A Confissão
Pesquisa
e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
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Margarida de
Therelles ia morrer, e estava tão abatida que embora só tivesse cinquenta e
seis anos parecia ter, no mínimo, setenta e cinco. Mais pálida que os lençóis
de sua cama, ela arquejava, sacudida por terríveis calafrios, com o rosto
convulso, os olhos arregalados, como se alguma coisa de horrível lhe houvesse
aparecido.
Sua irmã, mais idosa
seis anos, de joelhos junto ao leito, soluçava. Chegada à cabeceira da
agonizante uma pequena mesa suportava, sobre uma alva toalha, duas velas
acesas, pois esperavam o padre que lhe devia dar a Extrema Unção, a comunhão
derradeira.
O quarto tinha o
aspecto sinistro que têm os aposentos dos moribundos: um ar desolador. Sobre os
móveis atulhavam-se os vidrinhos da farmácia, roupas jaziam pelos cantos
atiradas com um pontapé ou de alguma vassourada. As cadeiras em desordem,
pareciam — até elas — assombradas, como se tivessem corrido em todos os
sentidos. A morte, terrível, lá estava, escondida, à espera.
A história das duas
irmãs era enternecedora. Citavam-na muitas vezes, e ela fizera chorar bom número
de olhos.
Suzana, a mais velha,
havia sido, outrora, loucamente amada por um rapaz de quem por sua vez muito
gostava. Chegaram a ser noivos, e esperava-se unicamente o dia fixado para o
casamento, quando Henrique de Sampierre morreu repentinamente.
O desespero da moça
foi doloroso, e Suzana jurou não mais se casar. Cumpriu a palavra. Passou a
usar vestidos de viúva que nunca mais abandonou.
Então sua irmã, sua
irmãzinha Margarida, que tinha apenas doze anos, atirou-se, uma certa manhã,
nos braços da mais velha e lhe disse: "Minha mãezinha, não quero que tu
sejas desgraçada. Não quero que chores toda a tua vida. Não te deixarei nunca,
nunca, nunca. Também eu não me casarei. Hei de ficar contigo sempre, sempre,
sempre."
Suzana beijou-a,
enternecida por esta dedicação de criança, porém não deu importância à promessa.
Mas a pequena também
cumpriu o juramento e, apesar dos rogos de seus pais, malgrado as súplicas de
sua irmã, não se casou nunca. Era bonita, muito bonita mesmo; recusou muitos
rapazes que pareciam amá-la; não deixou a irmã.
Passaram juntas todos
os dias da existência. Viveram lado a lado, inseparavelmente únicas. Mas
Margarida era sempre triste, acabrunhada, mais fria que a irmã, como se,
talvez, o seu sublime sacrifício a tivesse dilacerado. Envelheceu mais cedo, teve
cabelos brancos desde a idade de trinta anos e, sempre um mal desconhecido que
a atormentasse sem cessar.
Mas agora, ia morrer
primeiro.
Não falava havia mais
de e quatro horas. Dissera somente, aos primeiros clarões aurora:
— Vá buscar o senhor
cura: chegou o momento.
E em seguida, ficara deitada
de costas, abalada por grandes espasmos de lábios agitados como se palavras
terríveis lhe houvessem subido do coração sem conseguirem sair. O olhar, cheio
ai espanto, era horroroso de ver-se.
Com a cabeça apoiada à
borda do leito, sua irmã, louca de dor, chorava perdidamente, e dizia:
— Margot, minha pobre
Margot, minha filhinha!
Chamara-lhe sempre:
"filhinha" como a outra lhe havia sempre chamado "mãezinha".
Ouviram passos na
enseada. A porta abriu-se. Um menino de coro apareceu seguido do velho padre
que vinha de sobrepeliz. Mal o avistou, a moribunda sentou-se, penosamente. E descerrou
os lábios, balbuciou duas ou três palavras, e pôs-se a esgravatar as unhas como
se nelas quisesse fazer algum buraco.
O abade Simão
aproximou-se, tomou-lhe a mão. beijou-a na testa e, depois, falando meigamente:
— Deus lhe, perdoe,
minha filha. Tenha coragem. Chegou o momento: fale.
Então, Margarida,
tiritando da cabeça aos pés, espalhando toda a roupa com os seus movimento nervosos,
balbuciou:
— Senta-te, mãezinha,
escuta.
O padre abaixou-se para Suzana, sempre abatida aos pés da cama, levantou-a, fê-la sentar numa poltrona e, tomando em cada uma das mãos de cada irmã, pronunciou:
— Senhor, meu Deus! dai-lhes
força. Atirai sobre elas a vossa misericórdia.
E Margarida começou a falar. As palavras lhe saíam da garganta uma a uma, roucas, escandidas, como que extenuadas.
— Perdão; perdão,
mãezinha. Oh! se soubesses o quanto, toda a vida, tive medo deste momento!...
Suzana, articulou, por
entre as lágrimas:
— Perdoar-te o que,
filhinha? Foste sempre minha amiga. Tudo por mim sacrificaste; és um anjo...
Mas Margarida.
interrompeu-a:
— Cala-te, cala-te.
Deixa-me dizer... não interrompas... É indigno... deixa-me dizer tudo... até ao
fim. Ouve... Tu te recordas, tu te recordas... Henrique...
Suzana estremeceu e
olhou a irmã. Margarida prosseguiu:
— É preciso escutar
tudo para compreenderes. Eu tinha doze amos, somente doze anos, tu te lembras,
não é? Fazia tudo o que queria!... Lembras-te como me enchiam de mimos?...
Escuta... A primeira vez que ele veio cá, trazia botas de verniz; desceu do
cavalo em frente ao portão e desculpou-se do traje: vinha somente trazer uma notícia
a papai. Lembras-te, não é?... Não digas nada... escuta. Quando o vi fiquei
toda comovida, tanto o achei belo, e deixei-me ficar de pé num canto do salão
durante todo o tempo em que ele falou. As crianças são singulares... e terríveis.
Oh! quanto sonhei com ele!
"Ele tornou...
muitas vezes... eu o olhava apaixonadamente, de toda a minha alma... Eu era
desenvolvida para a minha idade... e muito mais fina do que pensavam. Ele veio
ainda... Eu só pensava nele e pronunciava baixinho:
— Henrique...
Henrique de Sampierre!
Depois disseram que
ele te ia esposar. Que desgosto... oh mãezinha... que desgosto... que desgosto!
Chorei três noites, sem dormir. Ele vinha todos os dias, à tarde, depois do
almoço... tu te lembras, não é? Não digas nada... escuta. Tu lhe fazias doces
de que ele muito gostava... com farinha, manteiga e leite... Oh! sei como se faz...
Faria ainda se fosse preciso. Ele os engolia de uma vez, e depois bebia um copo
de vinho... e, em seguida, dizia: "É delicioso!" Lembras-te como
dizia isso?
Eu tinha ciúmes,
ciúmes!... O dia de teu casamento aproximava-se. Faltavam apenas quinze dias.
Comecei a ficar maluca. Eu dizia: Ele não esposará Suzana, não, não quero! A
mim é que ele esposará, quando eu for grande. Nunca acharei outro a quem ame
tanto... Mas uma noite, dez dias antes do teu contrato, passeaste com ele no
jardim do castelo, ao luar... e lá... sob o grande pinheiro... Henrique te
beijou... beijou-te longamente... Tu te recordas, com certeza! Era
provavelmente a primeira vez... sim... Estavas tão pálida ao entrar no salão!
Eu vi: estava lá entre
a folhagem. Tive uma gana! Se pudesse teria assassinado todos dois!
Disse para comigo:
Ele não esposará Suzana, nunca! Não esposará ninguém. Eu seria muito
desgraçada... E, de súbito, pus-me a odiá-lo horrivelmente.
Então, sabes, o que fiz?... escuta. Eu vira o jardineiro preparar bolinhas para matar os cães vagabundos. Ele quebrava uma garrafa e metia o vidro picado dentro de uma bolinha de carne.
Tirei do quarto de
mamãe um vidrinho de farmácia, triturei-o e escondi o pó brilhante no bolso. No
dia seguinte, quando acabastes de fazer os doces, furei-os com uma faca e enchi
de vidro os buracos... Ele comeu três... eu também comi um... Atirei os outros
no lago... os dois cisnes morreram dias depois... Lembras-te? Oh! não digas
nada... ouve, ouve... Só eu não morri... mas estive sempre doente... Ele
morreu... tu sabes... escuta... isto não é nada. Foi depois, mais tarde.... sempre...
o mais terrível... escuta...
Minha vida, toda a
minha vida... que tortura! Eu dizia a mim própria: Não deixarei nunca minha
irmã. E dir-lhe-ei tudo na hora da morte... Eis aí. E depois, pensei continuamente
neste momento; no momento em que te diria tudo... Ei-lo chegado... É terrível.
Oh! mãezinha!
Eu pensava noite e
dia, de manhã, à tarde. Será preciso dizer-lhe tudo, uma vez... Esperei... Que
suplício!. Fi-lo... Não digas nada... Agora, tenho medo... tenho medo... oh!
tenho medo... Se eu o fosse ver, daqui a pouco, quando morrer... Revê-lo....
Sabes!... Primeiro que tu!... Não ousaria... É preciso... Vou morrer... Quero que
me perdoes. Quero-o... Não quero encontrá-lo sem estar perdoada... Oh! diga-lhe
que me perdoe, senhor cura, diga-lhe.... peço-lhe. Não posso morrer sem
isto..."
Calou-se. E
arquejava, arranhando as cobertas com as unhas crispadas...
Suzana escondera o
rosto entre as mãos e não se movia mais. Pensava nele que poderia ter, tanto
tempo, amado! Que bela vida haveriam tido! Revia-o no velho passado para sempre
extinto! Oh! aquele beijo, seu único beijo! Havia-o guardado na alma. E depois
mais nada, mais nada em toda sua existência!...
De repente o padre
levantou-se e, de uma voz forte, vibrante, exclamou:
— MIIe. Suzana, sua
irmã vai morrer!
Então Suzana, abrindo
as mãos, mostrou o rosto sulcado de lágrimas, e, precipitando-se para a irmã,
beijou-a com todas as forças, balbuciando:
— Eu te perdoo, eu te perdoo, filhinha...
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