A mão misteriosa
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
O Sr. Bermutier, de
pé, costas para o fogão, falava, amontoava provas, discutia as diversas
opiniões, mas não chegava a uma conclusão.
Muitas mulheres se
haviam levantado para se aproximarem dele e ficavam de pé, o olhar fixo na boca
rapada do magistrado, de onde saíam palavras graves. As senhoras estremeciam,
vibravam, crispadas por um medo curioso, pela ávida e insaciável necessidade de
pavor que é inseparável da sua alma e que as torturas como uma fome.
Uma delas, mais
pálida que as outras, pronunciou durante o silêncio:
— É pavoroso! Chega
às raias do sobrenatural. Nunca se virá a saber coisa alguma.
O magistrado
voltou-se para ela:
— Sim, minha senhora,
é provável que nunca se venha a saber nada. Quanto à palavra sobrenatural, que
acaba de empregar, não é em nada chamada para o caso. Estamos em presença de um
crime habilissimamente concebido, habilissimamente executado, tão bem envolvido
no mistério que não podemos separá-lo das circunstâncias impenetráveis que o
rodeiam. Mas, eu próprio já tive, outrora, de seguir um processo onde em
verdade parecia haver qualquer coisa de fantástico. Foi preciso abandoná-lo por
falta de meios para o esclarecer.
Umas poucas de
mulheres pronunciaram ao mesmo tempo e tão depressa que as suas vozes apenas
pareciam uma só voz:
— Oh! conte, conte,
Sr. Bermutier.
O Sr. Bermutier
sorriu gravemente, como deve sorrir um juiz de instrução, e tornou:
— Não vão julgar,
pelo menos, que eu haja podido supor na aventura que vou contar, qualquer coisa
de sobre-humano. Eu não creio senão nas coisas normais. Mas se, em vez de
empregarmos a palavra "sobrenatural" para exprimirmos aquilo que não
compreendemos, nos servíssemos simplesmente da palavra
"inexplicável", isso valeria muito mais. Em todo o caso, no processo
a que vou referir-me, foram sobretudo as circunstâncias que o revestem, as
circunstâncias preparatórias que me comoveram. Enfim, vejamos os fatos:
Eu era então juiz de
instrução em Ajaccio, uma cidadezinha branca, deitada na margem de um admirável
golfo rodeado por todos os lados de altas montanhas.
O que eu tinha
sobretudo a fazer ali, era tratar de um processo por vingança. Há processos
desses que são soberbos, os mais dramáticos possível, são ferozes, são
heroicos. Encontram-se neles os mais belos assuntos de vingança que se possa
sonhar, ódios seculares, apaziguados num momento, nunca extintos, manhas
abomináveis, assassinatos que tomaram o corpo de verdadeiros massacres e de
quase ações gloriosas. Havia dez anos que eu não ouvia falar senão da pensão de
sangue, desse terrível preconceito corso, que força a vingar toda a injúria
feita a qualquer pessoa sobre o que a fez, por um dos mais próximos parentes do
ofendido.
Eu vira processos em
que se tinha estrangulado velhos, crianças, donzelas, e tinha a cabeça cheia dessas
histórias trágicas.
Ora, certo dia, soube
que um inglês acabava de alugar por alguns anos uma pequena Vila no fundo do
golfo. Levava consigo um criado francês, que tomara em Marselha ao passar ali.
Não tardou que toda a gente se ocupasse daquele personagem singular, que vivia
só no seu domicílio, apenas saindo para caçar ou para pescar. Não se dava com
pessoa alguma e a ninguém falava, nunca vinha à cidade, e, todas as manhãs se
exercitava durante uma ou duas horas no tiro de pistola e de carabina.
Criaram-se logo
lendas em volta dele. Pretendia-se que era um alto personagem que emigrara da
sua pátria por causa de certos casos políticos; outras vezes afirmava-se que se
ocultava por ter cometido um crime horroroso. Chegavam mesmo a citar
circunstâncias particularmente horríveis.
Na minha qualidade de
juiz de instrução, quis tomar algumas informações a respeito daquele homem; mas
foi-me impossível saber fosse o que fosse. Dizia ele chamar-se sir John Rowell.
Contentei-me pois em
vigiá-lo de perto; mas nada consegui apurar em realidade, de suspeito, relativo
àquele personagem.
Todavia, como os
rumores sobre a sua história continuavam, engrossavam, se tornavam gerais,
resolvi tentar eu próprio ver aquele estrangeiro, e pus-me a caçar regularmente
nas cercanias da propriedade que ele habitava.
Esperei muito tempo
uma ocasião. Esta, apresentou-se-me um dia, sob a forma de uma perdiz a que
atirei e que matei em presença do inglês. O meu cão trouxe-ma; mas mal agarrei
na caça, apressei-me logo a apresentar as minhas desculpas pela minha
inconveniência a sir John Rowell, pedindo-lhe ao mesmo tempo quisesse dar-me a
honra de aceitar a ave morta.
Ele era um homem de
estatura alta e de cabelos rubros, barba rubra, muito alto, muito espadaúdo,
uma espécie de hércules pacato e cheio de polidez. Não tinha nada da rigidez
inglesa e agradeceu-me solícito a minha delicadeza, num francês acentuado de
Além-Mancha.
Ao fim de um mês,
havíamos conversado umas cinco ou seis vezes.
Uma noite afinal,
como eu passasse por diante da sua porta, vi que ele fumava o seu cachimbo,
escarranchado numa cadeira, no seu jardim. Saudei-o. Ele convidou-me a entrar
para beber um copo de cerveja.
Não me fiz de rogado.
Recebeu-me com toda a
meticulosa cortesia inglesa, falou elogiosamente da França, da Córsega,
declarou que gostava muito daquela região, daquela costa.
Então fiz-lhe, com
grandes precauções e sob a forma de um vivo interesse, algumas perguntas acerca
da sua vida, dos seus projetos. Respondeu-me que tinha viajado muito, em África,
nas Índias, na América. E acrescentou sorrindo:
— Tenho corrido
muitas aventuras, oh! yes. Depois
pus-me a falar de caçadas, e ele deu-me minúcias curiosas sobre a caça ao
hipopótamo, ao tigre, ao elefante e até ao gorila.
Eu disse:
— Todos esses animais
são terríveis.
Ele sorriu:
— Oh nô, o pior de
todos ser o homem.
Pôs-se a rir com boa
vontade, com um bom riso de inglês rotundo e satisfeito:
— Eu também ter
caçado muito o homem.
Depois falou-me de
armas, e ofereceu-me a sua casa para mostrar-me espingardas de diversos
sistemas.
O seu salão era
atapetado de negro, em seda preta bordado a ouro. Grandes flores amarelas, como
que correndo sobre aquele estofo sombrio, brilhavam nele como fogo.
Anunciou:
— Era um pano
japonês.
Mas, no meio da mais
larga tapeçaria, uma coisa estranha me atraiu o olhar. Sobre um quadrado de
veludo vermelho, um objeto negro destacava-se. Aproximei-me: era uma mão, uma
mão de homem. Não era uma mão de esqueleto branca e limpa, mas uma mão negra,
dissecada, com as unhas amarelas, os músculos a nu e vestígios de sangue
antigos, sangue que parecia uma imundície sobre os ossos cortados cerce, como
por um golpe de machado, pelo meio do antebraço.
Em redor do punho
havia uma enorme corrente de ferro, fixa, soldada àquele membro sórdido, ligada
a uma parede por um anel tão forte que seria capaz de segurar um elefante.
— O que é isto?
O inglês respondeu
tranquilamente:
— Isto ser o meu
melhor inimigo. Ter vindo da América. Ter sido cortado com o sabre e a pele
arrancada com um seixo cortante, e seco ao sol durante oito dias. Aoh, ser
muito bom para mim isto.
Toquei naquele
destroço humano que devia ter pertencido a um colosso. Os dedos,
desmesuradamente longos, eram ligados por tendões enormes, em parte retidos por
correias. Aquela mão era horrorosa de ver, assim esfolada, e fazia pensar muito
naturalmente nalguma vingança selvagem.
Eu disse:
— Este homem devia
ser muito forte.
O inglês com
brandura:
— Aoh yes! mas eu ser
mais forte do que ele. Eu ter posto esta corrente para o prender. Julguei que
ele gracejava e disse:
— Mas esta cadeia
agora parece-me bastante inútil, a mão agora já não fugirá.
Sir John Rowel tornou
com toda a seriedade:
— Ela querer sempre
fugir. Esta corrente ser precisa.
Num rápido olhar interroguei
o rosto do inglês, perguntando a mim próprio:
— Será um doido ou um
farsante?
Mas o rosto de Sir
John Rowell continuava tranquilo e benévolo. Mudei de conversa e pus-me a
apreciar as espingardas.
Notei todavia que
havia três revólveres carregados sobre os móveis, como se aquele homem vivesse
no constante temor de um ataque.
Voltei muitas vezes à
sua casa. Por fim, toda a gente se acostumara à sua presença; e sir John
tornara-se indiferente a todos.
***
Um ano se passou, dia
a dia. Ora, uma certa manhã, aí por fins de novembro, o meu criado despertou-me
e anunciou-me que sir John Rowell fora assassinado durante a noite.
Meia hora mais tarde,
penetrei na casa do inglês, com o comissário geral e o capitão dos guardas. O
criado, como louco de desespero, chorava diante da porta. Eu, a princípio,
suspeitei daquele homem; mas estava inocente.
Nunca foi possível
encontrar o culpado.
Entrando no salão de
sir John vi logo, ao primeiro e rápido olhar, o cadáver estendido de costas, no
meio da casa.
O colete achava-se
rasgado, uma manga do casaco pendia arrancada, tudo anunciava que se travara
ali uma luta terrível.
O inglês morrera estrangulado! O seu rosto, negro e inchado, apavorante, parecia exprimir um assombro abominável; tinha alguma coisa entre os dentes cerrados; e o pescoço com cinco buracos que dir-se-iam feitos com pontas de ferro achava-se coberto de sangue.
Dali a pouco chegava
um médico. Examinou por longo tempo os sinais dos dedos na carne e pronunciou
estas estranhas palavras:
— Dir-se-ia que foi
estrangulado por um esqueleto.
Passou-me um arrepio
pelas costas, e preguei os olhos na parede, no lugar onde há tempos vira a
horrível mão mutilada. Já ali não estava. A corrente que a prendia outrora,
quebrada, pendia ao abandono.
Então baixei-me para
o morto, e achei-lhe na boca crispada um dos dedos daquela mão desaparecida,
cortado, ou antes serrado pelos dentes, justamente na segunda falange.
Depois, procedeu-se a
averiguações. Nada se descobriu. Porta nenhuma fora forçada, nem janela nem
móvel. Os dois cães de guarda não haviam despertado.
Eis, em poucas
palavras o depoimento do criado: Havia um mês que seu amo parecia agitado.
Recebera algumas cartas, que logo queimava.
Muitas vezes, pegando
num azorrague, com uma cólera que parecia de loucura, batera com furor naquela
mão dissecada, colada ao muro e levada por fim, não se sabia como, na própria
hora do crime.
Ele deitava-se sempre
muito tarde, fechando-se com todas as precauções. Conservava sempre armas ao
alcance do seu braço. Muitas vezes, de noite, falava alto como se fosse
questionado por alguém.
Naquela noite, por
acaso, não fizera ruído algum, e o criado, só quando viera abrir as janelas é
que encontrara Sir John assassinado. O criado não suspeitava de ninguém.
Comuniquei o que sabia do morto aos magistrados e aos oficiais da praça
pública, e foi feita em toda a ilha uma rigorosa sindicância. Nada se
descobriu.
Ora, uma noite, três
meses depois do crime, tive um horrível pesadelo. Parecia-me que via a mão, a
horrível mão, correr, como se fosse um escorpião ou uma aranha ao longo das
minhas cortinas e das minhas paredes. Três vezes acordei, três vezes me deixei
dormir e três vezes vi o horrível destroço galopar ao redor do meu quarto
remexendo os dedos como se fossem patas.
No dia seguinte,
trouxeram-me aquela mão, achada no cemitério, em cima do túmulo de Sir John
Rowell, que ali fora enterrado por não ter sido possível saber do paradeiro de
sua família. O dedo índex faltava.
Aqui está, minhas
senhoras, a minha história. Nada mais que isto que acabo de contar.
***
As mulheres, como
loucas, olhavam-se pálidas, e tremiam. Uma delas exclamou:
— Mas isso não é um
desenlace nem uma explicação! Nós não seremos capazes de dormir enquanto nos
não disser o que se passou, segundo a sua opinião.
O magistrado sorriu
com severidade:
— Oh! eu, minhas
senhoras, vou estragar-lhes certamente todos os seus terríveis sonhos. Penso
muito simplesmente que o legítimo proprietário da mão não morrera, que veio em
procura dela com aquela que lhe restava. Mas não sei como ele o conseguiu. É um
gênero de vingança.
Uma das mulheres
respondeu:
— Não, isso não deve
ser assim.
E o juiz de
instrução, sempre sorridente, concluiu:
— Eu bem lhes dizia que a minha explicação não as deixaria satisfeitas.
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