10/15/2020

Um ardil (Conto), de Guy de Maupassant

 

Um ardil

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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Conversavam ao canto da sala o velho médico e a jovem doente. Ela sofria dessas indisposições que têm muitas vezes as lindas mulheres: um pouco de anemia, nervos, e uma suposta fadiga, dessa fadiga que experimentam muitas vezes os recém-casados no fim do primeiro mês de união, quando se casam por amor.

Estendida na “chaise longue”, conversava:

— Não, doutor, eu não compreenderei nunca que uma mulher engane o marido. Admito mesmo que ela não o ame, que ela não leve em conta nenhuma das suas promessas, das suas juras. Mas, como ousar entregar-se a um outro homem? Como poder amar na mentira e na traição?

O medico sorria:

— Quanto a isso é fácil. Garanto-lhe que não se reflete nessas sutilezas, quando o desejo de enganar chega. Estou mesmo certo que uma mulher não é prudente para o amor se não depois de ter passado por todas as intimidades e todos os desgostos do casamento. Uma mulher não pode amar apaixonadamente senão depois de ter se casado. Se eu a pudesse comparar a uma casa, diria que ela não é habitável senão quando um marido foi o primeiro a habitá-la.

Quanto à dissimulação, todas as mulheres têm em abundância nessas ocasiões. As mais simples são maravilhosas, e sabem se sair bem nos casos mais difíceis.

Mas a senhora parecia incrédula:

— Não, doutor, não se pensa nunca senão depois do golpe que se deveria dar nas ocasiões perigosas; e as mulheres estão certamente ainda mais dispostas, que os homens a perder a cabeça.

O médico ergueu os braços.

— Depois do golpe, diz o médico! Nós não temos a inspiração senão depois do golpe. Mas as mulheres!... Ouça, vou lhe contar uma historiazinha que se deu com um de meus clientes.

Isto passou-se numa cidade da província.

Uma noite, quando eu dormia profundamente, pareceu-me, num sonho obscuro, que os sinos da cidade anunciavam um incêndio.

De repente, despertei: era a campainha da porta que batia desesperadamente. Como meu criado parecia não ouvir, agitei por minha vez o cordão que estava pendido do meu leito e logo as portas se abriram e passos perturbaram o silêncio da casa adormecida; depois João, o criado, apareceu, trazendo uma carta que dizia: "Madame Lelievre pede com insistência ao Dr. Simeon que passe em sua casa imediatamente”.

Refleti alguns segundos; pensava: Crise de nervos, gazes, etc., estou muito cansado. E respondi: “O Dr. Simeon, muito doente, roga a Madame Lelievre o favor de chamar seu colega Dr. Bonnet”.

Depois entreguei o bilhete num envelope e adormeci.

Cerca de meia hora mais tarde, a campainha soou novamente e João veio dizer-me:

— É alguém, um homem ou uma mulher, não sei bem (tão agasalhado está), que queria falar depressa ao doutor. Diz que se refere à vida de duas pessoas.

— Mande entrar.

Atendi, sentado na minha cama. 

Uma espécie de fantasma negro apareceu e, desde que João saiu, descobriu-se. Era Madame Bertha Lelievre, uma linda jovem, casada há três anos com um grande negociante da cidade, que passava por ter esposado a mais linda mulher da província.

Ela estava horrivelmente pálida, com essas crispações de fisionomia das pessoas enlouquecidas; e suas mãos tremiam. Por duas vezes tentou falar, sem que um som pudesse sair de sua boca. Enfim, balbuciou:

— Depressa, depressa, depressa... Doutor... Venha... Meu amante morreu no meu quarto...

Ela se deteve sufocada, depois disse:

— Meu marido vai... voltar do Clube.

Saltei da cama sem mesmo me lembrar que estava em camisa e vesti-me em alguns segundos. Depois, perguntei-lhe:

— Foi a senhora mesma que veio há pouco?

Ela, em pé como uma estátua, petrificada pela angústia, murmurou:

— Não... foi minha criada... ela sabe...

Depois de um silencio:

— Eu... tinha ficado... perto dele...

E uma espécie de grito de dor horrível saiu de seus lábios e depois caiu num pranto convulso.

— Por favor, depressa — disse ela.

Eu estava pronto, mas exclamei:

— Não mandei atrelar meu carro.

Respondeu:

— Tenho um, tenho o dele, que o esperava.

Embrulhou-se até os cabelos e partimos.

Quando ela ia a meu lado na obscuridade do carro, pegava-me na mão e apertando seus dedos finos, balbuciava com agitação na voz:

— Oh! se soubesse como eu sofro! Eu o amava perdidamente há dez meses, como uma insensata.

Perguntei-lhe:

— Tem alguém acordado em casa?

— Não, ninguém, exceto Rosa, que sabe tudo.

Paramos diante da porta. Todos dormiam, com efeito. Entramos sem fazer barulho e subimos pé ante pé. A criada, espantada, estava sentada no alto da escadaria, com uma vela acesa ao seu lado, não tinha tido coragem de permanecer perto do morto.

Entrei no quarto. Ela estava transtornada como depois de uma luta. O leito desfeito, pisado, estava aberto, parecia esperar; um pano puxado até o tapete, toalhas molhadas com que tinham feito compressas para as têmporas do jovem, estavam no chão, ao lado de uma bacia e de um copo. E havia um singular cheiro de vinagre misturado com Lubin.

Estendido, de costas, no meio do quarto, via-se o cadáver. 

Aproximei-me e considerei; apalpei-o; abri os olhos; tomei-lhe o pulso;  depois, virando-me para as mulheres que tremiam  como se estivessem com frio disse:

— Ajudem-me a deitá-lo na cama.

E o deitamos docemente. Então auscultei-lhe o coração e pus um espelho diante da boca; depois murmurei:

— Está tudo acabado, vistamo-lo depressa.

Foi um espetáculo horrível de se presenciar.

Tomei um a um os membros como os de um enorme boneco, e comecei a vesti-lo.

Depois que a horrível “toilette" terminou, considerei nossa obra e disse:

— É preciso prepará-lo um pouco. Vamos penteá-lo.

Ela tomou do pente e penteou-o carinhosamente e repartiu-lhe o cabelo, passou a escova na barba e depois retorceu os bigodes, corno ele costumava fazer.

E de repente, deixando o que tinha nas mãos, pegou a cabeça inerte do seu amante e olhou-a demoradamente. Depois abraçou-o e beijou-o. E não contente, aproximou-se do ouvido do morto, como se ele pudesse ouvir ainda, como para balbuciar a palavra que faz mais ardentes as expectativas e repetiu dez vezes, seguidas, numa voz pungente:

— Adeus, querido.

O relógio bateu meia noite. Tive um sobressalto. É a hora em que se fecha o Clube.

— Vamos, minha senhora, coragem!

Ela se endireitou. Eu ordenei: Levemo-lo para o salão. Conduzimo-lo e eu o sentei num canapé, depois acendi os candelabros.

A porta da rua abriu-se e fechou-se pesadamente. Era ele. Exclamei:

— Rosa, depressa, traga-me as toalhas e a bacia e arrume o quarto, depressa, por Deus! Foi o Sr. Lelievre que chegou.

Eu ouvia os passos se aproximarem. Com as mãos no escuro apalpava as paredes. Então, chamei-o:

— Por aqui, meu caro; tivemos um acidente.

E o marido estupefato parou na soleira com tini cigarro na boca e perguntou:

— Quê? Que houve? Que é isto?

Dirigi-me a ele:

— Meu bom amigo, encontra-nos num grande embaraço. Tinha ficado muito tempo a conversar em tua casa com tua mulher e nosso amigo que me havia trazido em seu carro. Eis senão quando, ele de repente teve uma síncope e há duas horas, apesar de nossos cuidados, está sem sentidos. Ajuda-me a descê-lo; tratarei melhor delia em sua própria cama.

O esposo surpreso, mas sem desconfiança, tirou o chapéu; depois tomou nos braços o rival, de ora em diante inofensivo. Eu peguei nas pernas e descemos as escadas, alumiados agora pela mulher.

Quando chegamos diante da porta, endireitei o cadáver e falei-lhe, encorajando-o, para enganar o seu cocheiro:

— Vamos, meu caro amigo, isto não será nada. Estás te sentindo melhor, não é? Coragem, um pouco de coragem, um pouco de esforço e está tudo acabado.

Como sentisse que ele ia cair, que me fugia das mãos, empurrei-o pelos ombros e o lancei antes de mim na carruagem, depois eu subi.

O marido, inquieto, perguntava-me:

— Crês que isto seja grave?

— Não!

E sorrindo olhei a mulher. Ela tinha passado o braço no braço do esposo legítimo e olhava fixamente para o fundo do carro.

Apertei-lhe as mãos e dei ordem de partir. Durante toda a viagem o morto me caía sobre o ombro direito.

Quando cheguei em casa dele, disse que tinha perdido os sentidos no caminho. Ajudei a pô-lo no seu quarto, depois constatei o óbito; eu representava uma nova comédia, diante de sua família consternada. Enfim, fui de novo para minha cama, não sem protestar contra os amantes.

O doutor calou-se, sorrindo sempre.

A rapariga, arrepiada, perguntou:

— Por que me contou esta horrorosa história?

Ele respondeu galantemente:

— Para oferecer-lhe os meus serviços quando chegar a ocasião.

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