9/27/2020

A mão misteriosa (Conto), de Guy de Maupassant

 


A mão misteriosa

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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Fazia-se círculo em volta do Sr. Bermutier, juiz de instrução, que dava a sua opinião acerca do crime misterioso de Saint-Cloud. Havia um mês que aquele inexplicável crime alvoroçava Paris. Ninguém podia perceber nada do caso.

O Sr. Bermutier, de pé, costas para o fogão, falava, amontoava provas, discutia as diversas opiniões, mas não chegava a uma conclusão.

Muitas mulheres se haviam levantado para se aproximarem dele e ficavam de pé, o olhar fixo na boca rapada do magistrado, de onde saíam palavras graves. As senhoras estremeciam, vibravam, crispadas por um medo curioso, pela ávida e insaciável necessidade de pavor que é inseparável da sua alma e que as torturas como uma fome.

Uma delas, mais pálida que as outras, pronunciou durante o silêncio:

— É pavoroso! Chega às raias do sobrenatural. Nunca se virá a saber coisa alguma.

O magistrado voltou-se para ela:

— Sim, minha senhora, é provável que nunca se venha a saber nada. Quanto à palavra sobrenatural, que acaba de empregar, não é em nada chamada para o caso. Estamos em presença de um crime habilissimamente concebido, habilissimamente executado, tão bem envolvido no mistério que não podemos separá-lo das circunstâncias impenetráveis que o rodeiam. Mas, eu próprio já tive, outrora, de seguir um processo onde em verdade parecia haver qualquer coisa de fantástico. Foi preciso abandoná-lo por falta de meios para o esclarecer.

Umas poucas de mulheres pronunciaram ao mesmo tempo e tão depressa que as suas vozes apenas pareciam uma só voz:

— Oh! conte, conte, Sr. Bermutier.

O Sr. Bermutier sorriu gravemente, como deve sorrir um juiz de instrução, e tornou:

— Não vão julgar, pelo menos, que eu haja podido supor na aventura que vou contar, qualquer coisa de sobre-humano. Eu não creio senão nas coisas normais. Mas se, em vez de empregarmos a palavra "sobrenatural" para exprimirmos aquilo que não compreendemos, nos servíssemos simplesmente da palavra "inexplicável", isso valeria muito mais. Em todo o caso, no processo a que vou referir-me, foram sobretudo as circunstâncias que o revestem, as circunstâncias preparatórias que me comoveram. Enfim, vejamos os fatos:

Eu era então juiz de instrução em Ajaccio, uma cidadezinha branca, deitada na margem de um admirável golfo rodeado por todos os lados de altas montanhas.

O que eu tinha sobretudo a fazer ali, era tratar de um processo por vingança. Há processos desses que são soberbos, os mais dramáticos possível, são ferozes, são heroicos. Encontram-se neles os mais belos assuntos de vingança que se possa sonhar, ódios seculares, apaziguados num momento, nunca extintos, manhas abomináveis, assassinatos que tomaram o corpo de verdadeiros massacres e de quase ações gloriosas. Havia dez anos que eu não ouvia falar senão da pensão de sangue, desse terrível preconceito corso, que força a vingar toda a injúria feita a qualquer pessoa sobre o que a fez, por um dos mais próximos parentes do ofendido.

Eu vira processos em que se tinha estrangulado velhos, crianças, donzelas, e tinha a cabeça cheia dessas histórias trágicas.

Ora, certo dia, soube que um inglês acabava de alugar por alguns anos uma pequena Vila no fundo do golfo. Levava consigo um criado francês, que tomara em Marselha ao passar ali. Não tardou que toda a gente se ocupasse daquele personagem singular, que vivia só no seu domicílio, apenas saindo para caçar ou para pescar. Não se dava com pessoa alguma e a ninguém falava, nunca vinha à cidade, e, todas as manhãs se exercitava durante uma ou duas horas no tiro de pistola e de carabina.

Criaram-se logo lendas em volta dele. Pretendia-se que era um alto personagem que emigrara da sua pátria por causa de certos casos políticos; outras vezes afirmava-se que se ocultava por ter cometido um crime horroroso. Chegavam mesmo a citar circunstâncias particularmente horríveis.

Na minha qualidade de juiz de instrução, quis tomar algumas informações a respeito daquele homem; mas foi-me impossível saber fosse o que fosse. Dizia ele chamar-se sir John Rowell.

Contentei-me pois em vigiá-lo de perto; mas nada consegui apurar em realidade, de suspeito, relativo àquele personagem.

Todavia, como os rumores sobre a sua história continuavam, engrossavam, se tornavam gerais, resolvi tentar eu próprio ver aquele estrangeiro, e pus-me a caçar regularmente nas cercanias da propriedade que ele habitava.

Esperei muito tempo uma ocasião. Esta, apresentou-se-me um dia, sob a forma de uma perdiz a que atirei e que matei em presença do inglês. O meu cão trouxe-ma; mas mal agarrei na caça, apressei-me logo a apresentar as minhas desculpas pela minha inconveniência a sir John Rowell, pedindo-lhe ao mesmo tempo quisesse dar-me a honra de aceitar a ave morta.

Ele era um homem de estatura alta e de cabelos rubros, barba rubra, muito alto, muito espadaúdo, uma espécie de hércules pacato e cheio de polidez. Não tinha nada da rigidez inglesa e agradeceu-me solícito a minha delicadeza, num francês acentuado de Além-Mancha.

Ao fim de um mês, havíamos conversado umas cinco ou seis vezes.

Uma noite afinal, como eu passasse por diante da sua porta, vi que ele fumava o seu cachimbo, escarranchado numa cadeira, no seu jardim. Saudei-o. Ele convidou-me a entrar para beber um copo de cerveja.

Não me fiz de rogado.

Recebeu-me com toda a meticulosa cortesia inglesa, falou elogiosamente da França, da Córsega, declarou que gostava muito daquela região, daquela costa.

Então fiz-lhe, com grandes precauções e sob a forma de um vivo interesse, algumas perguntas acerca da sua vida, dos seus projetos. Respondeu-me que tinha viajado muito, em África, nas Índias, na América. E acrescentou sorrindo:

— Tenho corrido muitas aventuras, oh! yes. Depois pus-me a falar de caçadas, e ele deu-me minúcias curiosas sobre a caça ao hipopótamo, ao tigre, ao elefante e até ao gorila.

Eu disse:

— Todos esses animais são terríveis.

Ele sorriu:

— Oh nô, o pior de todos ser o homem.

Pôs-se a rir com boa vontade, com um bom riso de inglês rotundo e satisfeito:

— Eu também ter caçado muito o homem.

Depois falou-me de armas, e ofereceu-me a sua casa para mostrar-me espingardas de diversos sistemas.

O seu salão era atapetado de negro, em seda preta bordado a ouro. Grandes flores amarelas, como que correndo sobre aquele estofo sombrio, brilhavam nele como fogo.

Anunciou: 

— Era um pano japonês.

Mas, no meio da mais larga tapeçaria, uma coisa estranha me atraiu o olhar. Sobre um quadrado de veludo vermelho, um objeto negro destacava-se. Aproximei-me: era uma mão, uma mão de homem. Não era uma mão de esqueleto branca e limpa, mas uma mão negra, dissecada, com as unhas amarelas, os músculos a nu e vestígios de sangue antigos, sangue que parecia uma imundície sobre os ossos cortados cerce, como por um golpe de machado, pelo meio do antebraço.

Em redor do punho havia uma enorme corrente de ferro, fixa, soldada àquele membro sórdido, ligada a uma parede por um anel tão forte que seria capaz de segurar um elefante.

— O que é isto?

O inglês respondeu tranquilamente:

— Isto ser o meu melhor inimigo. Ter vindo da América. Ter sido cortado com o sabre e a pele arrancada com um seixo cortante, e seco ao sol durante oito dias. Aoh, ser muito bom para mim isto.

Toquei naquele destroço humano que devia ter pertencido a um colosso. Os dedos, desmesuradamente longos, eram ligados por tendões enormes, em parte retidos por correias. Aquela mão era horrorosa de ver, assim esfolada, e fazia pensar muito naturalmente nalguma vingança selvagem.

Eu disse:

— Este homem devia ser muito forte.

O inglês com brandura:

— Aoh yes! mas eu ser mais forte do que ele. Eu ter posto esta corrente para o prender. Julguei que ele gracejava e disse:

— Mas esta cadeia agora parece-me bastante inútil, a mão agora já não fugirá.

Sir John Rowel tornou com toda a seriedade:

— Ela querer sempre fugir. Esta corrente ser precisa.

Num rápido olhar interroguei o rosto do inglês, perguntando a mim próprio:

— Será um doido ou um farsante?

Mas o rosto de Sir John Rowell continuava tranquilo e benévolo. Mudei de conversa e pus-me a apreciar as espingardas.

Notei todavia que havia três revólveres carregados sobre os móveis, como se aquele homem vivesse no constante temor de um ataque.

Voltei muitas vezes à sua casa. Por fim, toda a gente se acostumara à sua presença; e sir John tornara-se indiferente a todos.

***

Um ano se passou, dia a dia. Ora, uma certa manhã, aí por fins de novembro, o meu criado despertou-me e anunciou-me que sir John Rowell fora assassinado durante a noite.

Meia hora mais tarde, penetrei na casa do inglês, com o comissário geral e o capitão dos guardas. O criado, como louco de desespero, chorava diante da porta. Eu, a princípio, suspeitei daquele homem; mas estava inocente.

Nunca foi possível encontrar o culpado.

Entrando no salão de sir John vi logo, ao primeiro e rápido olhar, o cadáver estendido de costas, no meio da casa.

O colete achava-se rasgado, uma manga do casaco pendia arrancada, tudo anunciava que se travara ali uma luta terrível.

O inglês morrera estrangulado! O seu rosto, negro e inchado, apavorante, parecia exprimir um assombro abominável; tinha alguma coisa entre os dentes cerrados; e o pescoço com cinco buracos que dir-se-iam feitos com pontas de ferro achava-se coberto de sangue. 

Dali a pouco chegava um médico. Examinou por longo tempo os sinais dos dedos na carne e pronunciou estas estranhas palavras:

— Dir-se-ia que foi estrangulado por um esqueleto.

Passou-me um arrepio pelas costas, e preguei os olhos na parede, no lugar onde há tempos vira a horrível mão mutilada. Já ali não estava. A corrente que a prendia outrora, quebrada, pendia ao abandono.

Então baixei-me para o morto, e achei-lhe na boca crispada um dos dedos daquela mão desaparecida, cortado, ou antes serrado pelos dentes, justamente na segunda falange.

Depois, procedeu-se a averiguações. Nada se descobriu. Porta nenhuma fora forçada, nem janela nem móvel. Os dois cães de guarda não haviam despertado.

Eis, em poucas palavras o depoimento do criado: Havia um mês que seu amo parecia agitado. Recebera algumas cartas, que logo queimava.

Muitas vezes, pegando num azorrague, com uma cólera que parecia de loucura, batera com furor naquela mão dissecada, colada ao muro e levada por fim, não se sabia como, na própria hora do crime.

Ele deitava-se sempre muito tarde, fechando-se com todas as precauções. Conservava sempre armas ao alcance do seu braço. Muitas vezes, de noite, falava alto como se fosse questionado por alguém.

Naquela noite, por acaso, não fizera ruído algum, e o criado, só quando viera abrir as janelas é que encontrara Sir John assassinado. O criado não suspeitava de ninguém. Comuniquei o que sabia do morto aos magistrados e aos oficiais da praça pública, e foi feita em toda a ilha uma rigorosa sindicância. Nada se descobriu.

Ora, uma noite, três meses depois do crime, tive um horrível pesadelo. Parecia-me que via a mão, a horrível mão, correr, como se fosse um escorpião ou uma aranha ao longo das minhas cortinas e das minhas paredes. Três vezes acordei, três vezes me deixei dormir e três vezes vi o horrível destroço galopar ao redor do meu quarto remexendo os dedos como se fossem patas.

No dia seguinte, trouxeram-me aquela mão, achada no cemitério, em cima do túmulo de Sir John Rowell, que ali fora enterrado por não ter sido possível saber do paradeiro de sua família. O dedo índex faltava.

Aqui está, minhas senhoras, a minha história. Nada mais que isto que acabo de contar.

***

As mulheres, como loucas, olhavam-se pálidas, e tremiam. Uma delas exclamou:

— Mas isso não é um desenlace nem uma explicação! Nós não seremos capazes de dormir enquanto nos não disser o que se passou, segundo a sua opinião.

O magistrado sorriu com severidade:

— Oh! eu, minhas senhoras, vou estragar-lhes certamente todos os seus terríveis sonhos. Penso muito simplesmente que o legítimo proprietário da mão não morrera, que veio em procura dela com aquela que lhe restava. Mas não sei como ele o conseguiu. É um gênero de vingança.

Uma das mulheres respondeu:

— Não, isso não deve ser assim.

E o juiz de instrução, sempre sorridente, concluiu:

— Eu bem lhes dizia que a minha explicação não as deixaria satisfeitas.

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