1/24/2022

Camilo Castelo Branco: o mestre de todos nós (Ensaio)

 

CAMILO CASTELO BRANCO: O MESTRE DE TODOS NÓS

Na dolorosa epopeia do gênio discutido e caluniado abre uma exceção, que nos consola, este grande nome de Camilo Castelo Branco. Os grandes homens insultados pela mediocridade confiaram sempre do futuro o glorioso desagravo; Camilo encarregou-se da desforra; e os seus insultadores são homens mortos para a imputação, desde a hora em que o gigante os discutiu, — dado que não vinguem purificar-se no arrependimento e honrosamente confessá-lo.

Eu insisto ainda agora na expiação que me reabilita: se há quem muito deva em lição, mais que muito salutar, ao mestre de todos nós, sou eu, que lhe agredi o trabalho colossal, sem resvalar ao insulto ignóbil ao homem que mais tarde me foi mestre e ao lar que me recebeu amigo...

Pude assistir, hóspede, nesse lar, à formação do último livro de Camilo. Pede-me a consciência, porventura iludida, um juízo favorável à consciência dos insultadores do livro e do seu autor; — eu creio que os sentimentos de simples equidade, avocados pela simplicíssima vergonha, dariam rebate à confissão do erro no espirito desses transviados, se nesses espíritos pudesse transluzir um clarão tenuíssimo daquele viver de sacras amarguras que tem o lenitivo no trabalho, ou que desabafa em palavras de amigável incitamento quando a provocação dos insensatos o não distrai para as violências do corretivo.

Afigure-se ao leitor de boa fé e de claro entendimento que a sorte, raro propícia a entendimentos honrados, o levou em hora de paz ao remanso de São Miguel de Seide. É hóspede na hospitaleira morada. Alta manhã, subiu ao gabinete de trabalho do mestre e achou-o solitário. Saiu da oficina para o lugar do descanso: sobre o leito, presa dos sofrimentos físicos de cada hora, que os sofrimentos morais vingam sufocar a espaços, o grande homem descansa no trabalho. Não há que hesitar na interrupção: entrai: lá está o sorriso socrático do mestre a receber-vos, carinhoso. Aí tendes a fera que se propõem acossar uns tais que mal espulgam a insignificância nas horas ferozes em que o pulguedo da vaidade parva lhes dá rebate às fúrias: aí tendes o homem feroz que esses pregoeiros de especiarias podres apontam como o algoz de suas indústrias deles. Não hesiteis na expansão do vosso crer: ele — o verdugo — tem indulgência e conselho para todas as ignorâncias; tem o silêncio de favor para as vaidades que o não insultam; o que ele não tem é a resignação criminosa da bondade exagerada, quando os pigmeus chafurdam no pântano fetidíssimo da injúria soez, no intuito de lhe salpicarem a formidável sombra; o que ele não tem é a indulgência da exagerada caridade quando suspeita que o agressor ingênuo encobre o vulto de vilão covarde que se agacha na sombra, menos escura que a alma do miserável.

Então, nesses momentos em que os profanos imaginam, à luz vermelha da represália do mestre, uma irritação feroz, o grande homem converte o insultador em títere, prende-lhe o cordel; puxa: as cambalhotas sucedem-se; o público ri perdidamente, ou sente frêmitos de espanto: o insolente morde a terra, e, quando o auditório espera a punhalada final vibrada pelo gigante, o gigante aplica no esmurraçado nariz do iconoclasta um misericordioso piparote, e ri.

Riso que seria crudelíssimo se a bondade da suprema força o não temperasse...

Às vezes, quando o feroz inverno da aldeia me fornecia, benévolo, o pretexto para conservar-me à beira de Camilo, o mestre concedia-me a leitura do seu trabalho, e eu lia distraído: é que eu pensava, em quanto lia, nos esforços de uns míseros parturientes que atroam os ares com os seus gemidos, quando cerradas noites dolorosas de meditação lhes arrancam dez páginas de original, morto ao nascer, — uns reformadores sarrafaçais que põem a tratos de emendas os compositores mártires, quando não preferem — no furor de produção — pôr a tratos a crítica misericordiosa que lhes corrige, em que pese a safanões ingratos, as demasias de desaforados absurdos. Confrontava, e confronto a espontaneidade ubérrima e a ardentíssima e vigorosa seiva daquele espírito de luz com a escuridade interior dos eunucos que o doestam lá da acolheita das suas tropelias. É assim que o mister do crítico se distrai, a espaços, avocado pelo dever de amargas retaliações.

A Corja, elaborada ao correr da pena pelo mestre, é um novo documento para o processo da mixórdia literária. Demonstra-se, uma vez ainda, que o esplendor da obra nova é uma ilusão de ótica, fascinadora para o gentio zanaga, se os arrebiques não ocultam o ouro de lei da concepção genial, ou da observação profunda, de par com os conhecimentos da língua em que se escreve.

E raro ocultam esses tesouros.

O que por aí vemos, é a saudação aos arrebiques; e, justiça inteira, se à pobre crônica jornalística não é vedado o ingresso nas sociedades de geógrafos e de escritores, a crassíssima ignorância veda-lhe o uso da palavra em assumptos que demandam estudo. Que há a esperar em afirmações de tal lote por parte desses eternos infantes prodigiosos que trocam por bilhetes de teatro a sua triste colaboração nas gazetas e os seus direitos de literato no Martinho ou na associação risonha?

Eu não posso reproduzir-me no aquilatar da moderna escola (?), dos modernos artistas, dos moderníssimos abortos e das deturpações que o trabalho de boa fé tem obtido dos censores inconscientes e dos facciosos instrumentos involuntários de uns tetrarcas burlescos da evolução deturpadíssima. Mas que primores de saníssima linguagem, para lição crudelíssima dos abortos e para nossa lição solicitada, não oferece o novo livro de Camilo! Depois, como a espaços, transparece, no decorrer da epopeia de misérias, o moralista mordacíssimo, e como nessa mordacidade transluz um raio de suprema piedade que soem experimentar e conceder os espíritos de lei, firmados na base dupla do estudo e da experiência dolorosa!

Eu pasmo — hoje — quando um espírito culto e de sérios precedentes atira a luva, de envolta com a injúria, ao invencível atleta de mil combates. Compreendo as agressões de uns gatunos que pedem a um puxão de orelhas a celebridade, uns pelitrapos de botequim aceites na Associação dos Escritores Portugueses: mas, que uma entidade pensante, no usufruto da imputação desça à camaradagem com a suja horda — é o que não se pode compreender sem derivar, para o triste caso, da alucinação partidária, tanto monta — do mais triste facciosismo.

Ele, o flagelador da Corja, não é apenas o erudito e paciente investigador da nossa história, o derradeiro e mais ilustre mestre da língua portuguesa, "o gigante que fixou em livros imorredouros toda a comédia portuguesa contemporânea" (palavras do Sr. A. da Conceição no seu primeiro artigo sobre A Corja); mal vai aos tristes agressores que o consideram imobilizado nos estudos de há vinte anos: com a autoridade de quem assim levianamente creu e mais tarde corrigiu os seus erros sobre Camilo e sobre outros, eu poderia asseverar que o grande escritor acompanha no seu retiro da aldeia todo o movimento literário e científico do período contemporâneo, — poderia asseverá-lo, se não visse bater em retirada, após três dias de luta, a agressão moderna ao suposto imobilizado... Mas não será um crime igual ao da agressão esta aparência de defesa?

De homens como Camilo é uso dizer-se: "Está ainda mui perto de nós para a justiça; o futuro há de fazer-lha". Quer dizer: — Estabeleçamos como norma o insulto aos mestres, durante a vida; mais tarde, depois da sua morte, nos servirão seus nomes para injuriar os vivos! Oh! espíritos sublimados dos homens de hoje, reformadores do existente, destruidores da torpeza legalizada! se não aplicásseis todo o mármore disponível à construção das vossas próprias estátuas antecipadas, se não empregásseis o vosso esforço em tentativas de demolição das glórias justificadas, se não désseis guarida aos insignificantes repletos de ódio e aos parlapatões repletos de charlatanismo, se abrigásseis o respeito ao gênio aureolado pelos cabelos brancos e pelo saber, — não daríamos o espetáculo permanente de contendas deploráveis entre os apregoados voluntários do bom senso e da justiça.


---
SILVA PINTO
Lisboa, 1889.
Persquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...