12/06/2020

O Voto (Conto), de Júlia Lopes de Almeida

 

O Voto

As pitangueiras, garridas com as suas frutinhas de coral, estavam ainda molhadas da chuva da véspera. O sol, que ia subindo, punha uma larga barra cor de laranja no céu, de um azul violeta; cantava um bem-te-vi na copa alta de uma paineira, e a aragem da manhã vinha toda perfumada de manacá de ervilhas-de-cheiro. 

Com o samburá na mão, a saia redonda mostrando-lhe os tornozelos finos, a Ginoca, saltitante e mimosa como a juriti, enterrava na grama orvalhada os pezinhos delicados, sem pena de molhar as suas meias vermelhas e os seus sapatos amarelos. 

Ela passava risonha, cantando num débil, mas agradável fio de voz, uma cantiga da roça. 

Das grandes folhas das bananeiras rolavam, como contas, os pingos d’água, e de fragmento em fragmento as formigas iam levando para as suas tocas os araçás de que a chuva tinha alastrado o chão. 

Ginoca escolheu com cuidado os melhores marmelos e os figos mais maduros. Suspendeu-se depois, alegre e ágil, num galho de pitangueira, e foi então uma chuva de corais e de orvalho sobre a sua blusa de linho branco e sobre os seus cabelos corredios e negros. 

Cheio o samburá, ela subiu o pomar até perto de casa. 

O pai, um homem atlético, estava de pé no meio do terreiro, saboreando um copo de leite. Ao pé dele a vaca silenciosa esperava submissa, com o focinho voltado para a luz. Ginoca deu-lhe um figo. 

O animal estava acostumado àquelas gulodices, comeu a fruta e lambeu a mão da moça. 

Acabado o leite, o pai entregou o copo a filha, e esta, abaixando--se, tomou na palma da mão a teta da vaca e ia mungi-la para encher novamente o copo, quando o pai exclamou: 

– OIha, Ginoca, aquele que vem acolá, é o Camundongo! Ora se é! Conheço-o perfeitamente pelo trote! 

Ginoca levantou-se de um salto; estendeu a mão sobre as sobrancelhas para ver melhor, e depois de um segundo de observação disse com ar de triunfo: 

– É papai! Lá vem Maurício!... Assobie para ver se ele ouve!... 

O velho assobiou estridulamente. Não se ouviu resposta. Houve um bater de asas apressadas no pomar, e o bem-te-vi calou-se. Ginoca respirou com força, enchendo o peito com o ar impregnado de manacá e de ervilhas-de-cheiro. O coração batia-lhe, as faces cor de jambo maduro fizeram-se-lhe vermelhas como rosas de Alexandria. 

– Pois você não vê como o pobre Camundongo vem depressa! Aposto em como o diabo do Maurício traz esporas! Vai abrir a cancela, que o teu noivo não tarda.... Também, se ele tiver esporeado o Camundongo, há de se haver comigo! 

– De Friburgo até aqui é longe... respondeu ela, desculpando o noivo. 

– Longe! Duas léguas mal medidas... Deus me dê anos de saúde, como de vezes as tenho andado a pé... Quando tua mãe era viva... 

Não continuou; o rumor das patas do cavalo aproximava-se, e a Ginoca deitou a correr para a cancela; o pai seguiu-a sorrindo, e a vaca avançou vagorosamente para o samburá esquecido no chão, e, com toda a calma, devorou os figos. 

Maurício era noivo e primo da Ginoca; estudava medicina e só pelas férias ia passar um tempo na casa do tio. 

Ginoca adorava-o, e o pai aceitava com alegria aquele casamento, porque era doido pelo sobrinho. Um rapaz de mão cheia! Dizia ele aos amigos, e sabe tantas coisas! Tem ciência para dez! 

O que ele temia, era que o moço se corrompesse com os livres-pensadores... 

Religioso, arraigado à igreja, ele queria para genro um homem de crenças seguras no poder infinito do Ser Supremo... 

– Ora viva o Sr. Maurício! Gritou ele ao sobrinho, que era todo olhos para a Ginoca. 

– Tio Guilherme... murmurou, abraçando-o, o moço. 

Trocadas as primeiras expansões, entraram. Na pequena sala de jantar, alegre e rústica, alvejavam a toalha e a louça para o almoço; na parede caiada, ao fundo, sobre uma prateleira de pinho coberta de crochê, um boião de barro sustinha um ramo de rosas de todo o ano, de hortênsias azuis e de alecrim cheiroso. No alto, um quadro da Virgem, em oleografia, com a sua túnica branca e o manto flutuante, sorria no meio daquela pobreza alegre. O tio Guilherme benzeu-se antes de sentar-se mesa; a filha rezou de mãos postas, e Maurício desviou o olhar para a janela, onde uma borboleta azul batia de encontro aos vidros. 

O tempo das férias voou alegremente. 

Às vezes iam a uma propriedade vizinha, de uns sitiantes suíços, comprar manteiga fresca ou assistir a colheita das batatas. Ginoca levava sempre uma cestinha que enchia das framboesas da estrada, para dar às crianças que encontrasse. Maurício auxiliava-a, e o pai ria-se, alegrado pelo amor e a mocidade de ambos. Era bem certo que Deus tinha criado aqueles dois um para o outro! 

Na maior parte das manhãs não saíam do sítio, mas nem por isso se levantavam mais tarde. Quando abriam as janelas, as montanhas de Friburgo estavam ainda envoltas num nevoeiro espesso, que o sol ia desfazendo numa polvilhação dourada. A estrada, vermelha, serpeava ao longe entre a verdura dos campos e o espreguiçar azulado e frio das águas da cachoeira. Os carneiros balavam à distância, e no ar fresco e leve cruzavam-se cantos de aves e aromas de flores. 

Ginoca, lépida como uma cabrita, descia ao curral e vinha puxando a vaca, a grande vaca branca e preta, que a seguia com olhar melancólico e meigo. 

Daí eram as partidas no pomar; os assaltos às pitangueiras. Maurício trepava à árvore, Ginoca aparava as frutas no avental; enfeitava a trança negra com as pinguinhas vermelhas, desfolhava no seio as flores dos limoeiros, e era tudo alegria e risadas. Quando voltavam para o almoço, iam impregnados do aroma das ervas e com o rosto ainda úmido da água, muito transparente e fria, que atravessava a horta, levando na corrente um ou outro junquilho ou as florinhas douradas dos pés de hortaliça. 

Expirado o tempo das férias, Maurício voltou ao Rio, e a Ginoca começou a trabalhar com afinco no enxoval. 

Iam as coisas assim, quando tiveram notícia de que o estudante estava à morte no Rio, com febre amarela! 

Foi um terror imenso! 

Ginoca suplicava ao pai que a levasse para junto do noivo; o pai negava-se, e as horas passavam lentas e amarguradas. Cessaram as notícias e o pressentimento da morte tolheu os corações do pai e da filha; ele queria disfarçar, mas não o conseguia, e a Ginoca, já sem lágrimas, muito pálida, parecia uma louca. Uma noite, enquanto o pai dormia, ela ajoelhou-se em frente ao quadro da Virgem e fez, com toda a fé da sua alma castíssima, uma promessa a Mãe de Deus. Quando se levantou, os seus olhos resplandeciam de lágrimas, mas havia uma expressão enérgica de confiança e de paz no seu belo rosto moreno. Nem um soluço quebrou o silêncio da noite. 

No outro dia de manhã receberam uma carta. Maurício estava salvo. 

Rebentaram os risos. O velho disse à filha que escrevesse ao noivo, dizendo-lhe para ir convalescer em sua casa. Ginoca ria, relendo e beijando a carta. 

– Sabes que mais? Disse-lhe o pai, o casamento vai fazer-se já... 

Isto de cuidados e demoras não são coisas do meu agrado. Ele que venha e trataremos disso. O padre Benedito ali está e um altar arma-se num momento! 

Ginoca suspendera subitamente o riso e tornou-se branca como linho. 

– Casar?... 

– Então?! 

– É impossível! Oh! Não me pergunte por que, papai; é impossível! 

– Ora esta!

O velho supôs que a filha delirasse e tomou-lhe o pulso. A moça correu para o interior da casa, e ele, atônito, ficou olhando para o buraco vazio da porta por onde ela tinha fugido. 

Passou todo o dia aflito. 

Que teria a Ginoca? Resolveu-se a chamar o médico; mas antes disso quis ainda consultar a filha. 

Às Ave-Marias desceram ambos ao pomar. No galho florido de um pessegueiro cantava um sabiá, e no fundo azul pálido do céu as montanhas de Friburgo desenhavam-se muito escuras. 

– Olha, Ginoca... por que é que já não queres casar com teu primo?... Perguntou o tio Guilherme, com ar constrangido e tímido. 

A filha baixou a cabeça, silenciosa, vencida pela comoção. 

– Ele fez-te algum mal, ofendeu-te? 

 – Oh! Não! 

– Então que teima é essa?! O pobre não adora-te, e eu, francamente, estava satisfeito... 

– Eu já não posso casar! 

– Hein!? Já não podes casar! Que diabo de linguagem é essa?! 

Ginoca parou, ergueu para o pai os olhos úmidos e murmurou: 

– Fiz um voto... prometi a Nossa Senhora que, se salvasse Maurício da morte, eu ficaria solteira a vida toda... 

O pai recuou, como se tivesse levado uma pedrada no coração. Rolaram no ar sereno da tarde as badaladas das Ave-Marias; ele, respeitoso e triste, tirou o chapéu. A Ginoca apoiou-se a um tronco de árvore, soluçando alto. 

Extinta a última vibração do Angelus, o velho disse tremulamente à filha: 

– Já que fizeste um voto... tens de cumpri-lo... 

Ela abanou afirmativamente a cabeça. 

Voava por todo o pomar o doce aroma das ameixeiras em flor.

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