O
INFANTE D. DUARTE
Veremos
lastimosamente um príncipe vendido
e um imperador comprado.
Conde da Ericeira (História de Portugal Restaurado).
e um imperador comprado.
Conde da Ericeira (História de Portugal Restaurado).
Neste dia em
que escrevemos (3 de setembro de 1861) fecham-se duzentos e doze anos depois do
homicídio de D. Duarte de Bragança, nas masmorras do castelo de Milão.
Leia o povo
estas páginas da história. Mostrem-se ao povo as nódoas do sangue português, em
que uns civilizantes de má morte não reparam do alto da sua cátedra de
apostolado político. É ilustre sangue covardemente derramado do coração de um
dos mais preclaros filhos de Portugal.
Foi D. Duarte
irmão de D. João IV. Estava ele em Alemanha, militando no exército do imperador
Fernando III, depois da restauração de 1640. Nas mais insignes vitórias do César
sobre a Suécia assinalara-se o preclaro português.
O
traidor Francisco de Lucena, depois justiçado, não avisara oportunamente o
infante da aclamação do duque. Avisá-lo seria precavê-lo dos ministros de Castela
que haviam de querer vingar a desonra de Filipe na pessoa do infante, com
assentimento do imperador a quem o devotado príncipe servira lealissimamente.
Outro português
traidor, D. Francisco de Melo, ainda aparentado com a casa de Bragança, e
vendido ao conde de Olivares, recebeu ordem de intender na prisão do infante. Chamou
D. Francisco ao seu intento o confessor do imperador e o secretário da
imperatriz. Fez sua proposta ao primeiro, e foi repelido; mas não desanimou. Com
o dinheiro de Castela, ensaiou a corrupção dos ministros de Fernando III, e
comprou a alma do mais privado. O confessor fez seu ofício, e a imperatriz o
dela.
Estava o
infante em Leypen. Antes de capturado, já sua cabeça estava posta em talha de
oito mil cruzados. Para ali partiu um comissionado com esta ordem do
general-em-chefe: “Ordeno ao coronel D. Jacinto de Vera que vá ao quartel de Leypen
a prender o príncipe de Bragança, e que, não o podendo conseguir, o mate, e que
vivo ou morto me traga o seu corpo.”
Não
encontraram D. Duarte no quartel. Procuraram-no em Ratisbona, e leram-lhe uma
ordem em que o imperador o chamava à corte: obedeceu, e entrou na carruagem que
Francisco de Meio cortesmente lhe oferecia. Na primeira pousada, esperavam-no
quarenta mosqueteiros, com ordem de
parar. Detiveram-no oito dias em cárcere cerrado. O infante queixa-se; não, porém,
contra o imperador. Afigurava-se-lhe incrível que o entregasse a castelhanos
quem tão egregiamente fora servido por ele. Dali passou ao castelo de Milão.
Ao mesmo
tempo, os congregados da dieta de Ratisbona protestaram contra a perfídia do
imperador, dando como corrompida a fé germânica. Foi muito neste protesto o
manifesto de Sousa Coutinho, embaixador da Suécia, a favor dos direitos de D. João
IV. Rematava com estas palavras o manifesto:
“...que lei
divina nem humana permitia que fosse preso em império absoluto e cidade livre
um príncipe inocente, e oficioso ao mesmo império, pois por servir ao imperador
deixara a Pátria e a grandeza da própria casa, achando por satisfação o
tormento e o evidente perigo da vida.”
Tudo inútil! Nem
as súplicas do preso ao imperador valeram mais. Pediu audiências: Fernando
negou-lhas. Alguns príncipes intercederam pelo preso, sem proveito. O
inflexível imperador fez remover o príncipe para outra fortaleza mais remota,
entre escolta de sessenta espingardeiros. Aqui demorou seis meses, e passou a Gratz,
donde escreveu ao bispo de Lamego, que estava em Roma, pedindo a intercessão do
Sumo Pontífice. Nem a misericórdia do vigário de Cristo valeu às súplicas do
encarcerado.
Tiraram-lhe o
confessor e criados portugueses, e deram-lhe como consolador um jesuíta alemão.
Nestes
transes, vingou o infante fazer chegar à mão do imperador a seguinte carta:
“Muitas vezes
tenho manifestado a Vossa Majestade cesárea a grande injustiça e agravo que se
me faz, quando eu por haver deixado a Pátria, e a comodidade da minha casa, e
havendo servido oito anos a Vossa Majestade com tanta satisfação, como sabe
todo mundo, esperava receber grandes favores: agora entendo que o marquês de Castelo
Rodrigo, continuando o mesmo que já havia intentado D. Francisco de Melo,
procura conduzir-me a Milão para que eu sirva de zombaria e sacrifício ao ódio e
indignação deste e de outros ministros; porém, espero da grandeza de Vossa Majestade
que não queira romper em mim as leis da justiça, e aquele direito no qual me
constituíram a hospitalidade e fé pública, inviolável entre as mais bárbaras
nações. Pelo que, espero que Vossa Majestade terá consideração à minha justiça
e inocência, deixando uma e outra nas suas imperiais mãos, até que Vossa Majestade
me franqueie o direito das gentes com a mesma liberdade do império, não
permitindo que se execute em mim novidade que sirva de exemplo tão prejudicial
à fé pública. Representando juntamente a Vossa Majestade o grande amor,
trabalho e despesa com que tenho servido a Vossa Majestade, expondo a vida a
muitos perigos, como agora fizera com o mesmo ânimo e fidelidade, se Vossa Majestade
mo permitira. Guarde Deus a imperial pessoa de Vossa Majestade cesárea. De Gratz,
16 de março de 1642.
D. Duarte.”
Responde, em
nome do imperador, o valido comprado por Castela:
“Dei a Sua Majestade
cesárea a carta de vossa excelência e lhe referi tudo o que vossa excelência me
escreveu em dezessete do passado. Sua Majestade cesárea me respondeu muito
benignamente declarando não querer agravar vossa excelência na sua aflição, mas
aliviá-lo muito depressa, e em sendo tempo fazer-lhe todo o favor: o que se me
oferece referir a vossa excelência, beijando-lhe as mãos. Viena, 5 de abril de
1642. Conde de Transmandonff.”
***
Verdadeiramente
que não acho termos
com
que encarecer o horror que me faz
este
sucesso, olhando para o imperador,
e
a lástima a que me obriga esta tragédia,
pondo
os olhos no infante.
Conde da
Ericeira (História de Portugal Restaurado).
Não se havia ainda o imperador declarado despejadamente o coroado algoz do irmão de D. João IV. Avulta a infâmia à medida que a perfídia se rebuça no manto real. A resolução estava definida. A liberdade ou vida do leal servidor estava contratada com a Espanha.
O traidor Meio
foi premiado com o governo de Flandres, para onde se abalou, deixando o infante
entregue ao marquês de Castelo Rodrigo, mediante quarenta mil cruzados que o
imperador recebeu para alienar de tal convênio a sua honra.
Quis o marquês
levar preso a Espanha o infante; mas temeu-se de convizinhar de Portugal, e
ainda mais de passar com o preso por estados de príncipes livres, que poderiam
não querer (pondera um historiador) que os seus estados fossem estrada de ação
tão indigna.
Mais pelo
seguro, resolveram encarcerá-lo no castelo de Milão. Pressagiou o infante este
horrível destino e perguntou ao caudilho da escolta se o levavam ao castelo. Primeiro,
sob juramento, dissuadiram-no do susto; depois, intimaram-lhe a prisão. Este,
sem demudar o semblante, disse serenamente: “Seja Deus louvado! Exierunt
cum gladibus et fustibus tanquam ad latronem...”
No
mesmo ponto encerraram-no em uma liteira, e assim foi dado a um comissário
imperial. Nas raias de Valtelina, passou D. Duarte à guarda de um comissário
milanês. Quando o enviado imperial se despediu do infante, este lhe disse:
“Dizei ao imperador que maior pena me dá haver servido a um príncipe tirano que
o ver-me preso, vendido, e entregue a mãos de meus inimigos; mas que Deus há de
permitir que haja alguma hora quem faça o mesmo com seus filhos, que não
nasceram mais privilegiados que eu; pois a casa real de Portugal de que descendo
não cede em sangue à casa de Áustria; e que se lembre para mortificação sua,
como a mim me sucede para meu alívio, de que as histórias hão de falar nele e
em mim.”
No decurso da
jornada, conseguiu o infante ver as ordens. Eram firmadas pelo imperador, e
diziam: no caso de encontrarem algum
poder que quisesse livrar o infante, o matassem primeiro.
Entretanto, o
marquês de Nisa, embaixador em França, maquinava traças de arrancar o príncipe,
com homens salariados, ao dobrar as fortalezas do império para o ducado de Milão.
Malogrou-se o honrado intento.
Designaram os
Castelhanos no forte de Milão a torre da Roqueta, onde era uso encerrarem-se os
réus de grandes delitos e de mais baixa condição. Nem uma hora o confiaram dos
ferros, sem que a sentinela lhe espiasse os mais leves atos. Privaram-no de
criados e de toda a relação externa. E assim no passar lento de oito anos!
Algumas vezes
escreveu D. Duarte a seu irmão, rei de Portugal. O padre Francisco Porti, que
lhe dizia missa, sabia que, debaixo da alcatifa do degrau do altar, estavam
papéis do infante, escritos a lápis sobre o livro em que ele rezava durante a
missa. No mesmo lugar, achava o infante as respostas.
Em honra de D.
João IV, dizem os cronistas coevos que nenhum esforço foi o remisso no resgate
do irmão. Quatrocentos mil cruzados foram oferecidos a Castela, e depositados
em Itália. Não saiu o rei com o generoso intento. Filipe IV dava-se por melhor
pago com as torturas cada hora de oito anos.
Ao cabo de
muitas esperanças mortas, levou para si a divina piedade a alma do mártir.
Trinta e nove
anos tinha quando morreu. Aos trinta e um de flores, de desejos, de glórias,
entrara na masmorra, onde se presume que a peçonha lhe pôs termo ao martírio.
Autor coevo
descreve assim D. Duarte de Bragança: “Era valoroso em grau muito superior, e
trazia unidos na esfera mais superior o entendimento e a prudência. Esmaltava
estas partes com uma liberalidade tão afável, que parecia que ficava obrigado a
todos os que beneficiava. Foi de estatura levantada, branco, e louro, e todas
as feições tão proporcionadas, que levava os olhos de todos a sua gentil
disposição.”
Oferece-se
este painel aos políticos de mão furada, que espalham flores na estrada da
servidão para que os cautelosos não vejam as nódoas de sangue que lá derramaram
nossos avós. Destes políticos em todo o tempo os houve: aquela mesma época os
teve. Quando o infante agonizava, houve aí portugueses que, mirando a consolar
a paixão do rei, denegriam a memória do encarcerado príncipe, dizendo “que um
dos fundamentos da conservação destes remos era não vir a eles o infante, cujo
natural era caprichoso, altivo, e faustoso”. Outros com dobrada infâmia, senão
crassíssima estupidez, acrescentavam: “que o exercício da guerra alemã lhe
havia ensinado ao príncipe ideias militares, que não serviam à moderação
necessária em guerra defensiva.”
Estes abjetos
contemporizadores por pouco não agradeceram a Castela e à Áustria o favor de
nos matar o infante nas masmorras do Forte de Milão!
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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