10/27/2022

A alma das flores (Conto), de Júlia Lopes de Almeida


A ALMA DAS FLORES 

– Em ótima ocasião vieste, Adolfo, exclamou o Sales, vendo-me ao portão do seu jardim; tenho agora uma esplêndida coleção de rosas. Entra. 

De fato, as roseiras estavam com uma deliciosa carga de flores: umas brancas como a neve, outras amarelas, outras rosadas, outras cor de sangue, rajadas, lisas, crespas, folhudas, simples; de todos os tamanhos, de todas as cores e de todos os feitios, elas bailavam à doce viração da manhã, sacudindo entre a folhagem escura as cristalinas gotinhas d’água, com que o regador do jardineiro ou o orvalho da noite as tinha pulverizado. 

– Encantador! realmente! disse eu sentando-me num banco, enquanto o Sales ia e vinha, explicando a origem desta rosa, a história complicada daquela outra, o romance de amor ligado a uma assim e assim, o trabalho que tal floricultor tivera para conseguir uma rosa tão perfeita como era a que eu via junto a mim, na haste curva de uma roseira sem espinhos. 

O Sales dizia de cor tudo aquilo, mais de quatrocentos nomes, um catálogo vivo, que ele desfiava muito ufano. 

– No Rio já há gosto! repetia ele de vez em quando, impando de orgulho em frente às suas formosíssimas flores. 

Eu ouvia-o, sentindo-me bem ali, embebido naquele doce aroma e com tal espetáculo diante dos olhos. 

De repente, enquanto o Sales externava os seus conhecimentos de jardineiro apaixonado, eu vi, em um extenso gramado verde, aveludado, que havia junto ao lago, aparecerem, como por encanto, umas vinte raparigas formosíssimas, pés descalços, túnicas rosadas mal seguras nos ombros, erguidas de um lado, deixando ver a perna torneada e roliça, cabelos negros suspensos na nuca por travessas de ouro, olhos negros também, cheios de alegria e de malícia, dentes brancos resplandecentes, sorriso aberto, faces frescas como a aurora! 

Elas dançavam em rondas, mãos dadas, beijando-se, aparecendo ora aqui ora ali, sempre alegres e saltitantes. 

O Sales continuava a descrever a astúcia de um tal floricultor inglês, que roubara a um belga um importante segredo da esquisita formação de uma nova rosa: 

– Biltre! clamava ele, vermelho de cólera. 

Nesse momento, uma das raparigas, destacando-se do grupo, correu para mim e deu-me ingenuamente um beijo no pescoço; voltei-me rápido e vi que me roçava no ombro a tal rosa muito perfeita, inclinada da haste de uma roseira sem espinhos. 

O Sales convidou-me para o almoço e eu segui-o, julgando que aquela esplêndida visão me havia de acompanhar; mas na sala, em frente às costeletas de carneiro e dos bifes, nada mais vi. 

Passou-se algum tempo. Um dia o Sales, entrando-me pelo escritório, exclamou: 

– Homem! consegui ter aqui, no Rio, cravos tão belos como os de São Paulo; se quiseres vê-los vai amanhã cedo ao meu jardim. 

Fui. Sentei-me no mesmo banco; o Sales começou a fazer a história dos cravos; falou-me de um amigo seu da província, que chegara a obter cento e tantas qualidades deles! narrou a propósito uma viagem e meia dúzia de anedotas; eu escutava-o, procurando no extenso gramado as vinte raparigas da manhã das rosas; mas não as encontrava! Olhando sempre, principiei a divisar, ao longe, umas pontas de lanças douradas, uns capacetes de cintilações metálicas e uns penachos flutuantes, de cores vistosas. 

Era um exército de cavalaria que subia uma encosta?... 

Eram uns comparsas de teatro, ensaiando-se para o espetáculo. 

Eu ia definir a coisa, quando o Sales disse: 

– Vem cá! Vou mostrar-te uma parede da minha horta, que está literalmente coberta de madressilva; aquilo é uma flor vulgar, mas é bonita... anda daí. 

Entramos na horta. 

Borboletinhas cor de palha voavam por sobre as couves; havia um ar ingênuo em tudo aquilo. Chegando em frente ao tal muro fiquei atônito! Como uma cascata de flores, amarelas, rosadas e brancas, os cachos da madressilva pendiam de entre a folhagem; zumbiam-lhe as vespas em torno; e o Sales explicou: 

– Esta trepadeira fornece muito mel às abelhas. Que cheiro agradável... hein? 

Já então umas mãozinhas curtas e gordas afastavam a folhagem, e eu vi a cara redonda e graciosa de uma moça surgir detrás da verdura, olhar para a direita e para a esquerda, estender o pescoço roliço, mostrar o busto coberto por uma camisa de linho e um colete de veludo negro, de aldeã. 

Logo depois veio de fora um camponês, vestuário galante, rapaz altivo e alegre; e ela, debruçando-se na folhagem, como quem se debruça à janela, sorriu, mostrando as covinhas das faces, e os seus lábios encontraram-se com os do campônio, num longo beijo de amor. 

As abelhas zumbiam, e a camponesa enfeitava de flores o chapéu de feltro cinzento do namorado. E agora já não eram só eles! Em vários pontos do muro, camponeses e camponesas segredavam, abraçando-se; uma delas chegou a ter a ousadia de saltar para fora, e mostrou assim as suas meias em riscas e a saia vermelha barrada de preto; o noivo aparou-a nos braços, e lá se foram os dois saltando por sobre as ervas, e rindo às gargalhadas! 

O Sales convidou-me a ir ao pomar. 

– Tenho lá uma magnólia esplêndida. Eu sou tão doido por flores, que as planto em toda a parte! dizia-me ele, dando-me o braço. 

O pomar era pequeno, mas tratado com muito capricho; tinha de notável uma mangueira de enormes dimensões, e já não me lembra que variedades de frutas. A magnólia lá estava, com as suas grandes flores pálidas emergindo da rama escura da árvore. 

Rodeando uma jaqueira vizinha, havia um banco de pau. Sentamo-nos um pouco. O Sales começou a ferir-lhe o tronco com o canivete. Estávamos silenciosos, e eu meditava na estranheza das minhas visões em casa do meu amigo, quando vi, positivamente vi, uma encantadora mulher, já na segunda mocidade, mas, apesar disso, linda, arrastando-se de joelhos, com os cabelos em desalinho, os olhos castanhos cheios de paixão, os lábios trêmulos, o vestido a envolvê-la numas rendas sombrias, pespontadas por uns pequenos raios de ouro, as mãos erguidas suplicemente. Transbordava de tal maneira a paixão do seu olhar, havia tal contensão de amor no seu peito, que me chegou a ser doloroso vê-la assim! Com quem falava? a quem dizia com tanta veemência o amo-te sagrado? Não sei: o peito arquejava-lhe, saltavam lágrimas grossas dos seus olhos, e espalhava-se-lhe pela fisionomia uma palidez de luar... Fiquei muito nervoso e despedi-me do Sales. 

Meses depois tive de lá voltar a instâncias dele, para ver uma pequena coleção de lírios. 

Estivemos perto do lago, vendo os lírios d’água, cor de marfim e aromáticos; a nosso lado havia dos outros, cor de violeta e dos brancos, muito poéticos. 

O Sales nunca oferecia as flores do seu jardim; era zeloso em excesso, e pôs-se a contar-me a razão disso. Entretanto, eu via através de umas névoas uns vultos indistintos, tocando em liras e em harpas de prata. Era um quadro vago, branco, nublado, aéreo. 

Saí e jurei nunca mais voltar à casa do meu amigo, para não correr o risco de ficar doido! 

Tive por esse tempo de mudar-me. Fui habitar o primeiro andar de uma casa de pensão. Pela janela de sacada do meu quarto eu via o quintal da minha senhoria, uma boa burguesa econômica, que em vez de jardim tinha um coradouro para a roupa lavada, e, a um canto, um único canteiro para tomates e salsa. Havia, porém, na vizinhança, um quintalito de iguais dimensões, mas onde a dona, igualmente prática, mas de sentimentos mais tocados por uns laivos de poesia, plantara, além da grama para o coradouro, e da salsa para a panela, um canteirinho de angélicas, que estavam então em flor. 

No verão tive sempre por hábito ir fumar um cigarro à janela, antes de me deitar. Puxei a minha poltrona para a sacada, na primeira noite da estada na minha nova habitação, e pus-me a cogitar em um negócio sério, quando de súbito vi uma coluna singular, movediça, que se alava para o firmamento infinitamente azul e infinitamente calmo! A pouco e pouco fui distinguindo formas humanas, figuras quase apagadas de mulheres, como se aquela coluna fosse a bíblica escada de Jacó, por onde as recatadas virgens iam subindo ao céu! À proporção que eu as fixava ia-as divisando melhor, até que as vi distintamente! 

Eram todas alvas, eram todas loiras; os cabelos flutuavam-lhes em grandes ondas flexíveis, levavam os braços erguidos e nas pontas dos dedos das mãos, juntas acima da cabeça, uma pequena açucena, onde iria talvez a essência divina da maior dor da terra! 

Dos seus olhos azuis, úmidos de pranto, caía o orvalho para as ervas, e elas subiam, sucediam-se, sempre formosas, sempre loiras, sempre a erguerem acima da cabeça a pequena açucena cor de leite! 

Aquele quadro tinha uma magia estranha, de que eu não me podia desprender! ficava horas inteiras a contemplá-lo, até que, cansado, adormecia. O criado fechava com estrondo a janela e eu ia tonto para a cama. 

Esta cena repetiu-se por umas cinco ou seis noites. Apesar do meu protesto, apresentei-me no fim de alguns dias em casa do Sales. 

Levando-me através do jardim, ele mostrou-me de passagem umas camélias brancas. Eu olhei detidamente para essas bonitas flores, que me pareciam, na sua mudez, pequenas virgens mortas: nada me feriu nem abalou a imaginação. Bem! calculei eu, agora as minhas visões só vêm à noite! 

Mas exatamente nessa noite, debalde esperei a coluna humana, que subia da terra a perder-se nas constelações da Via Láctea! Em vão olhei para o espaço vazio, azul, iluminado pela luz da lua; no céu acinzentado luziam as estrelas como pequeninos pontos de ouro; mais nada! 

Por que não viriam? onde estariam elas, as encantadoras filhas da noite? Cansado de procurá-las no espaço, debrucei- me da janela para procurá-las na terra. Tudo silencioso! tudo como na véspera...  unicamente, do canteiro do quintal vizinho tinham desaparecido as angélicas brancas... 

Só então percebi que via o que os outros sentem – o aroma!

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