10/20/2020

O vingador (Conto), de Guy de Maupassant



 O vingador

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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Quando Anthony Leuillet se casou com a viúva Matilde Souris, estava apaixonado por ela fazia perto de dez anos.

O Sr. Souris tinha sido seu amigo, seu velho colega de colégio. Leuillet amava-o muito, mas achava-o um pouco ridículo. E dizia muitas vezes: "Este pobre Souris não inventou a pólvora".

 Quando o Sr. Souris se casou com Matilde Duval, Leuillet ficou um pouco surpreso e muito aborrecido, porque ele tinha por ela uma ligeira paixão. Era a filha de uma vizinha, antiga merceeira afastada do comércio com uma pequena fortuna. Ela era linda, delicada, inteligente. Ela quis o Sr. Souris pelo seu dinheiro.

Então Leuillet teve outras esperanças. Fez a corte à mulher de seu amigo. Ele era um bom sujeito e rico também. Estava certo do sucesso e saiu-se mal. Então, tornou-se um apaixonado, cuja intimidade com o marido o tornava tímido, discreto e embaraçado. A senhora Souris julgou que ele não pensava mais nela com ideias atrevidas e tornou-se francamente sua amiga. Isto durou nove anos.

Ora, um dia um mensageiro levou a Leuillet recado da pobre mulher. Souris acabava de morrer subitamente da ruptura de um aneurisma.

Ele teve um abalo forte, porque eram da mesma idade, mas quase depois uma sensação de profunda alegria, de consolo profundo, de resgate que lhe penetrou o corpo e a alma. A senhora Souris estava livre.

Soube mostrar no entanto o ar consternado que era preciso, esperou o tempo necessário e observou todas as conveniências. No fim de quinze dias casou-se com a viúva. Julgou-se este ato natural e mesmo generoso Era assim que fazia um bom amigo e um homem honesto.

Foi feliz, completamente feliz.

Viveram na mais cordial intimidade, tendo se compreendido e apreciado desde o primeiro momento. Não tinham segredos um para o outro, e transmitiam-se seus mais íntimos pensamentos. Leuillet amava agora sua mulher com um amor tranquilo e confiante; amava-a como uma companheira terna e devotada, como a uma confidente. Mas sentia intimamente, um singular e inexplicável rancor contra Souris que a tinha possuído em primeiro lugar, que tinha tido a flor de sua mocidade e de sua alma, que  tinha mesmo lhe tirado um pouco da poesia. A lembrança do marido morto estragava a felicidade do marido vivo; e este ciúme póstumo atormentava agora dia e noite o coração de Leuillet.

Chegava a falar sem cessar de Souris, a perguntar sobre mil detalhes íntimos e secretos, a querer conhecer seus hábitos.

A todo instante chamava a mulher:

— Matilde?

— Pronto, meu querido!

— Vem me dizer uma palavra.

Ela ia sempre sorridente, sabendo bem que se ia tratar de Souris e afagando essa mania inofensiva de seu novo esposo.

— Lembras-te do dia em que Souris quis me demonstrar que os homens pequenos são mais amados que os grandes?

E ela se punha em reflexões desagradáveis para o defunto, que era pequeno com vantagens para Leuillet, que era grande.

E a senhora Leuillet deixava-lhe perceber que ele tinha razão, muita razão; ria-se perdidamente, zombando docemente do antigo esposo, para o prazer do novo, que acabava acrescentando:

— Tudo era assim naquele Souris, que ridículo!

Eram felizes, completamente felizes. E Leuillet não cessava de provar à sua mulher seu amor.

Ora, uma noite, como eles não tivessem sono, emocionados por um raio de juventude, Leuillet que tinha sua mulher apertada nos braços e que a beijava freneticamente, perguntou-lhe de repente:

— Dizes-me uma coisa, querida?

— Hein?

— Souris... é difícil o que vou perguntar-te. Souris era bastante... bastante ardente?

Ela deu-lhe um grande beijo e murmurou:

— Não tanto quanto tu, meu gato.

Ele sentiu lisonjeado o seu amor próprio e replicou:

— Devia ser... ridículo.. dize-me?

Ela não respondeu. Teve apenas um risinho de malícia escondendo a cabeça no peito do marido.

Ele perguntou-lhe:

—Devia ser muito ridículo e não... não... como direi, não muito hábil?

Ela fez um ligeiro movimento de cabeça que significava "não... inábil de todo".

Ele continuou:

— Devia te aborrecer muito durante a noite, hein?

Ela teve desta vez um acesso de franqueza respondendo:

— Oh! sim.

Ele beijou-a de novo por esta palavra e murmurou:

— Que bruto era! Não eras feliz com ele?

— Não. Isso, todos os dias, não era divertido.

Leuillet ficou encantado, estabelecendo em seu espírito uma comparação entre a antiga situação da mulher e a nova.

Ficou algum tempo sem falar, depois teve um acesso de alegria e perguntou:

— Dize-me uma coisa?

— Quê?

— Queres ser franca, bem franca comigo?

— Sim, meu querido.

— Está bem. Na verdade tu nunca tiveste vontade de... de... de... de enganar a esse imbecil do Souris?

A senhora Leuillet fez um pequeno "Oh!" de pudor e escondeu-se no peito do marido. Mas ele percebeu que ela se estava rindo.

Ele insistiu.

— Ora, confessa-me? Ele tinha também uma cabeça de... daquele animal. Tu podias dizer isso a mim, a mim, sobretudo.

E insistia no "a mim", pensando que se ela tivesse tido vontade de enganar Souris, seria com ele que o enganaria; e fremia de prazer esperando a confissão, certo de que se ela não tivesse sido a mulher virtuosa que era, ele a teria possuído.

Mas a mulher não respondeu, rindo-se sempre como de uma coisa infinitamente cômica.

Leuillet, por sua vez, pôs-se a rir, só de pensar que ela tivesse enganado Souris. Que bela farsa. Ah! sim, a bela farsa, verdadeiramente!

Balbuciava agitado por sua alegria:

— Esse pobre Souris, esse Pobre Souris, ah, sim, ele tinha cabeça para isso: ah, sim, ah, sim.

A senhora Leuillet torcia-se de rir sob os cobertores.

E ele repetiu:

— Vamos, confessa, confessa. Sê franca. Compreendes bem que isso não pode ser desagradável para mim.

Então, ela balbuciou:

— Sim, sim.

— Sim, com quem? Dize tudo.

Ela não riu mais senão de um modo discreto e levando a boca até aos ouvidos de Leuillet que esperava uma agradável confidência, e murmurou:

— Sim... enganei-o.

Ele sentiu um arrepio de frio que lhe correu por todo o corpo e perguntou:

— Tu... tu... o enganaste?

Ela julgou ainda que ele acharia a coisa infinitamente agradável e respondeu:

— Sim... Sim...

Foi obrigado a sentar-se na cama tanto se sentia desfalecer, a respiração cansada, transtornado como se acabasse de saber que o enganado era ele mesmo.

A princípio não disse nada, depois, ao fim de alguns minutos, pronunciou apenas:

— “Ah!”

Ela havia cessado de rir, compreendendo muito tarde sua falta.

Leuillet, enfim perguntou:

— E com quem?

Ela emudeceu, procurando uma mentira.

Ele perguntou de novo:

— Com quem?

Ela enfim respondeu:

— Com um rapaz.

Ele voltou-se para ela bruscamente e numa voz seca disse:

— Certamente que não foi com a cozinheira. Pergunto quem foi o rapaz, entendes?

Ela nada respondeu. Ele  arrancou o lençol com que ela se cobria e atirou-o no meio do chão, repetindo:

— Quero saber quem foi o rapaz, ouviste?

Então, ela disse tristemente:

— Estava brincando.

Mas ele fremente de cólera:

— Quem? Como? Querias te divertir? Zombavas de mim, então? Mas eu não admito brincadeiras, ouviste? Quero saber o nome do rapaz.

Ela não respondeu, permanecendo imóvel.

Ele tomou-lhe o braço e apertou-o fortemente:

— Ouves-me? Quero que me respondas quando te falo?

Tremia de furor, não sabendo mais o que dizer e desesperado sacudia-a fortemente.

— Entendes-me?

Ela para se livrar fez um gesto brusco e a ponta dos dedos atingiu o nariz do marido. Ele ficou furioso, julgando-se ferido, e atirou-se sobre ela.

E esbofeteava-a e gritava:

— Aí está, aí está, miserável, ordinária.

Depois se levantou e foi à cômoda preparar um pouco de água de flor de laranja, porque se sentia desfalecer.

Ela chorava, soluçando alto, sentindo toda sua felicidade extinguir-se por sua culpa.

Então, no meio das lagrimas um dia balbuciou:

— Escuta, Anthony, vem cá, eu te menti, vais compreender, escuta. 

E pronta para a defesa, armada agora de razões e de ardis, ela levantou um pouco a cabeça.

O marido, voltando-se aproximou-se, envergonhado de ter-lhe batido, mas sentindo no fundo do coração um ódio terrível contra essa mulher que tinha enganado o outro, o Souris.

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