5/22/2020

Eugênio de Castro e a sua obra (Resenha)



Eugênio de Castro e a sua obra

É longa a lista das suas obras e desde a fase nevoenta dos livros de estudo, combate e lançamento (o período das Cristalizações da morte às Horas tristes) até à fase definitiva dos últimos lavores clássicos — que de documentos temes a encarecer-lhe a personalidade e a destacá-lo como um grande e extremadíssimo poeta! Dos seus livros o que mais estimo é o Anel de Policrates — pois que é o que melhor casa a lição clássica à Beleza nova — tal como a compreendeu e lançou, sem hesitações, arrojadamente, com grande firmeza, como quem afronta a indiferença de uns, a surpresa de outros, a malevolência de uma boa parte — cheio daquela fé que encontrou na religião da Beleza — fim primeiro, senão único, da sua jornada.

A Moral saiu a princípio escandalizada dentre o nu extravagante do mais das suas páginas. É que canta nelas os segredos da carne, dando ao mundo da Sensualidade um âmbito até ele desconhecido.

Arrancou as balizas burguesas.

Nem rimou as futilidades madrigalescas dos passados — nem enveredou pelas grosserias positivas da musa contemporânea — a musa dos atalhos por lavar, musa que veste camisa suja de estopa e serve as várias necessidades dos poetas que a cantam.

Não cabem nestas páginas grandes transcrições.

Mas não me furto a algumas dos livros de Eugênio Castro para documentar a sua índole de poeta.

Sejam as primeiras do Anel de Policrates; e comecemos pelos conselhos de Anacreonte a Agamedes:

 Quem se dispõe a amar o seu caráter dispa!
O Amor embora seja uma rápida chispa
Que morre mal brilhou, tem duras exigências;
Porém, como é fugaz, bastam-lhe as aparências
Não mudes! Sê o que és no fundo da tua alma,
Mas p'ra alcançar de tua amada a verde palma

***
Não receies mostrar-te, ó tu que amar desejas,
Não como és, mas como ela quer que sejas!
É religiosa a tua amada? Vai ao templo,
Consagra ofertas mil aos Deuses, sê o exemplo
No modo de seguir o antigo ritual.


Aí está, num desprezo imenso pela convenção, bem expresso o fim da posse da mulher. E mais adiante, em versos magníficos:

E tu és mais ingênuo ainda
Que um ramo de coral, cabecinha de vento,
Se exiges à mulher a força do talento
Deverás exigir a formosura aos sábios
Que importa a estupidez, se são frescos os lábios?
As maçãs em que tu cravas guloso os dentes,
Dize-me, essas maçãs são muito inteligentes?
Ora a maior diferença, amigo, que tu vês
Entre a moça e a maçã, é que uma tem dois pés
E a outra tem um só? Anticleia é formosa
E nova. Que mais queres? E parva e silenciosa?
Melhor! Sem hesitar, trata de convencê-la.
Hoje mesmo, sem falta, hás de falar com ela!

Reparem naqueles versos:

 Se exiges à mulher a força do talento
Deverás exigir a formosura aos sábios.

Não valem aqueles outros de Baudelaire dirigidos à amante:

Sois charmante e tais-toi?...

Abro os livros de Eugênio de Castro para os mostrar ao leitor, um tanto alheado do seu fim dirigente e sobretudo para lhes apontar como o seu paganismo e índole pessimista se desentranham em versos cheios de talento e graça onde a Beleza-ídolo sobressai e culmina.

E se somarmos a esta finalidade (a de um tal culto) o estudo da cor, do ritmo, do equilíbrio do verso, do exotismo sensual que lhe abraça toda a obra, teremos compreendido o processo mental da vida superior do artista, incontestavelmente ressabiada dos modelos helênicos, embora atida também aos nossos clássicos.

E quem o tem conversado de perto sabe bem como uns e outros autores lhe são familiares, nomeadamente como estima Castilho pelo colorido do termo, pelo som do verso — por todas as qualidades enfim que o mais da gente desconhece e decerto ignorará enquanto o Sr. Teófilo Braga não for relegado do Supremo Conselho da Crítica portuguesa — como um juiz faccioso e perturbador. Oxalá a Política o entretenha de vez.

E claro que nos reportamos aos moldes clássicos no que importa à forma. De resto há na sua obra (falo da de Eugênio de Castro) e é o mais que lha contrasta, imaginação, espírito, graça, extravagâncias, coragem, e, relevos que não são deste ou daquele; são dele.

Exprimem índole. São a razão da surpresa pública, no fundo a causa do seu triunfo.

Transcrevo do Interlúnio os versos Amores:

Judite, a loira e magra, que ora vive
Entre palmas e mirra, nas novenas;
Dulce, a dos peitos de hidromel e penas
Com quem tempestuosas noites tive;
Maria, a ingênua, a plácida e macia,
Ingênua como um pintassilgo,, e pura

Como um mês de Maria;
Lídia, a trigueira hostil, severa e dura,
E Fábia, a de olhos perturbantes, lassos,

Fábia, cujos abraços
Me vestiam de aromas:
Todas adorei,
Todas me adoraram
E todas choraram
Quando as desprezei.

Aí está fixada com ousadia a versatilidade do gosto na exploração de uma vida sensual que é nova, pelo menos em livros.

Podem os catecismos salientar em parangona, para uso católico, que os inimigos da alma são três — o mundo, o diabo e a carne.

Mercê da última, Eugênio de Castro tem comércio com aqueles potentados, e nós, os que vemos dos tais entendimentos, não temos força para lhos castigar... Depois, francamente, se a alma é prejudicada com o uso e patenteamento daquelas emoções — não o percebemos. Pelo contrário, consignamos uma hipertrofia de alma em bem do poeta.

O amor é ainda função do temperamento. Cada um ama como é. Bem que pese às cartilhas de todos os ritos.

Ainda mais arrojada é a poesia Hermafrodita do livro — Salomé e outros poemas.

D'Hermes e d'Afrodite o filho esbelto e amado
De Salmacis oscula o corpo melodioso,
E a ninfa treme e enleia o moço deslumbrado,
Com um prazer que até chega a ser doloroso...

Ela — dócil, a arfar, como, ao vento, as searas...
Ele — forte, a arquejar, como com cio, um touro...
O cabelo da ninfa inunda as duas caras,
E há beijos musicais sob essa chuva d'ouro...

Num doido frenesi, entrar parecem querer
Ela — no corpo dele, ele— no corpo dela!
Choram, gemem, dão ais... e no auge do prazer
Começam a gritar para o céu que se estrela:

— Ó Deuses! atendei nossa súplica ardente:
Se é verdade que ouvis as vozes que vos chamam
Os nossos corações, fundi-os num somente,
Fundi num corpo só nossos corpos que se amam.


Ao Olimpo chegou essa suplica louca,
E Zeus, o grande Zeus, cuja força é infinita,
As duas bocas transformou numa só boca
E dos dois corpos fez um só: Hermafrodita!

Abstenho-me de transcrever a luta imensa desses seres que juntando-se pretenderam somar parcelas de natureza diversa, criando aspirações inconsumíveis.

Mas remeto o leitor para o livro de onde transcrevi aqueles versos.

Essa luta, melhor direi os versos que a descrevem, têm a forma lapidar que consagra os grandes poetas e lembram as ousadias genialmente revolucionarias de G. d'Annunzio, como bem notou J. Costa. Como quer que seja não me furto a transplantar o final deste capitula d'arte.

Que não vá o leitor abster-se de me fazer a vontade, adquirindo a Salomé e outros poemas... Finda assim:

Sem poder sofrer mais desespero tamanho,
Hermafrodita um dia enfim, crispando as mãos
Enforcou-se e morreu... mas do seu corpo estranho
Saíram, sempre hostis, os dois feros irmãos.

Chovia... E procurando uma guarida calma,
Que os livrasse da chuva, uma torre ou uma gruta
Viram minh'alma aberta, entraram na minh'alma
E na minh'alma estão continuando a luta!

 
Enfim podia ter-me abstido de transcrever tanto, penteando a crítica segundo os modelos que por aí vejo, discreteando larga e miudamente sobre o simbolismo do poeta, o seu exotismo, a extravagância sensual, o decadentismo, influências estranhas, preciosismo de palavra, harmonia do verso etc.

Preferi transcrevê-lo e fotografá-lo.

Dei-me a iluminista, encaixilhei alguns versos da melhor colheita em prosa pintalgada e alusiva, demarquei-lhe os capítulos com umas vinhetas de lavra e gosto próprios, anotei, aplaudi, sublinhei, e isto de bom ânimo e melhor fé.

Que a crítica oficial o entenda.

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BENTO DE OLIVEIRA CARDOSO VILLA-MOURA
Vida Literária e Política (1911)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).

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