,
E erguendo à
noite, como grandes fachos,
Nas próprias
mãos os corações ardentes.
Nessa manhã,
depois do curativo,
A rogo seu,
foi Sancho transportado
Para uma
sombra do jardim... Sentaram-no,
Entre coxins,
num cadeirão de espaldas,
E aí lhe foi
servido um lauto almoço
Cujas finas
vitualhas rescendiam,
Tentando
mortos, em sonoras pratas.
Dom Guterre
abancara ao pé de Sancho,
E comia
também, falando sempre...
Sobre a mesa
corria uma latada
Toda folhuda,
donde a luz descia,
Sedosa e
mansa, como a dum santuário;
E quando a
viração morna e indolente
Perpassava
entre os pâmpanos espessos,
No chão, a
sombra azul, toda ocelada
D'ouro, como
um pavão armado, tinha
Frémitos
lentos e macios d'água...
Do Mondego nos
choupos, as cigarras,
Nos olivais,
as rolas gemebundas,
E sobre as
alfazemas perfumadas
As douradas
abelhas sussurrantes,
Celebravam em
coro a calma adusta...
Mas
refrescando o ar, ali bem perto,
Uma fonte
cantava, antiga fonte,
Aonde um São
Miguel, de lança em riste,
Dominava um
Diabo monstruoso
Cuja limosa
boca vomitava
Uma espadana
d' água diamantina.
— “Ah!
como é bom viver!... e quanto eu dera
Para ter neste instante a vossa idade!”
Disse o velho,
enxugando o seu bigode
Que uma golada
de espumoso vinho
De rubis
orvalhara, e saboreando
O almoço e o
dia com igual deleite...
— “O
pior... o pior é eu estar tão ruço...”
Continuou ele
com melancolia:
“Amigo, é para vós que está a vida!”
Dizendo isto,
o bom e nobre velho
Olhava
fixamente para Sancho
Cujo rosto, já
sem as ligaduras,
Todo
resplandecia de beleza,
Uma beleza
insinuante e máscula
De Procônsul
romano, moço e forte.
Fitando Sancho
demoradamente,
Reparando no
corte imperioso
Daquela boca
fresca e voluptuosa
Que dizia o
desejo impaciente
De saborear da
vida os frutos todos;
Reparando no
brilho desses olhos
Cheios de
entusiasmo e de ousadia,
Uma esperança
afagava Dom Guterre:
A esperança de
que, em breve, sua filha,
Ao ver Sancho
afinal desmascarado,
Docemente
vencida pelo prestigio
De tão bela e
radiosa mocidade,
Esqueceria os
místicos projetos
Que,
endoidecendo-a com subtis promessas,
Iam tramando o
fim duma família
Das mais ricas
do reino e mais gloriosas.
Foi animado
dessa rósea esperança
Que ele dali
se foi, tanto que ao longe
Viu assomar a
filha.
Regressando
De Santa
Clara, a moça caminhava
Branca e toda
de branco, com uma túnica
Tão
desataviada e tão modesta
Que mais
parecia um hábito de monja
Do que vestido
de donzela nobre.
De precioso só
nas mãos trazia
Umas pesadas
contas d'âmbar pálido
Donde pendia
um crucifixo d'ouro.
Estremeceu, ao
vê-la, o cavaleiro
E ocultou
vivamente no tabardo
Suas mãos
entrapadas, não fosse ela
Com aqueles
trambolhos desgostar-se.
Mas a fluida
Beatriz vinha tão longe
Dos homens e
da vida, que somente
O viu quando
ao pé dele era chegada.
Como ave
assustadiça, divisando
Pela primeira
vez tão belo rosto,
Para, corando,
hesita, e só tem força
Para dizer com
voz sumida e trêmula:
—
“Ah!... como estais?”
— Melhor,
infelizmente...”
Diz o moço. E
Beatriz, ingênua, volve:
— “Infelizmente?”
— “Infelizmente, é certo,
Exclama Sancho
com sincera angústia,
“Infelizmente,
porque, enfim curado,
“Sairei daqui e deixarei de ver-vos!”
Uma onda de
pudor soergue os seios
Da tímida
Beatriz, tinge de rosa
Suas pálidas
faces e mareja
De lágrimas
rogais seus olhos verdes.
— “Ofendi-vos,
bem vejo... Perdoai-me!”
Dizia o
cavaleiro humildemente...
“Perdoai-me, Beatriz... Não vos mereço.
Às estrelas não chega a voz dos sapos...”
De olhos no
chão, Beatriz petrificada
Era uma
estátua ali. Penhores de vida,
Só se lhe viam
no arquejar do peito
E nas
brilhantes, silenciosas lágrimas,
Que lhe
corriam copiosamente
Das
transparentes pálpebras descidas...
“Perdoai-me, Beatriz!” tornava
Sancho.
Chorando, nada
a moça respondia.
De súbito,
porém, limpando os olhos
E animada por
essa misteriosa
Força com que
a fé viva vigoriza
Os seres mais
débeis nos mais rudes lances,
Ei-la que diz
com singular firmeza:
— “Meu
muito amado irmão em Jesus Cristo,
De joelhos vos peço e vos suplico
Que em mim
vejais apenas uma escrava
Do alto Deus a quem fiz solenes votos!”
E afastou-se,
osculando as contas d'âmbar...
VI
Pouco depois,
num abafado dia
De suão
abrasador, roncava o ilustre
Dom Guterre,
dormindo a sua sesta,
Quando
acordado foi pela voz do obeso
Dom Bento da
Santíssima Trindade.
— “A pé!
A pé!” dizia o crúzio. “Erguei-vos
“E abri esses ouvidos bem abertos,
“Que vos trago uma nova de importância!”
O fidalgo
sentou-se então na cama,
Os olhos
esfregou, espreguiçou-se,
Três vezes
bocejou e, finalmente,
Como quem
salta, contrariado, a um tanque,
Em fralda,
para o chão pulou num pulo
Que fez
estremecer a casa toda.
Numa vasta
cadeira espapaçado
E enxugando o
cachaço d’elefante
Onde o suor
brilhava em camarinhas,
Dom Bento,
quando viu o irmão vestido,
Com a fofa e
guedelhuda mão puxou-o
Pela golpeada
manga do pelote,
E gravemente
disse-lhe em voz baixa:
— “Esse
primo Dom Sancho, é necessário
Pô-lo a andar quanto antes desta casa!”
Abrindo a boca
num bocejo novo,
Dom Guterre os
seus olhos arregala
Sem nada
perceber.
Então o crúzio
Elucida-o:
— “Sabeis
como Dom Sancho
Há dias me falou de seus maiores,
E como do que ouvi deduzi logo
O parentesco que com ele temos;
Mas o que não sabeis, nem eu sabia,
É que esse moço, por seu pai, descende
Do celebrado e voluptuoso conde
Dom Garcia Fernandez, alto príncipe
Cujas mãos diabólicas possuíam
O funesto poder, o poder mágico
De endoidecer d'amor as mulheres todas,
Todas! velhas e novas, sem diferença,
A ponto que ele próprio as escondia,
Para evitar tragédias, se avistava
Qualquer nobre matrona já caduca...
Esse conde morreu, é certo, há muito,
Porém, o venerando manuscrito
Onde forrageei estas noticias
Acrescenta — abri bem esses ouvidos,
Que ê nisto que está toda a gravidade! —
Acrescenta que a mágica influência
Das mãos de Dom Garcia continua
Em todos os varões seus descendentes!
Aqui tendes! E agora com prudência
Se quereis evitar um grande escândalo,
Imponde sem demora o castelhano,
E, antes disso, ordenai ao curandeiro
Que não lhe desentrape as mãos perigosas
Enquanto hóspede for deste palácio!”
Com seu alto e
risonho cepticismo
Dom Guterre
exclamou, de mão na ilharga:
— “Pois
quê? acreditais nessas patranhas?”
— “Patranhas,
não!” atalha logo o crúzio,
Aprumando-se,
grave, na cadeira:
“O autor do manuscrito onde li isto
Foi um sério varão, honesto e sábio,
Incapaz de mentir; e a rajão mesmo
Nos observa que o caso, sendo estranho,
Bem pode ter seus visos de verdade.
Reparai bem: por seu variado aspecto,
Pela própria cor e pelos movimentos,
Mãos há que são fieis espelhos d'almas.
Há mãos contentes, como há mãos bisonhas,
Mãos frívolas e mãos meditativas,
Umas ingênuas, outras depravadas.
Eco e instrumento de paixões diversas,
É a mão que maldiz e que abençoa,
É a mão que mata e a mão que acaricia,
É a mão que sustém e que despenha;
Jubilosa, se dá, triste, se pede,
Lúbrica, ao afagar desnudo flanco,
Piedosa, ao abrochar fria mortalha,
Enérgica, empunhando um gládio heroico,
Frouxa, embainhando uma vencida espada,
Receosa, apalpando um filho doente,
Vilíssima, compondo atroz veneno,
Puríssima, enfeitando um altar com flores!
Vede que expressão vária as mãos acusam
Conforme rejam, pálidas, erguidas,
Ou se torcem, convulsas, com remorsos,
Ou, estranguladoras, se enclavinham,
Ou acariciadoras, se aveludam,
Ou se espalmam, com os dedos distendidos,
Numa suprema crise de amargura,
Como as da Santa Virgem no Calvário!
As mãos falam, irmão, as mãos revelam
Tudo quanto cá dentro está escondido,
E, quando eloquentes, tanto podem
Conduzir-nos ao Céu como ao Inferno!”
— “Se o
que direis das mãos é verdadeiro”,
Com ironia
atalha o velho alcaide,
“Bem devo eu esconder estas que vedes,
Não me vão elas chocalhar pelo mundo
O saco de misérias da minh’alma...”
— “Por
Deus! senhor irmão, não tombeis disto!”
Diz Dom Bento. “Oxalá que aqui em breve
Não se junte a Desgraça com a Vergonha!
Cumpri o meu dever! Ride à vontade
Já que entendeis que o caso é para risos...”
E, furioso,
agastado, foi-se embora.
VII
Assim que o
irmão partiu, foi Dom Guterre
Contar logo às
senhoras quanto ouvira.
Achavam-se
elas todas no discreto
“Quarto da
fruta”, vasta e fresca sala
De cujo teto,
roxos e dourados,
Pendiam
grandes, belos cachos d'uvas,
Futuro mimo de
hibernais merendas.
Fiava Dona
Mor; Beatriz, atenta,
Bordava ao
bastidor um brasão d'armas,
Na argêntea
lhama dum xairel de gala,
E Dona Iseu
tocava a dobadoura...
Ao contrário
do que ele supusera,
A notícia
trazida pelo crúzio,
Longe de as
fazer rir, deixou nas damas
Uma funda
impressão terrificante.
Debalde Dom
Guterre as excitava,
Tecendo sobre
o caso mil facécias,
Que da esposa
e da filha rudemente
Os sensíveis
ouvidos melindravam,
Como anedotas
vãs, inoportunas,
Contadas numa
câmara mortuária.
Dona Mor, com
o cenho carrancudo,
Acremente
falava da imprudência
De dar pousada
a um desconhecido;
A velha Dona
Iseu, dissimulando
Toda a
perturbação que lhe ia n'alma,
Murmurava
palavras de esconjuro;
E Beatriz,
pensando na delícia
De se ver no
mosteiro dos seus sonhos,
Bem longe das
torpezas desta vida,
Distraída,
picava-se com a agulha
E no lenço
enxugava o dedo em sangue...
Desapontado
então e acastelando
Graves e
filosóficos juízos
Sobre a
simplicidade das mulheres,
Foi-se o velho
dali e encaminhou-se
Para o quarto
de Sancho a passos lentos...
Era excelente
o humor que nesse instante
Animava o
mancebo. Muito embora
Quatro dias
houvessem deslizado
Sem que ele
visse a delicada prima,
Sem lhe ter
escutado a voz ao menos,
Funda alegria
lhe dourava o peito,
Nascida do
palpite inexplicável,
Palpite que
era quase uma certeza,
De que veria
em breve os seus anseios
Docemente
escutados, de que em breve
Com a sua
linda noiva ajoelharia
Aos pés dum
altar em cujo supedâneo
Dom Bento da
Santíssima Trindade,
Resplandecente
d'ouro e de diamantes,
Lhes lançaria,
sumptuoso, a benção,
Ao cristalino
repicar dos sinos...
Nesses sonhos
d'amor se deliciara
Sancho durante
passageiras horas,
E deles viera
numa plenitude
De alegria
que, ardente, ressumbrava,
Ao falar com o
sogro presuntivo,
Pela animação
dos olhos e dos gestos
E sobretudo
pela eloquência estranha
Que fazia
faiscar suas palavras.
Resvalara a
conversa para a luta
Ferida em Toro
havia pouco tempo,
E como o velho
desejasse muito
Notícias ter
da épica aventura
De Duarte
d'Almeida, o bravo Sancho,
Que desse
lance fora testemunha,
Tudo pintou em
pinceladas vivas,
Pondo viva
defronte do fidalgo
A admirável
figura do alferes-mártir,
Cheio de
heroico ardor, cheio de sangue,
Segurando com
os dentes e com os cotos
A bandeira da
pátria lusitana,
Enquanto as
suas pobres mãos cortadas,
Brancas,
exangues como lírios doentes,
Pisadas eram
pelos inimigos
Que de roldão
fugiam desvairados.
Enaltecendo a
alheia valentia,
Sancho,
inconsciente, enaltecia a sua,
Tal o calor
com que evocava aos gritos
Os feitos de
maior heroicidade.
Ouvindo-lhe a
espantosa narrativa
Em que
transparecia, pura e clara,
A beleza
sublime da sua alma
Ao mesmo tempo
ardente e compassiva,
Mais Dom
Guterre achava caluniosa
A suspeita
aventada por Dom Bento,
E mais se lhe
arreigava a doce ideia
De fazer desse
nobre cavaleiro
O
noivo-redentor de sua filha.
VIII
No entanto, as
três senhoras aterradas
Com o que Dom
Guterre lhes dissera,
Interrompido
haviam seus trabalhos
E cada uma
delas, recolhendo
A sua própria
alcova, procurava
Na meditação
grave e no silêncio
Qualquer meio
eficaz de defender-se
Das tentações
do jovem desterrado.
A altiva Dona
Mor, em cujos olhos
Crescera a
glacial severidade
Com que os
seus familiares oprimia,
Era uma dama
de altas, intangíveis
Mas frígidas
virtudes. Orgulhosa,
Seu orgulho
tolhia na sua alma
O florejar dos
sentimentos meigos.
De mães e
esposas sempre claro espelho,
Nem uma vez a
sofreada estima
Que votava ao
marido afetuoso
Se abrira num
sorriso de ternura;
E o invariável
beijo que ela punha
Na ebúrnea
testa da graciosa filha,
Quando a loira
Beatriz ia deitar-se,
Tinha a dura,
metálica frieza
Dum firmai
carregando em branda cera,
Era como que o
selo com que à noite
Invariavelmente
chancelava
Seus direitos
de mãe e de senhora.
D'alma e corpo
insensível, hibernando
Em permanente
e rígida apatia
De sentidos,
jamais se lhe exaltara
Um desejo no
corpo, um anseio n'alma,
Jamais se lhe
abrasara o frio sangue
Na visão dum
capricho adulterino;
E havia então
de ser agora, quando
Se acercava a
velhice, após tão lisa,
Tão serena e
tão límpida existência,
Que ela,
esquecendo tudo, desceria
Do inferno os
degraus incandescentes,
Por duas mãos
infames arrastada?
Não! Não era
possível!
— “No
entretanto”,
Pensava Dona
Mor, “se nenhum medo
Tenho dos homens, já não digo o mesmo
Das manhas e artifícios do Diabo,
Que entrando em severíssimas clausuras
E alcançando recônditos cenóbios,
Tanta vez faz ruir da castidade
As mais inexpugnáveis fortalezas!
E pode alguém ter dúvidas acaso
Sobre a origem satânica do torpe
Do execrável poder das mãos de Sancho?”
Estas razões
seguindo, a nobre dama
Consigo mesmo
ali determinava
Partir com a
filha para a sua quinta
De Vinhas
Mortas, caso Dom Guterre
Não despedisse
em vinte e quatro horas
O moço dos
lascivos sortilégios.
Dona Iseu de
Aboim, vetusta dona,
Se os não
tinha, roçava pelos setenta,
Circunstância
cruel que deveria
Excluí-la dos
perigos iminentes.
Mas costumada
a ouvir a todo o instante
(Sem perceber
a troça do estribilho)
Que estava
otimamente conservada,
Que humilhava
as mocinhas mais viçosas,
Intimamente
enfim se convencera
De que as mãos
liberais do bom Destino,
Dando-lhe uma
infinita mocidade,
A tinham
preservado da velhice,
Tal como
haviam feito, noutros tempos,
Segundo a
lenda reza, a Helena, a linda,
Láctea filha
de Tíndaro e de Leda,
Que aos cem
anos ainda possuía
As graças e a
frescura dos dezoito.
Desde a sua
longínqua puberdade
Sentira
grande, decidida queda
Para os doces
enredos amorosos;
E mal via um
varão, caduco ou moço,
Logo o desejo
lhe assaltava o espírito
De lançar-se,
arrojada, de cabeça,
Da paixão nos
abismos mais profundos.
Finalmente casada
com um primo
Molengão e
enfermiço, cujo corpo
Era um
canteiro eterno de leicenços,
O antegozado e
ansiado matrimônio
Foi-lhe uma
decepção tristonha, amarga,
Uma rosa
esfolhada ao ser colhida...
Enviuvou
depois... Gentil viúva,
Em rigoroso
dó, ficou à espera
Que a sábia
Providência a desforrasse,
Trazendo-lhe
pela mão o Cavaleiro,
Esbelto e
namorado, dos seus sonhos,
O alto
Cavaleiro que devia
Abrasá-la
d'amor, atravessando-lhe
O irrequieto
sangue comas faúlhas
Dos seus
divinos beijos langorosos...
Porém a
Providência nesses tempos
Já começava a
estar um pouco surda...
Sempre à
espera do Eleito da sua alma,
Esqueceu-se a
viúva de que os anos
Iam passando
inexoravelmente
Com asas nos
seus pés; e já dobrado
O tormentoso
cabo dos sessenta,
Ainda Dona
Iseu ia tão lesta
Atrás do louro
Amor, que muitas vezes
Dona Mor
intervinha asperamente,
Machucando-lhe
os loucos devaneios,
Que seriam, no
povo divulgados,
O escandaloso
escárnio da família.
Assim, nessa
africana e longa tarde,
Enquanto Dona
Mor e sua filha,
Cada uma em
seu quarto, vão ideando
Traças subtis
que possam defendê-las,
Encorajando a
feminil tibieza,
Uma na prece
humilde, outra no orgulho,
A velha Dona
Iseu, como um castelo
Que, em vez de
resistir, as portas abre,
Já se prepara
para o sacrifício,
E querendo,
vaidosa, que a derrota
Não venha
surpreendê-la em desalinho,
Mas com o
decoro, sim, de roupas brancas
Próprio de sua
ilustre jerarquia,
Dum velho e
chapeado arcaz flamengo
Tira uma
anágua de espumosas rendas,
Uma camisa de
aracnídeo lenço,
Um par de
meias, que, na mão premidas,
Duma noz o
volume alcançariam,
E, completando
o seu trajar de vítima,
Uns agudos
chapins, uma radiante,
Bela touca de
felpa d'ouro fiado,
E uma opa
roxa, de veludo brando,
Com botões
sumptuosos de ametista.
Quanto a
Beatriz, assim que entrou na alcova,
Ante uma
Virgem se ajoelhou, de prata,
Ingênua
estatueta bizantina
De cabochões e
esmaltes enfeitada,
Que, havia
muitos anos, a Rainha
Dona Filipa de
Lencastre dera
A mãe de Dona
Mor.
De mãos
erguidas,
De comoção
tremendo e de receio,
Com tal fervor
jamais Beatriz rezara...
Mas enquanto
que as preces dessa alminha
Noutros
momentos de tristeza e angústia
Logravam
animar a imagem santa
Que lhe sorria
bem visivelmente
Com promessas
suavíssimas de amparo,
Desta feita,
por mais que a virgem loira
Suplicasse e
gemesse, de joelhos,
A Mãe de Deus
quedava-se indiferente
Com a boca
cerrada e os olhos quedos.
Essa figura
bela e compassiva
Que tanta vez
parecera humanizar-se
Tal como se o
metal de que era feita,
Em nervos,
carne e sangue se mudara;
Essa figura
que, em passados dias,
Toda animada
pela divina graça,
Palpitava qual
viva criatura,
Envolvendo a
donzela suplicante
Em doces véus
de compaixão celeste;
Essa figura,
agora, no momento
Em que Beatriz
se via arrebatada
Num redemoinho
de aflição suprema,
Inexpressiva,
inerte, cega e muda,
Era somente
uma preciosa alfaia
Anquilosada
nas severas linhas
Da sua fria,
hierática atitude.
Arremessada do
jardim, de súbito,
Entra pela
janela e cai no soalho,
Junto de
Beatriz, cândida rosa
Em cujos
róseos tons se acusa o pejo
Duma virgem no
banho surpreendida.
Quem na
atirou? De certo foi Dom Sancho
Que, no desejo
de alcançar depressa
De seus
desejos lúbricos o fito,
Cansado de
esperar que o curandeiro
Lhe desvelasse
as mãos irresistíveis,
E pecadoramente,
como aquele
Que duma
ingênua criancinha abusa,
Fazia dessa
rosa imaculada
A embaixatriz
de seus rogais intuitos.
Ante esse
lindo mas perverso ultraje.
Num ímpeto,
Beatriz tomou a rosa
Para a lançar
bem longe, mas vencida
Pelos
lânguidos filtros que exalava,
Não teve mão
em si que a não cheirasse
Mais de perto,
e, ao chegá-la ao pé da boca,
Sentiu que uma
torrente impetuosa
De fogo vivo
lhe corria as veias,
E que uma
chama lhe crestava os lábios,
Que entre as
macias pétalas acharam,
Ainda quente e
a palpitar, um beijo!
Lanceada de
escrúpulos, tremendo,
Enojada de si
como se acaso
Os dois braços
violentos a cingissem
Dum sátiro
baboso e cabeludo,
Então Beatriz
caiu desamparada
Sobre o seu
leitozinho de donzela,
Com a
impressão de que dentro do seu peito
Rudemente um
moinho velejava
Dum furacão às
chicotadas doidas!
Aflitivo
garrote de soluços
Duramente
apertava-lhe a garganta;
Dentro da sua
cabecinha loira
Estouravam
pelouros e bombardas;
Rútilas chamas
de infernal violência
Requeimavam,
cruéis, seus olhos verdes;
Até que enfim,
com os ímpetos furiosos
Dum oceano
irado rebentando um dique,
Toda essa dor
profunda e lancinante
Rompeu num
grande temporal de lágrimas.
Chorou...
chorou... chorou como um menino
Perdido num
pinhal à meia-noite!
Chorou... chorou...
chorou... mas o seu choro,
A princípio
convulso e desabrido,
Como se
repuxasse fortemente
Do seu coração
trêmulo, apertado
Pela brônzea
manopla dum guerreiro,
A pouco e
pouco foi tomando um ritmo
Velado e
manso, de silvestre fonte
Gotejando em
fraguedos afofados
D'avencas
verdes e sedosos musgos;
A pouco e
pouco foi amolecendo
Aquela
cruciantíssima amargura,
Lançando enfim
a extenuada moça
Numa quase
gostosa sonolência...
Agora,
dormitando, parecia-lhe
Que flutuava
sobre nuvens brandas
Na mansidão violácea
do crepúsculo...
A delicada
rosa, que os seus dedos
Inocentes
ainda seguravam,
De novo a
perturbou, embalsamando-a
Numa onda de
vagos amavios...
Então julgou
Beatriz ver no ar suspensas
Duas
fosforescências que desciam
Sobre a sua
cabeça, lentamente,
Tomando,
lentamente, a estranha forma
De duas mãos
singularmente belas...
P'ra ver
melhor, Beatriz cerrou os olhos...
E as duas mãos
desciam sempre, sempre,
Cada vez mais
distintas e formosas,
Agitando-se em
leves movimentos
De imploração
fremente e apaixonada,
Como se fossem
as dum anjo cego
A procura duma
alma fugitiva...
Mãos de beleza
nunca vista, feitas
Duma vaga
matéria luminosa
Parecendo ao
mesmo tempo astros e flores,
Movendo-se num
halo de perfumes
E desenhando
nos macios gestos
Promessas, que
eram hinos de ventura,
Súplicas, que
eram beijos ajoelhados,
Bem via
Beatriz que mãos tão lindas
Não as tinha
criado o escuro inferno,
Mas que eram
lírios, sim, enraizados
Num puro
coração que Deus enchera
De
transcendentes sonhos de Beleza!
E as mãos
desciam sempre, e já tão perto
Do rosto
estavam da gentil dormente
Que o bafo
dela refluía delas
Escaldando-lhe
as faces pudibundas.
E as mãos por
fim tocaram-na! em tão doce
Tão delicada e
lânguida carícia,
Que Beatriz
estremeceu ditosa
E caiu num
delíquio, qual se fora
Levada ao
Paraíso pelos anjos...
Mas,
repentinamente, abriu-se a porta
E de candil na
mão, eis que Ana Mosca
Entrou para
vestir a sua joia.
Do seu bem
curto sono estrovinhada,
Semitonta,
Beatriz desceu do leito,
E alisando a
lã alva do vestido,
Que a pressão
do seu corpo amarfanhara,
Dessa lã lhe
parecia levantar-se,
Às ligeiras
pancadas de seus dedos,
Uma
pulverescência luminosa,
Talvez a
poeira d'ouro do caminho
Dos amorosos
sonhos, onde andara
E donde agora
vinha outra, sentindo
Dentro dum corpo
novo uma alma nova.
E olhou p'ra a
Virgem novamente: e a Virgem
Sorriu-lhe
cheia de materna graça,
Encorajando-lhe
a paixão nascente
E
aconselhando-a a ajoelhar submissa
Aos pés do
Amor que, perto, lhe acenava
Com uma capela
de inocentes rosas.
Então Beatriz,
chilreando, entreabre um cofre
E dele tira,
já vaidosa e rindo,
Uma crespina
de custosas pérolas,
Dois anéis
resplendentes de diamantes,
De rubis uma
dupla gargantilha,
E pede a Ana o
seu vestido verde,
Feito de tesa
lhama em cujo fundo
Grandes pinhas
refulgem d'ouro ardente.
— “Penteia-me
depressa e põe-me linda!”
Diz Beatriz,
sentando-se num banco
De morado
veludo recoberto.
E a boa da Ana
Mosca, atarantada
Com aquela
mudança repentina,
Entre os
dentes meteu o pente ebúrneo
E começou a
desfazer-lhe as trancas...
IX
Nessa noite,
ao entrar na vasta sala
Onde a opípara
ceia fumegava,
Não se conteve
o ilustre Dom Guterre
Que não
soltasse logo uma sonora
E retumbante
exclamação de pasmo,
Vendo, ao
ruivo clarão bruxuleante
Dos tocheiros
chumbados na parede,
O faustoso
trajar das três senhoras,
Que ali
estavam de pé, hirtas e mudas,
Numa pompa de
boda principesca.
Todas elas,
vestindo-se p'ra a ceia,
O pensamento
tinham posto em Sancho,
Até a fria
Dona Mor!... e todas,
Não vendo que
dess'arte trairiam
Os seus mais
escondidos sentimentos,
E entregando,
indefesa, a consciência
A implacável
força do destino,
Todas elas se
tinham preparado
Com tão
dengues apuros de elegância
Como se cada
uma nessa noite
Bailar devesse
nos salões da corte.
— “Mas
que é isto, Senhoras? Temos festa?”
Dizia Dom
Guterre examinando-as:
“Virá el-rei cear hoje conosco?”
E em seguida,
mirando-se a si próprio,
Continuou: — “Mas eu é que não devo
Ficar nesta pobreza de beguino!
Dai-me uns momentos, que vou por depressa
O meu pelote novo, a adaga d'ouro,
E o meu chapéu melhor, o de penacho!”
Fez menção de
sair: mas de repente
Uma ideia o
picou, áspide viva,
Petrificando-o
ali e incendiando
Seus olhos que
se encheram de coriscos.
Da velha Dona
Iseu não se admirava;
Mas da esposa
e da filha! Quem diria
Que tão
pudendas, tão discretas damas,
Renegando,
insensatas, num momento,
Todo um
passado d’honra e de pureza,
Logo ao
primeiro aceno do Diabo,
Sem
resistência se lhe entregariam,
E em vez de
erguerem frios baluartes
Contra os
assaltos da lascívia impura,
Com tal
despejo ao seu encontro iriam
Aliciantes
galas ostentando?
Doido furor
lhe requeimava as fontes:
Domou-se,
porém; encaminhou-se
Para a mesa e,
chamando a ativa serva,
Que a capricho
também se ataviara,
Friamente lhe
disse, d'olhos baixos:
— “Chama
o senhor Dom Sancho e serve a ceia!”
Quando Dom
Sancho entrou airosamente,
Envolto num
tabardo de veludo,
Todos viram a
íntima surpresa
Com que ele
olhava a demudada prima
Em cujo seio
virginal, segura
Por um broche
de pérolas, sorria
A rosa que o
mancebo lhe atirara.
Abancaram à
mesa silenciosos...
Ana Mosca
servia, e Dom Guterre,
Mexendo a
canja e recalcando os ímpetos
Que o coração
inquieto lhe infernavam,
Perguntou de
repente ao desterrado:
— “Com
tamanho calor, que significa
Esse tabardo preto?
— Quis
fazer-vos
Uma surpresa!” diz o moço, erguendo-se;
E então,
lançando fora a negra capa:
— “Vede
como já estou são e escorreito!”
E estendeu
sobre a mesa, nuas, brancas,
As suas belas
mãos sem ligaduras!
A torre de
Babel, pela vez segunda,
Parecia ruir
naquela sala,
Tal o terror,
a confusão e os gritos
Que a
suculenta ceia interromperam.
Dona Mor com
as mãos tapava os olhos;
Desmaiando,
Beatriz no chão fazia
Rolar dois
cuvilhetes de geleia;
Ana Mosca, sem
tino, pespegava
Com um leitão
assado no regaço
Da pobre Dona
Iseu, que, vendo o bicho,
Julgou ver,
tão grande era o seu desvairo,
Um fruto já
dos seus novos amores;
E Dom Guterre,
doido, enfim rendido
Aos prudentes
avisos do irmão crúzio,
— “Fujam!
Fujam!” dizia às três senhoras;
E ao mesmo
tempo, como um Deus irado,
Cerrando os
punhos, espumando, aos urros,
Dando patadas
que eram terramotos,
Fazia cachoar
sobre Dom Sancho
Lufadas de
praguentos vitupérios:
— “Fora!
Fora daqui, vil castelhano,
Que assim pagas a minha caridade,
Tentando desonrar tão nobre casa!
Fora, vil corruptor!”
Debalde Sancho
Pedia a
explicação dessa tormenta,
Dessa onda de
insultos que o afogavam;
O velho não no
ouvia, e arrebatado
Pela ira mais
fremente, ei-lo que rompe
A gritar aos
criados que se acercam,
Pelo troar das
injúrias atraídos:
— “Tirai
da minha vista sem demora
Essa imundície humana! Vá, depressa!
Amarrai-o sem dó, ponde-mo fora!
Não quero vê-lo mais! E lá na estrada
Cortai-lhe as mãos obscenas! Que ele veja
Os seus cotos sangrar, por justa pena,
Como sangrando me pintou há pouco
Os do
alferes-mártir! Não lhe ouçais as súplicas!
Cortai-lhe as mãos!”
Então Lourenço
Gato,
Porqueiro
atarracado, de ar simplório,
Mas como
Hércules forte e decidido,
Cumpre,
ajudado pelos companheiros,
As ordens do
senhor, levando Sancho
Cujos gritos
inúteis breve expiram
Rija e
barbaramente amordaçados.
X
No pó da
estrada, à doce luz da lua,
Todo enleado
de cordas, remordendo
A estopa que
lhe serve de mordaça,
Debalde o
pobre Sancho se contorce,
Cuidando ver
chegar a todo o instante
O feroz abegão
partido à busca
Do machado que
as mãos deve cortar-lhe.
Range o portão
da quinta, e dele avança
Não o servo
cruel, mas sim o vulto
Airoso de
Beatriz que, de joelhos,
Cai
desvairadamente ao pé do amante,
E que ao
desabafar-lhe a seca boca
De lágrimas
piedosas lha refresca...
Quer
desatar-lhe os nós das rijas cordas,
Mas os seus
dedos são tão delicados
E aqueles nós
tão duros! Porém, breve,
O industrioso
Amor, que lestamente
Acode sempre
aos que lhe são devotos,
Ilumina-a:
Beatriz abre a escarcela
Tira um
punhado de moedas d'ouro,
Pelos criados
as reparte e diz-lhes:
— “Desatai
estes nós e retirai-vos!”
Lourenço,
deslumbrado, os nós desata,
Com a sinistra
o ouro abocetando,
Mas depois cai
em si, e então objeta:
— “E o
que hei de eu responder quando o meu amo
Me perguntar pelas mãos deste fidalgo?”
— “Olha!”
volve Beatriz, auxiliada
Novamente pelo
Amor, e aurificando
De novo as
mãos do sórdido porqueiro;
“Na forca ao pé do rio, ontem à tarde,
Um enforcado vi; vai lá, correndo,
Corta-lhe as mãos e, ensopando-as ambas
“Dum animal
qualquer no sangue quente,
“Leva-as depois ao teu senhor!”
Lourenço
E os outros
serviçais, contando as moedas,
Partem,
chalreando, em direção do rio,
No instante em
que o abegão enfim regressa,
Cantarolando,
de machado ao ombro.
— “E
agora foge!” diz Beatriz a Sancho
Que as mãos
lhe aperta comovidamente:
“Tens amigos em Coimbra, que um te esconda,
E que amanhã vá ter comigo à igreja
De Santa Clara, mal desponte o dia.
Por ele saberás noticias minhas...
Adeus l Tem fé em mim!”
Um longo beijo
Docemente
casou aquelas almas
Sob a benção
puríssima da lua...
Partiu Sancho.
Beatriz,
voltando a casa,
Pé ante pé,
parou junto da sala,
Onde seu pobre
pai, numa estadela,
Amarrotado e
triste, era o joguete
De dois
contraditórios sentimentos:
Dum lado, a
sua natural bondade,
Do outro, o
seu orgulho vigilante.
Orgulhoso,
parecia-lhe ainda escasso
O castigo
inumano que impusera,
Mas, bondoso,
acusava-se a si próprio
De tão duro
ter sido e tão severo.
Umas vezes
rugia, outras chorava...
E Beatriz, a
meiga e compassiva,
Vendo-o sofrer
assim, ânsias sentia
De ir
sossegá-lo, de contar-lhe tudo,
De lhe abrir
os segredos da sua alma;
Mas o receio
de que aquela sanha,
Tudo sabendo,
logo se ateasse,
Acobardou-a,
cautelosamente,
Que um pai é
muito, mas bem mais um noivo...
E uma hora
passou... até que ao cabo
Dessa hora
secular, inextinguível,
Bárbara
estropeada fez ouvir-se:
Os criados
voltavam, tendo à frente
Lourenço Gato,
que nas mãos trazia
Uma pequena
trouxa ensanguentada.
— “O que
irares ai?” grita o fidalgo,
Mais pálido
ficando que um defunto.
— “Cumpridas
são, senhor, as vossas ordens!”
Diz o
porqueiro.
Dom Guterre,
erguendo-se,
Aperta as mãos
convulsas na cabeça,
Quer falar e
não pode, cai redondo
Na orgulhosa
estadela de carvalho,
Bate fortes
punhadas nos joelhos,
Pucha as
guedelhas num furor leonino
E rompe enfim:
— “O que é que vós fizestes?
“Pois não
vistes, estúpidos! que eu estava
Doido, doido de todo, quando há pouco
Vos disse o que vos disse, delirando?
E cortastes-lhe as mãos? Ah! miseráveis,
E
trajeis-me essas mãos? Ah! por piedade,
Não rias mostreis! Levai-as, escondei-mas!”
Nisto soam ao
longe três pancadas
No portão,
ecoando cavamente,
Como argoladas
lúgubres batidas,
No pavoroso
dia do Juízo,
Pela própria
mão de Deus, à brônzea porta
Do mausoléu
dum imperador perverso!
— “Quem
será? Ide ver!”
Passado um
instante,
Volta um dos
servos que a seu amo entrega
Uma carta
selada.
Dom Guterre
Ergue-se
lentamente, cambaleando,
Aproxima-se
mais dum dos tocheiros,
Quebra o lacre
que fecha o pergaminho,
E a meia-voz,
sempre a hesitar, soletra
As seguintes
palavras de Dom Bento:
Senhor Irmão: “Tal peso estou sentindo
Sobre a minha consciência atribulada,
Que, não podendo ir já, visto que a regra
Me impede de sair caída a noite,
Venho por estas leiras desdizer-me
Do que sobre Dom Sancho vos disse hoje.
Folheando aquele livro de linhagens
Que me levara a imaginar Dom Sancho
Neto do antigo conde Dom Garcia,
Nele acabo de achar uma apostila
Donde se vê que o vosso hóspede ilustre
Nada tem de comum com o mesmo conde.
Confesso humildemente o meu engano,
E em pessoa, amanhã, mal rompa o dia,
Irei pedir perdão ao nobre moço
Do agravo que lhe fiz por falsa crença.”
Lívido,
amarfanhando o pergaminho
Numa louca
explosão de desespero,
Torcendo as
mãos, o desvairado velho
Grita para os
atônitos criados:
— “O que
eu fiz! O que eu fiz a um inocente!
Por verdade aceitando uma calúnia,
E uma calúnia pueril t sem mesmo
Primeiro o ter interrogado e ouvido,
Eis que de raiva num fatal assomo,
Num incendiado acesso de loucura,
Lhe fiz cortar as mãos, como se o pobre
Fosse um vil rogador ou um parricida!
Mas que fadeis aí? Ide buscá-lo!
Ide! Correi! Trazei-mo sem demora!
E não no magoeis, tende cuidado!
Vamos! Trajei-mo já! E tu, Lourenço,
Corre a Coimbra, chama quem no cure,
Chama um físico, dois... quantos achares!”
Mas Beatriz,
surgindo de repente,
Beatriz que
tudo ouviu, chorando e rindo,
Corre a
abraçar seu pai:
— “Meu
Pai, sossega!
Sancho, o querido Sancho da minh’alma,
Nem uma gota só perdeu de sangue!
Mandaste-lhe cortar as mãos, é certo,
Mas eu, ouvindo a bárbara sentença,
Corri atrás dos servos que o levavam,
Salvei-lhe as mãos pelas quais eu dera as minhas,
E para te enganar, disse a Lourenço
Que viesse entregar te as dum enforcado
Que eu tinha visto a baloiçar na forca!”
— “Será
verdade, filha, o que me dizes?”
Pergunta D.
Guterre: “Mas aquelas
(E aponta para
a trouxa ensanguentada)
Inda tintas estão de sangue fresco!”
— “Mas ê dum galo!”, diz Lourenço Gato.”
E Beatriz prossegue
carinhosa:
— “Enganamos-te
Pai! mas tu perdoas,
Não é verdade? Foi por bem o engano,
Que tu não eras tu dando tal ordem!”
— “Ah!
Deus te pague, filha da minh'alma,
Que, salvando-o, a mim próprio me salvaste,
Porque se ele morresse, eu morreria
Devorado de penas e remorsos!
Mas onde é que ele está! Quero pedir-lhe
De joelhos, sim, filha, de joelhos,
Que me perdoe, que esqueça o que lhe disse,
Que tenha dó de mim! Quero abraçar-vos,
A ele e a ti no mesmo estreito abraço!
Mas onde é que ele está? Onde está ele?”
— “Não
sei, não sei...” diz Beatriz corando
“Não sei... mas amanhã, de manhãzinha,
“Logo que rompa o sol hei de trazer-to,
“Para que tu nos abençoes a ambos!”
Pai e filha
abraçaram-se chorando
XI
Sancho e
Beatriz casaram...
Alguns dias
Depois da
alegre e sumptuosa boda,
Por mansa e
rósea tarde de setembro,
Dom Guterre e
Dom Bento caminhavam
A beira do
Mondego, conversando
Sobre coisas
da sua mocidade,
Quando entre
os salgueirais viram ao longe
Sancho e
Beatriz que iam de braço dado...
E o crúzio
exclama:
— “Como
são felizes!
“E pensar eu que só por um milagre
É que não destruí tanta ventura!
Eu é que merecia as mãos cortadas!
Não digo as mãos, mas, sim, estas orelhas
Que surdas sejam se não cobram tino!
Vá lá a gente acreditar naquilo
“Que o mundo diz! A voz do mundo é falsa,
Não é a voz de Deus! Dá-nos por tolos
Os que menos o são, e por virtuosos,
Ladrões capares de roubar seus filhos!
Eu é que tenho sido um bom palerma,
Acreditando em tudo o que me dizem...
Mas agora já sei, ninguém me engana!
Do Prior-mor de Santa Cruz, dizia-se,
Antes de o escolhermos, que era um sábio
E mais que um sábio, um santo; eis se não quando
Nos sai, assim que ao báculo se arrima,
Além dum mariola, um grande bruto...”
Escurecia...
Sempre
conversando,
Os dois irmãos
voltavam para casa
Quando os dois
noivos foram ter com eles,
Rompendo
alegres dentre madressilvas;
Rio acima
singrava um barco à vela;
E das
Trindades o saudoso toque,
Alagando de
unção religiosa
As ínsulas de
nebrina fumegantes,
Vibrava ali
bem perto, em Santa Clara,
Num cristalino
repicar de sinos...
Coimbra,
24 de dezembro de 1915.
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