5/30/2020

O Infante D. Duarte (Conto), de Camilo Castelo Branco



O INFANTE D. DUARTE
Veremos lastimosamente um príncipe vendido
e um imperador comprado.


Conde da Ericeira (História de Portugal Restaurado).
Neste dia em que escrevemos (3 de setembro de 1861) fecham-se duzentos e doze anos depois do homicídio de D. Duarte de Bragança, nas masmorras do castelo de Milão.
Leia o povo estas páginas da história. Mostrem-se ao povo as nódoas do sangue português, em que uns civilizantes de má morte não reparam do alto da sua cátedra de apostolado político. É ilustre sangue covardemente derramado do coração de um dos mais preclaros filhos de Portugal.
Foi D. Duarte irmão de D. João IV. Estava ele em Alemanha, militando no exército do imperador Fernando III, depois da restauração de 1640. Nas mais insignes vitórias do César sobre a Suécia assinalara-se o preclaro português.
O traidor Francisco de Lucena, depois justiçado, não avisara oportunamente o infante da aclamação do duque. Avisá-lo seria precavê-lo dos ministros de Castela que haviam de querer vingar a desonra de Filipe na pessoa do infante, com assentimento do imperador a quem o devotado príncipe servira lealissimamente.
Outro português traidor, D. Francisco de Melo, ainda aparentado com a casa de Bragança, e vendido ao conde de Olivares, recebeu ordem de intender na prisão do infante. Chamou D. Francisco ao seu intento o confessor do imperador e o secretário da imperatriz. Fez sua proposta ao primeiro, e foi repelido; mas não desanimou. Com o dinheiro de Castela, ensaiou a corrupção dos ministros de Fernando III, e comprou a alma do mais privado. O confessor fez seu ofício, e a imperatriz o dela.
Estava o infante em Leypen. Antes de capturado, já sua cabeça estava posta em talha de oito mil cruzados. Para ali partiu um comissionado com esta ordem do general-em-chefe: “Ordeno ao coronel D. Jacinto de Vera que vá ao quartel de Leypen a prender o príncipe de Bragança, e que, não o podendo conseguir, o mate, e que vivo ou morto me traga o seu corpo.”
Não encontraram D. Duarte no quartel. Procuraram-no em Ratisbona, e leram-lhe uma ordem em que o imperador o chamava à corte: obedeceu, e entrou na carruagem que Francisco de Meio cortesmente lhe oferecia. Na primeira pousada, esperavam-no quarenta mosqueteiros, com ordem de parar. Detiveram-no oito dias em cárcere cerrado. O infante queixa-se; não, porém, contra o imperador. Afigurava-se-lhe incrível que o entregasse a castelhanos quem tão egregiamente fora servido por ele. Dali passou ao castelo de Milão.
Ao mesmo tempo, os congregados da dieta de Ratisbona protestaram contra a perfídia do imperador, dando como corrompida a fé germânica. Foi muito neste protesto o manifesto de Sousa Coutinho, embaixador da Suécia, a favor dos direitos de D. João IV. Rematava com estas palavras o manifesto:
“...que lei divina nem humana permitia que fosse preso em império absoluto e cidade livre um príncipe inocente, e oficioso ao mesmo império, pois por servir ao imperador deixara a Pátria e a grandeza da própria casa, achando por satisfação o tormento e o evidente perigo da vida.”
Tudo inútil! Nem as súplicas do preso ao imperador valeram mais. Pediu audiências: Fernando negou-lhas. Alguns príncipes intercederam pelo preso, sem proveito. O inflexível imperador fez remover o príncipe para outra fortaleza mais remota, entre escolta de sessenta espingardeiros. Aqui demorou seis meses, e passou a Gratz, donde escreveu ao bispo de Lamego, que estava em Roma, pedindo a intercessão do Sumo Pontífice. Nem a misericórdia do vigário de Cristo valeu às súplicas do encarcerado.
Tiraram-lhe o confessor e criados portugueses, e deram-lhe como consolador um jesuíta alemão.
Nestes transes, vingou o infante fazer chegar à mão do imperador a seguinte carta:
“Muitas vezes tenho manifestado a Vossa Majestade cesárea a grande injustiça e agravo que se me faz, quando eu por haver deixado a Pátria, e a comodidade da minha casa, e havendo servido oito anos a Vossa Majestade com tanta satisfação, como sabe todo mundo, esperava receber grandes favores: agora entendo que o marquês de Castelo Rodrigo, continuando o mesmo que já havia intentado D. Francisco de Melo, procura conduzir-me a Milão para que eu sirva de zombaria e sacrifício ao ódio e indignação deste e de outros ministros; porém, espero da grandeza de Vossa Majestade que não queira romper em mim as leis da justiça, e aquele direito no qual me constituíram a hospitalidade e fé pública, inviolável entre as mais bárbaras nações. Pelo que, espero que Vossa Majestade terá consideração à minha justiça e inocência, deixando uma e outra nas suas imperiais mãos, até que Vossa Majestade me franqueie o direito das gentes com a mesma liberdade do império, não permitindo que se execute em mim novidade que sirva de exemplo tão prejudicial à fé pública. Representando juntamente a Vossa Majestade o grande amor, trabalho e despesa com que tenho servido a Vossa Majestade, expondo a vida a muitos perigos, como agora fizera com o mesmo ânimo e fidelidade, se Vossa Majestade mo permitira. Guarde Deus a imperial pessoa de Vossa Majestade cesárea. De Gratz, 16 de março de 1642.
D. Duarte.”
Responde, em nome do imperador, o valido comprado por Castela:
“Dei a Sua Majestade cesárea a carta de vossa excelência e lhe referi tudo o que vossa excelência me escreveu em dezessete do passado. Sua Majestade cesárea me respondeu muito benignamente declarando não querer agravar vossa excelência na sua aflição, mas aliviá-lo muito depressa, e em sendo tempo fazer-lhe todo o favor: o que se me oferece referir a vossa excelência, beijando-lhe as mãos. Viena, 5 de abril de 1642. Conde de Transmandonff.
***
Verdadeiramente que não acho termos
com que encarecer o horror que me faz
este sucesso, olhando para o imperador,
e a lástima a que me obriga esta tragédia,
pondo os olhos no infante.

Conde da Ericeira (História de Portugal  Restaurado).

Não se havia ainda o imperador declarado despejadamente o coroado algoz do irmão de D. João IV. Avulta a infâmia à medida que a perfídia se rebuça no manto real. A resolução estava definida. A liberdade ou vida do leal servidor estava contratada com a Espanha.
O traidor Meio foi premiado com o governo de Flandres, para onde se abalou, deixando o infante entregue ao marquês de Castelo Rodrigo, mediante quarenta mil cruzados que o imperador recebeu para alienar de tal convênio a sua honra.

Quis o marquês levar preso a Espanha o infante; mas temeu-se de convizinhar de Portugal, e ainda mais de passar com o preso por estados de príncipes livres, que poderiam não querer (pondera um historiador) que os seus estados fossem estrada de ação tão indigna.
Mais pelo seguro, resolveram encarcerá-lo no castelo de Milão. Pressagiou o infante este horrível destino e perguntou ao caudilho da escolta se o levavam ao castelo. Primeiro, sob juramento, dissuadiram-no do susto; depois, intimaram-lhe a prisão. Este, sem demudar o semblante, disse serenamente: “Seja Deus louvado! Exierunt cum gladibus et fustibus tanquam ad latronem...”
No mesmo ponto encerraram-no em uma liteira, e assim foi dado a um comissário imperial. Nas raias de Valtelina, passou D. Duarte à guarda de um comissário milanês. Quando o enviado imperial se despediu do infante, este lhe disse: “Dizei ao imperador que maior pena me dá haver servido a um príncipe tirano que o ver-me preso, vendido, e entregue a mãos de meus inimigos; mas que Deus há de permitir que haja alguma hora quem faça o mesmo com seus filhos, que não nasceram mais privilegiados que eu; pois a casa real de Portugal de que descendo não cede em sangue à casa de Áustria; e que se lembre para mortificação sua, como a mim me sucede para meu alívio, de que as histórias hão de falar nele e em mim.”
No decurso da jornada, conseguiu o infante ver as ordens. Eram firmadas pelo imperador, e diziam: no caso de encontrarem algum poder que quisesse livrar o infante, o matassem primeiro.
Entretanto, o marquês de Nisa, embaixador em França, maquinava traças de arrancar o príncipe, com homens salariados, ao dobrar as fortalezas do império para o ducado de Milão. Malogrou-se o honrado intento.
Designaram os Castelhanos no forte de Milão a torre da Roqueta, onde era uso encerrarem-se os réus de grandes delitos e de mais baixa condição. Nem uma hora o confiaram dos ferros, sem que a sentinela lhe espiasse os mais leves atos. Privaram-no de criados e de toda a relação externa. E assim no passar lento de oito anos!
Algumas vezes escreveu D. Duarte a seu irmão, rei de Portugal. O padre Francisco Porti, que lhe dizia missa, sabia que, debaixo da alcatifa do degrau do altar, estavam papéis do infante, escritos a lápis sobre o livro em que ele rezava durante a missa. No mesmo lugar, achava o infante as respostas.
Em honra de D. João IV, dizem os cronistas coevos que nenhum esforço foi o remisso no resgate do irmão. Quatrocentos mil cruzados foram oferecidos a Castela, e depositados em Itália. Não saiu o rei com o generoso intento. Filipe IV dava-se por melhor pago com as torturas cada hora de oito anos.
Ao cabo de muitas esperanças mortas, levou para si a divina piedade a alma do mártir.
Trinta e nove anos tinha quando morreu. Aos trinta e um de flores, de desejos, de glórias, entrara na masmorra, onde se presume que a peçonha lhe pôs termo ao martírio.
Autor coevo descreve assim D. Duarte de Bragança: “Era valoroso em grau muito superior, e trazia unidos na esfera mais superior o entendimento e a prudência. Esmaltava estas partes com uma liberalidade tão afável, que parecia que ficava obrigado a todos os que beneficiava. Foi de estatura levantada, branco, e louro, e todas as feições tão proporcionadas, que levava os olhos de todos a sua gentil disposição.”
Oferece-se este painel aos políticos de mão furada, que espalham flores na estrada da servidão para que os cautelosos não vejam as nódoas de sangue que lá derramaram nossos avós. Destes políticos em todo o tempo os houve: aquela mesma época os teve. Quando o infante agonizava, houve aí portugueses que, mirando a consolar a paixão do rei, denegriam a memória do encarcerado príncipe, dizendo “que um dos fundamentos da conservação destes remos era não vir a eles o infante, cujo natural era caprichoso, altivo, e faustoso”. Outros com dobrada infâmia, senão crassíssima estupidez, acrescentavam: “que o exercício da guerra alemã lhe havia ensinado ao príncipe ideias militares, que não serviam à moderação necessária em guerra defensiva.”
Estes abjetos contemporizadores por pouco não agradeceram a Castela e à Áustria o favor de nos matar o infante nas masmorras do Forte de Milão!


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).

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