7/27/2022

A trilogia de João Fernandes (Conto), de Guiomar Torresão

 

A TRILOGIA DE JOÃO FERNANDES

 


VIRGÍNIA
 

Ele tinha a candidez lorpa dos provincianos, que ainda não cravaram os dentes no fruto proibido.

O verso perpetrado pelo Sr. Tomás Ribeiro: 

  “Eu nunca vi Lisboa e tenho pena” 

arrastara-o um dia, do fundo da Beira, para as olímpicas cumeadas de um terceiro andar no Hotel Central.

João Fernandes escondia a alma de um poeta no hercúleo tronco de um lavrador nutrido a broa e vinho verde.

As elegantes mundanas da capital desorientaram-no: os menus do Hotel Central assustaram-no quase tanto como as mulheres.

Jamais ele ousaria dirigir a palavra a essas leves e franzinas bonequinhas da moda, que saltitavam pelos asfaltos do Chiado, envolvidas em uma nuvem de rendas e de veloutine, cabeça erguida, pé arqueado, sorriso desdenhoso e olhar úmido...

Nunca ele se atreveria a comer, deliberadamente, os esquisitos e complicados manjares, servidos à francesa por sujeitos muito corretos, de casaca, gravata branca e sapato de laço.

Gostava de ver as mulheres, de longe, pendido no peitoril da janela que abria para o Cais do Sodré, fumando extático, um charuto de vintém, que o saturava brandamente de um forte e pronunciado cheiro a couve torrada...

O pai escrevia-lhe três vezes por semana, noticiando que a azeitona começava a pintar, que o lagar rendera mais uma dúzia de pipas de vinho, que a vaca malhada tivera uma cria, que a ruiva estava ameaçada de pulmoeira.

Ele respondia-lhe de cá, deslembrado dos assuntos caseiros:

“Pai: Não sei como hei de agradecer-lhe a lembrança que vossemecê teve em mandar-me à capital.

Lisboa não me saía da cabeça desde que li aquele verso que o pai sabe. É ainda melhor do que eu pensava. Os criados aqui vestem-se como os filhos do rei, e as mulheres têm asas nos pés como os cupidos do quadro que o tio nos mandou de Paris, o ano passado. À noite, vou girar pelo Chiado, e é só então que me atrevo a levantar os olhos para essas maravilhas de carne e osso, embrulhadas em cetins e rendas, que exalam o aroma das rosas de Maio, e têm ao mesmo tempo o voo gracioso e transparente das borboletas...”

Como se vê, João Fernandes tinha queda para o lirismo. Aprendera o latim com um egresso e estudara o português com o professor régio, muito lido nos clássicos e muito versado no manuseamento de poetas antigos e modernos, desde Filinto Elísio até ao Sr. Florêncio Ferreira.

Nas horas vagas, o pedagogo habilitava-se para lavrador microscópico, amanhando, ainda com os dedos pingados de tinta roxa, uma courelazita, que trazia arrendada ao Fernandes Sênior.

Os laços de interesse que se estreitam, por via de regra, entre um rendeiro e um proprietário, instigaram o professor a dedicar-se em corpo e alma à tarefa, não muito fácil, de fazer luz no cérebro de João Fernandes.

Às tardes, o discípulo ia ver semear a batata e ouvir recitar Camões e Tomás Ribeiro. Naquele trato das musas e das sementeiras se lhe foi enflorando a alma de incipientes devaneios e o lábio de cabelos doirados, desenhando um bigode, apto, como poucos, para sublimar um madrigal.

No momento da partida, o professor abraçou-se ao discípulo, descreveu-lhe sumariamente as variadas seduções das lisbonenses, e, chupando um cigarro repassado do amarelo sujo do tabaco ordinário, recitou-lhe, com os olhos em alvo e um barrete preto enterrado até à nuca, os versos de João de Deus:

“Não há existência alguma
Que não tenha amor, nenhuma”
.................................................. 

Um mês depois, João Fernandes recebia da mestra da vida — a experiência — o exemplo prático, comprovativo da verdade adstrita à palavra do poeta.

A poesia, alcunhada de mentirosa, vinga-se, às vezes, nobremente, demonstrando ser ela a única verdade bonita, neste pobre mundo eivado de tantas mentiras feias.

Encontraram-se à mesa redonda, ombro com ombro, na atmosfera excitante dos molhos aromáticos e dos vinhos generosos.

Ela tinha a alvura lirial, e o louro vago das virgens góticas, pintadas nos frescos medievais. Comia depressa, limpava admiravelmente um prato, sempre com os olhos baixos, o perfil recortado em alabastro, falando devagar, como que a medo.

O pai, um major reformado, tratava-a por mademoiselle, um chic que ela se permitia, sugerido pelo louro parisiense do cabelo e pelos high-lifes dos jornais, entrados desde certo tempo na moda de chamarem toda a gente madame e mademoiselle.

João Fernandes informara-se pelos criados. Soube que se chamava Virgínia, que chegara de Portalegre, onde o major tinha uma quinta, com a competente casa de habitação.

O major e a filha ocupavam dois quartos do 3.º andar, no mesmo corredor, ao longo do qual João Fernandes espalhava gemidos e baforadas de charuto de vintém, recordando, com um sentimentalismo coevo de Dirceu, os célebres versos, recitados pelo professor...

Um dia, ao jantar, o beirão encheu-se de coragem, e rompendo pela timidez que lhe pregava a língua ao céu da boca, voltou-se para a menina dos cabelos louros, e, com voz trêmula, disse-lhe:

Mademoiselle serve-se de rabanetes?

Virgínia corou, sorriu-se, e cravando os dentinhos brancos na polpa do rabanete, respondeu um quase imperceptível: “Obrigada.”

Aqueles rabanetes foram o ponto de partida de um diálogo, mais ou menos animado, em que o major falava sempre das campanhas da liberdade, mostrando a medalha, em que João Fernandes discursava acerca da lavoura paterna, e em que Virgínia não falava quase nunca, limitando-se a trincar amêndoas torradas e a beber copinhos de curaçau, amavelmente oferecidos pelo beirão.

Animado pelo bom acolhimento que lhe dispensavam, João Fernandes passou a oferecer camarotes, carruagens, rebuçados de ovos e pastilhas com versos coxos, impregnados de intenções amorosas, que ambos liam, rindo às gargalhadas.

Fernandes Sênior teve um belo dia, no meio do varejar da azeitona, a desagradável surpresa de receber uma missiva, concebida nestes termos:

“O senhor seu filho caiu nas mãos de uma sanguessuga que lhe chupa os olhos da cara. Mande-o recolher ao aprisco, se não quer que a ovelha lhe apareça tosquiada até aos ossos.”

Fernandes Júnior, chamado a rebate, retorquiu encarecendo as virtudes do seu anjo louro e pedindo vênia ao pai para atar nó cego.

Depois de escrever, foi convidar o major e a filha para irem juntos, em partie fine, ao jardim zoológico.

Regressaram ao cair da noite, na serenidade melancólica de um crepúsculo do Outono, salpicado de estrelas que feriam o ar, como agudas flechas cravando-se no alvo.

João deu o braço à filha e dispôs-se a ouvir, pela vigésima vez, ao pai a épica resenha das batalhas, em que o major praticara a nunca assaz celebrada gentileza de desfeitear o inimigo voltando-lhe as costas.

Virgínia recolhia-se em um silêncio místico, apenas interrompido pelo tasquinhar da sua boquinha vermelha e fresca, onde os rebuçados de ovos se derretiam, inundando-a de doçuras.

Pouco depois, um coupé, alugado por João Fernandes, conduzia-os a trote largo para o Hotel Central.

As mãos dos namorados encontraram-se na penumbra do coupé: o major, amortecido pelas libações do Porto, dormitava; João Fernandes, excitado, atreveu-se, não sem o terror que precede os grandes cometimentos, a beijar as pontas dos dedos da mademoiselle.

Ela estremeceu, vibrando sob a carícia do namorado, e lânguida, quebrada pela violência da comoção, abandonou-lhe sem reserva a mão esguia e branca, calçada em mitene de retrós, onde os diamantes fuzilavam, como pequeninos pirilampos.

O amor, a música do sangue, como lhe chamou Calderón, executava no coração de João Fernandes um glorioso hino triunfal. A terra parecia-lhe pequena para conter o infinito.

A sua robusta natureza de Hércules montanhês, criado ao ar livre, na intimidade dos vegetais, habituado a correr pelas largas clareiras batidas do sol, a trepar a crista denticulada das serras, que recortam a sua linha ondeante e azul no fundo casto e vagamente narcotizante do céu estival, revoltava-se contra o regímen claustral dos quartos de hospedaria, numerados, cingidos por quatro paredes de uma monotonia simétrica, odiosa à força de irrepreensível.

Nessa crise psíquica do seu temperamento cristalizado — segundo a pitoresca fórmula inventada por Stendhal e hoje expulsa da circulação pelo método experimental de Zola —, João Fernandes protestava inconscientemente, com todas as exuberâncias do seu organismo, ainda não contaminado, contra o absurdo convencionalismo das civilizações refinadas.

Não era bem assim que o beirão discorria, ao sentir o impetuoso desejo de apertar nos braços musculosos esse flexível e delicado corpo, branco como os lírios que rebentam nos cabeços das colinas, desabrochando no meio de uma vegetação intensa e abrindo no restolho, entre os cardos espinhosos, o trevo e o rosmaninho, o sorriso de uma virgem, coroando-se de flor de laranja.

João Fernandes não conhecia Stendhal nem Zola.

Mas o amor dispensa a lição dos livros e supre pela intensidade da sensação o que lhe faltar em profundidade científica.

A bondade nativa, e sobretudo a inteligência limitada do provinciano, livrava-o de maus pensamentos; — com isso exultará a moral, muito embora gema a escola naturalista.

Desde aquele caso dos rabanetes, João Fernandes não tinha senão uma única ambição no mundo: — levar à igreja a escolhida do seu coração.

Esta ambição devorava-o nessa noite de um luar frio, em que ele corria ao acaso pelas ruas, fazendo ressoar no asfalto dos passeios os seus grossos sapatos de três solas, agitando os braços, dialogando de longe com Fernandes Sênior, que a tal hora ressonava embrulhado em um cobertor de papa, saindo-lhe da boca aberta, onde os sonhos adejavam, entremostrando pitorescos quadros de lagares afogados em vinho e azeite, e campos ajoujados de trigo louro, uma variada orquestração de complexos sons, desde a nota do clarim até ao ronco da trompa.

Batiam três horas da madrugada quando João Fernandes recolheu ao hotel. Vinha derreado, mas trazia no coração, que lhe saltava aos pulos, um radioso paraíso de bem-aventuranças.

Subiu, cautelosamente: ao chegar ao terceiro andar, empalideceu, lembrando-se que poderia, talvez, perturbar o angélico sono e afugentar os divinos sonhos da sua adorada Virgínia; tímido, parou na sombra do corredor, e descalçou os sapatos.

Nessa ocasião, a porta do quarto 23 abriu-se de mansinho, a sombra de um homem desenhou-se em uma faixa de luz, o frêmito de um beijo passou no corredor como o fugitivo aroma de uma rosa desfolhada...

João Fernandes, assombrado, ferido por uma dessas brutais amputações morais que rasgam no coração uma chaga incurável, coseu-se com a parede.

— Casas com o brutamontes, é negócio decidido? perguntou o homem, acendendo um cigarro.

Uma cabeça loira pendeu-lhe no ombro, e uma voz musical segredou-lhe quase ao ouvido:

— Caso, porque quero que tu sejas rico.

— Queridinha! respondeu o homem, risonho, palpitante de ternura, prostrando-se mentalmente aos pés da burra do lavrador beirão.

João Fernandes, cambaleante, deu um passo para a frente e estendeu os braços, dispondo-se a estrangular o ladrão da sua felicidade. Confusamente, viu um sargento aspirante, que jantava à mesa ao seu lado esquerdo; uma onda de sangue turvou-lhe a vista, uma dor aguda mordeu-lhe o coração, estrebuchou no vácuo, batendo com as mãos, na extrema angústia do afogado que procura, instintivamente, um ponto de apoio, e caiu redondo.

Na diligência que reconduzia ao aprisco a ovelha desgarrada, João Fernandes lembrou-se de repente da carta do pai, chegada na manhã do fatal dia e guardada intacta na algibeira do jaquetão.

Fernandes Sênior exortava-o a fugir às garras do anjo... despenhado em uma hospedaria, para perdição dos pobres de espírito, a que aludiu Jesus, e oferecia-lhe a arca do peito para desafogar mágoas e esconder suspiros.

João Fernandes, designado pela Providência para reviver em Portugal o dramático lance do 3º ato da Dama das Camélias, teve a convulsão histérica de Armand Duval, ao ler a despedida de Marie Duplessis, vulgo Marguerite Gautier.

Depois veremos de que cinzas fumegantes renasceu para o amor esta Fênix, ferida na asa.


MADEMOISELLE FAUVETTE

 

Goethe, o inacessível, abriu banca de letrado para os infelizes, aconselhando-lhes, oficiosamente, que diluíssem a sua dor na água de rosas de um poema.

João Fernandes, caindo do sétimo céu na prosa trivial e reles do lar beirão, teria decerto aproveitado o conselho, se acaso o seu cérebro, resistente e espesso, não fosse incapaz de dobrar-se à dúctil brandura e à flexível elasticidade do metro e da rima.

O mestre-escola, escolhido para confidente daquela saudade sem reflorir de esperança, compôs três sextilhas, ao mesmo tempo que ia enxofrando umas cepas doentes, maldizendo, com muitas rimas em ão, o sexo fraco, e instigando o forte a blindar-se contra as pérfidas frechadas do deus Cupido.

João Fernandes decorou os versos, e ia cantá-los à noite para o alto das serras, cravando os olhos nas estrelas, como os pastores dos Alpes, acompanhando-se do gemer dolente da guitarra, na toada melancólica e vagamente desolada do fado nacional.

Em vão o lavrador chamava o João para a grande e absorvente preocupação de toda a sua vida laboriosa e simples: — a agricultura.

Interessava-o nos lucros, consultava-o antes de realizar qualquer transação, tomava-o para árbitro nas questões com os rendeiros, fingia-se ignorante nos processos da lavoura, só para dar ao filho o prazer de ensinar-lhe o que a sua velha experiência há muito sabia.

Fernandes Sênior resumira todas as suas afeições nesse único filho, que custara a vida de sua mãe. Desde que ele nascera não tivera senão uma ideia fixa, que iluminava e como que afinava o seu espírito rude e inculto: trabalhar, trabalhar incessantemente e honestamente, para deixar ao seu João um cabedal sólido e um nome honrado.

Ao vê-lo cair na tristeza indolente e inativa, que inutiliza o homem e o coloca, na escala dos seres, abaixo do irracional; ao reconhecer que eram baldados todos os esforços que empenhara para reconduzir o filho ao bom caminho; ao encarar, aterrado, a possibilidade de ver morrer-lhe nos braços esse lunático, que não comia nem dormia, que falava só, que emagrecia a olhos vistos, deixando-se devorar pela dor que lentamente o consumia, Fernandes Sênior não hesitou por mais tempo.

Envergou o seu fato duplex, que durante longos meses permanecia deitado e imóvel no fundo da arca, sobre um perfumado leito de trevo e rosmaninho, e estugando o passo, partiu direito à quinta das Olaias, residência do seu compadre e inspirador, o morgado Trancoso.

As raras visitas de Fernandes Sênior às Olaias tinham sido sempre motivadas por circunstâncias solenes, que demandavam a opinião conceituosa e autorizada do morgado, ouvida como a de um oráculo: o seu casamento, o batizado do filho, a venda dos montados do azinhal, etc., e agora...

O resultado da conversa havida entre sua excelência, o morgado, e Fernandes Sênior, conversa regada por um delicioso vinho abafado, foi João Fernandes partir em viagem de recreio para Espanha e França.

Iremos encontrá-lo em Paris, onde ninguém entra levando no coração a Dor, como uma víbora enroscada, senão para sair curado... ou morto, de uma morte idêntica à dos gladiadores que rolavam no pó da arena, bradando ao sol imperial: “Ave, César, os que vão morrer te saúdam!”

***

Foi no café dos embaixadores, à sombra balsâmica dos lilases, em flor, que João Fernandes viu pela primeira vez mademoiselle Fauvette.

Era com uma graça picante e intencionalmente provocadora que mademoiselle segurava nas pontas dos dedos esguios e torneados uma écrevisse, descascando-a metodicamente e chupando-a lentamente, absorta em uma espécie de êxtase sibarita...

Nas mesas do café, espalhadas ao acaso no jardim, entre os tabuleiros de relva e os alegretes de flores, Paris jantava alegremente, banqueteando-se com menus ligeiros e caros, saboreando talhadas de melão anêmico, pagas a 4 francos.

João Fernandes, aturdido, acanhado, despaisado, recordava, mentalmente, os diálogos que aprendera na gramática Monteverde, para o ato de solicitar a um dos criados que lhe fizesse a mercê de servir-lhe o jantar.

No varandim fronteiro ao palco, onde Paulus exibe o seu variado reportório de caretas, as mesas, alugadas com a devida antecedência, povoavam-se de cocottes e gomosos.

Os criados, atarefados, corriam de um lado para o outro, distribuindo lagosta à americana, o predileto acepipe do parisiense-boêmio, que janta, por invariável costume, no Café-Concerto.

O beirão afundava-se, como um grão de areia, nessa onda movimentada e alegre, acima da qual se cruzavam as risadas, as frases pitorescas, o tinir dos copos, a efervescência ruidosa de uma multidão criada expressamente para o prazer.

João Fernandes esqueceu-se de jantar e quedou-se, contemplativo, em face da mesa onde Fauvette comia glutonamente — a boca vermelha e fresca gotejante de molhos apimentados, os grandes olhos garços, avivados a kohl, cerrados de gozo, os cabelos cor de vinho do Reno, engastando-lhe a carita chiffonné, emaranhando-se-lhe na testa pequena e deprimida e fazendo-lhe cócegas no nariz arrebitado.

O odor di femmina, excitado pela dilatação de um bom jantar, exalava-se dessa mesa, aos pés da qual tinha de desfolhar-se, reduzido a um punhado de cinzas, o primeiro canto da trilogia de João Fernandes.

Ao champagne, já ambos tinham comunicado um ao outro as suas respectivas sensações.

O beirão nunca se atreveria, se ela, lendo-lhe no coração... e no estômago, não lhe houvesse oferecido, no mesmo ímpeto generoso, um sorriso fascinador e uma fatia de salmão.

João Fernandes pagou bizarramente o jantar, depois do que foram ambos beber grenadine e ver rir Paulus.

Nessa noite de delirante comoção, mademoiselle Fauvette expandiu-se, contando ao ingênuo adorador que o acaso — o Deus das Fauvettes — lhe deparara o romanesco capítulo da sua acidentada existência. 

*** 

Era órfã de pai e mãe — todas as Fauvettes são órfãs. Uma tia chamara-a sua, para presentear com as incipientes 17 Primaveras da sobrinha um merceeiro gotoso e asmático, encanecido pelas neves de cinquenta e tantos Janeiros. Um dia, Fauvette, fatigada de ouvir os assobios da asma e os gemidos da gota, bateu as asas e foi pousar em um quinto andar do bairro latino, presa ao visco do amor de um estudante de Medicina.

Certa noite, o estudante esqueceu-se de subir os cinco andares, no alto dos quais gorjeava a toutinegra; na manhã seguinte, ela abriu a porta da gaiola e largou o voo.

Veio depois a miséria, com todos os seus trágicos horrores, a dependência, com todas as suas imposições humilhantes.

Fauvette trabalhara, lutara, exercera por muito tempo o lugar de demoiselle de comptoir, no Printemps; aturara os patrões, as colegas, as freguesas, sofrera muito, e a sua voz tremia ao aludir a esse doloroso período, arrastando-se através de jantares arquiespartanos: — um osso de carneiro e meia dúzia de feijões brancos.

João Fernandes chorou, ouvindo-a; de bom grado teria caído de joelhos diante desse respeitável infortúnio. Quisera poder agasalhar no peito, afogado em lágrimas de compaixão, a queria mártir.

O merceeiro e o estudante apareciam-lhe sob o hediondo aspecto de dois ursos, quebrando entre as patas uma pérola.

Vagamente, sentia ímpetos de estrangular os dois carrascos.

Como é que a pobreza não recuara diante dessa encantadora rapariga, de um tão delicado chic, rainha pelo porte altivo e pela perfumada distinção?

Quantas vítimas nesse mundo abominável, onde ele sofrera, logo aos primeiros passos, um desengano atroz!...

Agora, envergonhava-se de ter padecido por uma criatura vulgar, uma namoradeira sem coração, um ente banal e nulo, que lhe explorava a algibeira, uma mulher mercenária e perdida; quando era aquela, a infeliz, sacrificada em holocausto à maldade dos homens, que merecia todo o seu amor...

Ao saírem do café, e ao subirem para um fiacre, na serenidade estrelada de uma noite do mês de Junho, Virgínia descera à vala comum do esquecimento. Paris triunfara mais uma vez, na pessoa de mademoiselle Fauvette!

*** 

Fauvette habitava um elegante appartement garni, em um 3.º andar da Rua Caumartin.

Vivia relativamente bem, graças a uma mesada que lhe estabelecera um tio, residente em Bordéus.

O tio, segundo Fauvette contara a João Fernandes, para quem não tinha segredos, era proprietário de um armazém de fazendas, situado em Passy. Estipulara a mesada à sobrinha, sob condição de ir ela todas as manhãs fazer a escrituração à loja.

Fauvette só podia receber o apaixonado beirão, das 5 às 7 da tarde.

Algumas vezes, raras, por causa da maledicência dos vizinhos e em atenção ao tio, que podia aparecer de um momento para o outro, iam juntos ao teatro, ou os cafés.

Uma noite, no Éden-Teatro, no entreato em que o beirão saíra, Fauvette desapareceu. No dia seguinte, explicou a João Fernandes que tinha fugido, evitando encontrar-se com um correspondente do tio.

A intuitiva delicadeza de sentimentos da parisiense cativava, de dia para dia, o sensível provinciano.

Sempre que ele ousava brindá-la com uma bracelete, uns brincos, um colar, empenhava-se entre ambos uma verdadeira luta, de que João Fernandes saía sempre vencedor, força é dizê-lo.

Ela escrupulizava em aceitar-lhe dádivas; queria ser amada verdadeiramente, eternamente, sem nenhuma espécie de interesse mercenário, por um coração leal como o dele, incapaz de mentir aos seus juramentos.

João Fernandes escrevera ao pai, pedindo-lhe licença para se casar e instando pela brevidade da resposta, que ele esperava que viesse acompanhada dos indispensáveis papéis. 

*** 

Uma tarde, o beirão encontrou Fauvette mergulhada em uma tristeza profunda.

O tio escrevera-lhe — João Fernandes leu a carta —, anunciando que viria buscá-la no dia imediato, para ir passar com ele uma semana a Bordéus. Não podia negar-se ao tio, que era o seu ganha-pão; mas por outro lado, como resignar-se a não o ver durante oito longos dias, ela que já tinha sofrido tanto e para quem a vida se resumia no amor dele? Em presença dessa dor eloquentemente expressa, na mais flexível e sedutora de todas as línguas conhecidas, o beirão impôs silêncio à sua própria dor, e tentou afugentar a melancolia da bem-amada, falando-lhe do futuro que os esperava, dos seus projetos matrimoniais, da Beira, onde ela iria reinar como uma soberana autocrata.

À despedida, no dilaceramento de um longo adeus, vibrante de comoção, os seus braços enlaçaram-se, e pela vez primeira os lábios de João Fernandes depuseram um beijo ardente na pequenina boca, deliciosamente carminada pela fraicheur — a inseparável, em Paris, dos lábios femininos —, que se lhe oferecia como um fresco botão de rosa. 

**

Decorridos três dias, a saudade, o gosto amargo e deleitoso, instigou João Fernandes a querer, como Trueba, ver “a gaiola donde a avezinha voou”.

Entrou e subiu, trêmulo de comoção, apertando o coração no peito...

De repente, a voz de Fauvette mordeu-lhe o ouvido.

Esfregou os olhos como um sonâmbulo, galgou os degraus a quatro e quatro, e parou um segundo à porta do seu éden, que, confusamente e ainda inconscientemente, se lhe afigurou, em um brusco relance, a porta do Inferno.

Um ruído de vozes de homens, de gargalhadas, acompanhadas do tilintar de copos e talheres, rebentou como uma explosão.

João Fernandes curvou-se e espreitou pela fechadura.

Um dos homens acabava de batizar Fauvette com champagne; os copos chocavam-se. No meio da casa, ébria, rindo doidamente, Fauvette — a bacante — levantava o evohé pagão. 


A VIÚVA
 

No próprio dia em que Fernandes Sênior, depois de ter aparado uma pena de pato, tomava a heroica resolução de escrever uma carta ensopada em tinta e gafa de mazelas ortográficas, para o ato de perguntar ao filho se lhe fora entregue a papelada, João entrou-lhe em casa cabisbaixo, o olhar vago, perdido na abstração de um pensamento acabrunhante, o tronco hercúleo vergado ao meio, como uma árvore lascada pelo raio...

O lavrador que esperava, a troco das trezentas libras sacrificadas em holocausto ao amor paterno, reaver o rapaz escorreito e são, tal qual ele fora antes de se haver contaminado na atmosfera pestífera das grandes cidades, caiu das nuvens.

O compadre, chamado a emitir voto acerca da mortal tristeza em que caíra o Joãozinho, sugerira Paris, como a cura radical para todas as afecções provenientes de mal de amores.

O lavrador não demorara nunca o seu pensamento, ocupado em cousas úteis e proveitosas, a cogitar no quer que fosse Paris.

Paris devia ser, segundo se lhe representara, depois de ouvir o morgado Trancoso, uma sucursal do Inferno, com aparentes seduções de Paraíso e grande cópia de mulheres pintadas, famintas de libras esterlinas, com pés de cabra, boca de sereia e unha na palma.

Uma abominação, essa talhada do globo em que tanto falavam os papéis, uma talhada arrancada ao flanco da Grã-Bretanha, segundo asseverava doutoralmente o mestre-escola, onde o senhor de Bismarck, conforme lera nos periódicos, cravara um dia os dentes, glutonamente.

Mas o morgado receitara, e na sua passiva obediência aos avisos emanados do oráculo, o lavrador remetera sem hesitar o filho para Paris, como poderia mandar-lhe aviar uma receita de quinino.

Mais tarde, quando ele escrevera a pedir vênia para dar o santo nó, Fernandes Sênior não pudera ter mão no assombro com que releu e tresleu a epístola, custando-lhe a crer no testemunho dos olhos.

Lembrando-se do que poderia suceder ao seu João na grande cidade do Vício: — amores passageiros, encontros fortuitos, despesas acidentais, conquistas fáceis, aventuras, casos, histórias — nunca lhe ocorrera aquela!

Tudo era lícito esperar de Paris, em relação a um doente, carecido dos socorros daquela mundana farmacopeia, exceto uma tolíssima recaída.

Onde lhe prometeram a cura, via ele agravar-se a moléstia!

E para isso ordenhara a burra, mugira 300 libras — o sangue das suas veias! —, apartara-se do rapaz, mandara-o correr terras, para afinal o crianço embicar na mesma teima: — o casório!

Casar com uma francesa, esta não lembrava ao demônio!

E como havia de conversar com a nora, entregar-lhe o governo da casa, a nora, a mãe dos seus netos! — falando ela uma língua de trapos, que ninguém na aldeia, ninguém a não ser o morgado e o mestre-escola, seria capaz de entender.

Chamado a capítulo, nessa grave conjuntura, Trancoso opinou que não se devia contrariar o rapaz e que se lhe deviam mandar os papéis. 

*** 

Desta vez, a paixão de João Fernandes — o amante infeliz — repeliu, injuriada, a flor azul do devaneio.

Uma violenta saudade de Paris debuxava-lhe na mente o quadro da ceia báquica, avivado a cores infernalmente tentadoras.

Nunca Fauvette lhe parecera mais bonita, desde que lhe aparecera ébria e impudente, no seu verdadeiro aspecto de cocotte barata, celebrando ágapes econômicos, em terceiros andares reles.

Envergonhava-se de ter sido ludibriado, mas experimentava ao mesmo tempo um vago e inconsciente desejo de tornar a ser iludido.

Se o pai se condoesse e lhe desse dinheiro — muito embora ele não ousasse pedir-lho —, voltaria a Paris, àquele divino antro, e passaria pela Rua Caumartin, aquela infernal rua.

Quem sabe? talvez ela o amasse, e, com o andar do tempo, viesse a regenerar-se!...

Mas na luta infrene destes vários pensamentos, na exaltação angustiosa deste querer e não querer, João Fernandes, em vez de trepar pelas agulhas das serras, para ir, abraçado à guitarra, dar serenatas às estrelas, desceu à taberna e começou a ensaiar o sistema, usado em casos análogos, por vários D. Joões alcoólicos, de assassinar a Paixão a golpes de decilitros.

Fernandes Sênior começou a ter saudades do tempo em que via o filho taciturno e pálido, cantar loas à Lua, ao vê-lo agora assomar à porta, vermelho, a face congestionada, o riso alvar, gingão, altaneiro, a voz, o olhar e o gesto a transluzir a evidência da balada londrina: “He that is drunk, is as great as a king.”

Efetivamente, João Fernandes, com um grão na asa, tinha a fantasia de um poeta e a hombridade de um rei: por entre a fumarada alcoólica que lhe toldava o cérebro, Fauvette aparecia-lhe, desenhando-se em um fundo translúcido, como uma ondina escandinava; pouco a pouco, a visão acentuava-se em contornos tangíveis, uma cabeça loira e maliciosa recortava-se em um nimbo de fogo, e súbito, dos braços musculosos do sátiro pendia a apaixonada ninfa...

Estas miragens arrastavam João Fernandes para o declive da perpétua bebedeira.

No fundo da garrafa morava o sonho, com todas as suas deliciosas voluptuosidades. O acordar, na gelada e áspera realidade, era pavoroso! 

*** 

Foi ainda o das Olaias que fez face à crise, alvitrando a oportunidade de casar o afilhado.

Só o facho do himeneu poderia afugentar as trevas daquele espírito narcotizado.

Fernandes Sênior aprovou, como sempre, muito embora os conselhos do morgado começassem a parecer-lhe um tudo-nada discutíveis.

Procurou-se a noiva e achou-se a filha do lavrador da Azoia, uma viúva de saúde florescente e carnes exuberantes, trinta anos sorridentes de frescor alpestre e sadio aroma a feno e alegre campo.

A viúva habitava uma herdade, a distância do povoado.

Uma espessa muralha formada pelos copados ramos dos castanheiros e dos plátanos emboscava a casa, onde a viúva escondia os copiosos frutos do seu ubérrimo Outono.

Diziam-na muito entrada em devoções assíduas: missas periódicas, confissões hebdomadárias, jejuns quinzenais.

O confessor da viúva, um nédio varatojano, afamado nas missões onde o mulherio vinha cair-lhe no socalco do púlpito, convulsionado de soluços histéricos, pedindo perdão em lágrimas, jantava, aos domingos, na farta e suculenta mesa da herdade. Era ele o único comensal da recolhida senhora.

O amor, que tem uma queda inata para as Artemisas, muito especialmente se elas juntam aos dotes físicos os dotes sonantes, já duas ou três vezes tentara escalar aquele baluarte de virtude, atirando-lhe por cima das frondosas ameias, debruadas, na Primavera, de flores balsâmicas, missivas apaixonadas, impregnadas de doçuras capitosas...

A viúva rejeitara, indignada, esse profano tiroteio: não respondia às cartas, desfeiteava aqueles que as escreviam, e confessava-se do pecado de as haver lido, castigando o peito e o porte-monnaie, donde saía para a algibeira do padre, por cada carta recebida, uma avultada esmola para missas.

Por aquele tempo, partira o varatojano para uma missão no Minho.

Trancoso soube do propício ensejo, e invocando a sua velha intimidade com o defunto, mandou pedir licença à viúva para apresentar-lhe o afilhado.

Realizou-se a entrevista em um domingo do mês de Junho.

Pelos roseirais em flor as borboletas batiam as asas; as abelhas engolfavam-se, zumbindo, nos cachos veludosos da baunina; os campos ondulavam ao sol, recortando a linha esmeraldina dos cômoros, toucados de musgo luminoso e tenro nos longes vaporizados. No fundo do vale, afogado em uma pulverização ouro fluido, gemiam as noras docemente; a água dos açudes cantava no ar, e no alto da colina, bordada de giestas e tomilho, um moinho desdobrava no azul as suas asas brancas...

A viúva, desassombrada da presença do confessor, e talvez secretamente influenciada pelas sugestões da natureza em festa, convidou para jantar o morgado e o afilhado.

Um jantar é um traço de união.

Pela janela aberta em bougainvillée, heras e roseiras, entravam zumbidos e gorjeios...

João Fernandes, aquecendo na intimidade, teve frases de uma eloquência superlativa.

A plástica da viúva, modelando em cetim preto a sua convexidade escultural, expungiu de golpe as satânicas reminiscências da Rua Caumartin.

Ao descerem ao jardim para tomarem café e riga, à sombra perfumada de um quiosque bordado de jasmins do Cabo, a viúva colheu uma rosa, e risonha, tímida, pudica, como uma virgem, deixou cair a flor aos pés do enamorado João Fernandes. 

*** 

Na véspera do dia aprazado para o ditoso enlace, João Fernandes passou a noite na herdade, prostrado em adoração aos pés do seu novo ídolo.

Falaram ambos do futuro, da sua recíproca felicidade, e de mãos dadas, profundamente comovidos, o olhar confundido, os lábios frementes, o coração inundado de ternura, fizeram projetos, interrompidos a espaços por silêncios expressivos e infantis puerilidades...

À meia-noite, na ocasião de se separarem, a viúva recebeu uma carta que guardou à pressa, retraindo-se à última carícia e ocultando na sombra a palidez cadavérica...

A cerimônia tinha sido fixada para o meio-dia.

O padrinho do casamento, o Trancoso, deveria ir buscar a noiva.

Fernandes Sênior não cabia em si, ao enfiar pela primeira vez a casaca decretada pelo compadre.

Farto de esperar na igreja, devorado de irreprimível impaciência, pungido pelo secreto pressentimento de novas desditas, João Fernandes meteu pés ao caminho. Ao chegar à herdade, avistou de longe o padrinho, parado à porta, hermeticamente fechada.

A noiva desaparecera!

Depois de muito interrogado, o caseiro, única pessoa que ficara de guarda à casa, respondeu, balbuciante, que a senhora mudara de tenção, que fora recolher-se a um convento, que era inútil procurá-la.

Algumas horas depois, soube-se que o varatojano chegara na véspera à noite e partira na manhã imediata.

E assim terminou, para os fastos do amor infeliz, a trilogia de João Fernandes.

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