10/27/2022

Ondas de ouro (Conto), de Júlia Lopes de Almeida



ONDAS DE OURO 

Sim, era preciso acabar a tarefa antes da noite... o caixeiro já lhe dissera três vezes da parte do patrão: – Olhe, Sr. Mendonça, as tranças foram encomendadas para hoje às seis horas, sem falta, e daqui a nada estão por aí a buscá-las... 

Ele, o Sr. Mendonça, levantava os olhos, abanava afirmativamente a cabeça calva e, sempre calado, baixava de novo os olhos pequeninos e secos para o trabalho. O caixeiro descia rápido a escada de caracol, para a loja, e o oficial lá ficava no primeiro andar, separando com os dedos, engelhados pela velhice e amarelecidos pelo fumo, umas madeixas muito loiras, muito sedosas, muito flexíveis, que lhe caíam sobre o peito e os joelhos numa cascata luminosa e ondeante. Aquele ouro fulvo tocado pela réstea do sol da janela, aquela massa de cabelos finos, agitados pela viração, entoava num grande reverbero metálico a sinfonia triunfal da luz. 

O velho, mal vestido, com o colarinho amarrotado e o casaco luzente nas costuras, parecia um nababo avarento, sumindo os dedos gostosamente naquele tesouro opulento e flácido. Não quisera que o auxiliassem; irritou-se contra um aprendiz por se ter oferecido com insistência. Nada! aquilo era coisa sagrada; nenhuma pessoa lhe tocaria sem profanação. E os companheiros sorriam atônitos, vendo o Sr. Mendonça, geralmente desleixado, escovar muito e polir as unhas, perfumando as mãos, antes de começar o seu querido trabalho. 

A pouco e pouco foram-no deixando; vendo-se só, o velho beijou repetidas vezes a trança loira, assim como um crente beija uma relíquia santa. Negara-se a trabalhar na oficina, e pedira um recanto isolado, onde não levasse sumiço um único fio do precioso cabelo... 

Fora-lhe concedida, sem exemplo, a permissão de ir para a pequena sala da frente, alcatifada e com cortinas. Ali estava só. 

Nos armários de vidro, em roda, como únicas testemunhas, cofres de perfumarias, estojos para unhas, tondeuses , pompons de arminho, escovas de luxo, pattes de lièvre , esponjas, águas de toilette5 enfrascadas, caixas completas de maquillage , cosméticos, elixires, óleos e sabonetes arrumados em caixinhas de três, com rótulos coloridos e brilhantes, ou separados e envoltos em papéis prateados, azuis, ou cor de gravanço. 

Entre aquela variedade infinita de aromas e de tons, aqui e ali, rumas de pentes de todos os feitios, da mais fina tartaruga ao mais negro búfalo, do melhor marfim ao mais grosseiro osso. Pendentes e cuidadosamente alisadas, tranças negras, castanhas, loiras, grisalhas, restos de uma multidão incógnita, destroçada, perdida na noite escura da miséria, na podridão da vala comum, nas enfermarias dos hospitais, ou nas células das penitenciárias. 

De espaço a espaço, sobre cabeças de pau, um chinó preto, reluzente, e caricatamente garrido, ou umas cuias de arame muito fino, cobertas de caracóis alvos, jeitosos e macios. 

A envolver tudo isto, o enervante cheiro do heliotropo branco, ou os suavíssimos e esquisitos aromas do Musc ou do Psidium28. 

No relógio de metal bronzeado, sobre o dunquerque, em frente ao espelho, os ponteiros giravam, giravam implacavelmente para o pobre Mendonça, que supunha, talvez, ter entre os dedos não uma pobre cabeleira loira, desfeita, mas o próprio sol, eternamente irradiante e puro. 

Antes que subisse o quarto recado do patrão, beijou o velho muitas vezes aqueles fios de ouro; e, acabado o trabalho, fingia ainda ocupar-se dele, temendo a angústia da separação.

Era o único vestígio da sua adorada Angelina, morta havia um mês, um anjo de docilidade e de meiguice, que suportara sorrindo a cruz da sua pobreza, sempre consoladora, sempre resignada. Levara-a a tísica, a mesma moléstia que arrebatara a mulher e os outros dois filhos mais velhos! Tinha-lhe ficado aquela só, e nela concentrara todo o seu carinho; e um dia, que triste dia de verão fora esse! o médico da Policlínica dissera-lhe: “A sua menina está mal... alivie-a do peso dos cabelos, mande-a tomar ares num arrabalde... leve-a imediatamente para fora.” E ele, estrangulado de angústia, empenhara tudo, relógio de prata, corrente, joiazinhas de família, uma cômoda antiga. Apurado o dinheiro, transportou para Santa Teresa a sua doentinha; mas Angelina piorou de tal sorte, que no fim de um mês teve de torná-la à cidade; aí durou pouco. E o velho, acariciando os cabelos loiros, lembrava-se daquelas horas negras: a pequena, muito desfigurada, estendida no leitozinho estreito, enquanto ele piedosamente enxotava com o lenço branco as moscas que a assaltavam. Foi então, horrorizado com a ideia de entregar 

à  vala aquele corpo idealmente puro, sonhando como uma felicidade comprar para o seu branco lírio um canteiro separado de todos mais, que ele se lembrou, como único recurso, de ir vender as tranças loiras da filha, guardadas havia muitos dias, desde a consulta da Policlínica. 

Antes isso... separar-se-ia desse amado despojo, mas a sua casta, a sua angélica, a sua imaculada filha teria um canteirinho condigno! 

E, como um negociante banal, foi fazer o preço, propor o negócio e ao mesmo tempo contratar a obra! Tudo assentado, fizeram-se as cerimônias do ritual, e ele acompanhou serenamente a filha ao cemitério... 

Eram cinco horas. Subira o quinto recado do patrão. A réstia de sol já não entrava pela janela. Embaixo, nas calçadas da rua, muita bulha de passos e um rumor alto de vozes. Mendonça tinha concluído a obra. Pela escada de caracol ouviu uns passos de homem e outros leves, rápidos, evidentemente de mulher; depois um ruge-ruge de vestido do seda, e umas gargalhadinhas em falsete. 

– Pronta a encomenda, Sr. Mendonça? perguntou, num acentuado sotaque francês, o dono da casa. 

O velho quis responder ao patrão, mas não pôde; ergueu a trança, e delicadamente pô-la sobre a alcatifa do balcão. 

Tirando à pressa as luvas altas, num gesto petulante, a recém-chegada estendeu as mãos alvas, carregadas dos anéis caros, para o cabelo tão carinhosamente tratado pelo velho, e pôs-se a examiná-lo, separando com força as três madeixas da trança, cheirando-a, olhando-a de perto, de longe, e deixando-a por fim cair sem caridade sobre o veludo escuro de um sofá. 

Mendonça estremeceu; imaginara ingenuamente que os cabelos da filha iriam adornar a cabeça de uma virgem, que se engrinaldasse de rosas frescas, e tivesse com eles todo o desvelo de uma menina educada. Vendo em frente aquela mulher arrogante e brutal atirá-los sem cuidado sobre o traste mais próximo, mordeu os beiços e amparou-se ao balcão. O suor corria-lhe pela calva, as mãos crispavam-se-lhe com ódio. 

Diante do alto espelho, a freguesa tirava o chapéu de abas reviradas, com bouquets de flores. Ele via refletido no cristal o seu vestido de seda escarlate, a jaquette  cor de café com leite, aberta na frente, com uma grande rosa vermelha na lapela; a descomunal aranha de pérola e brilhantes a luzir-lhe no peito, os pulsos cheios de braceletes; as bichas de brilhantes nas orelhas, o rosto coberto de veloutine rose sobre pastas de cold-cream; os beiços tintos a carmim, os olhos engrandecidos, o cabelo sujo por tintas cor de cenoura, com louros claros e escuros, em manchas desiguais. Colocava no penteado a trança, que o dono da casa, muito solícito, erguera do sofá; via-se de frente, de perfil, desvanecidamente; depois, voltando-se para o francês: 

– Fica-me bem esta cor, não acha? 

– Oh! perfeitamente, é de um tom belíssimo, ravissant

– Sim?... Vou fazer com ela esta noite um papel de fada, no Sant’Anna... Que diz, farei sensação? 

E em uns requebros amaneirados, prolongou o diálogo, diante do velho Mendonça, dizendo muitas coisas fúteis, em gíria de bastidores.

O desgraçado homem olhava, olhava para os cabelos da sua pura, da sua casta, da sua imaculada filha, com os olhos rasos de lágrimas, numa grande mágoa que o abatia. 

No fim de meia hora, a atriz, arranjados os frisados da testa e abotoadas as luvas, segurava o grande leque pintado, a sombrinha de cabo extravagante e alto, e descia a escada de caracol, calcando os degraus com os pés calçados em meias de seda e sapatinhos estreitos. 

Mendonça ficou colado ao mesmo sítio, com os olhos fixos no mesmo ponto e o pensamento preso à mesma ideia... 

Nunca mais veria os cabelos da sua Angelina, aquelas opulentas ondas de ouro, aquele precioso espólio! Que sol o aqueceria então? Não tornar a vê-los! a isso não se resignava o desgraçado pai, mas... e lembrou-se do que a atriz dissera: 

– Esta noite no Sant’Anna vou fazer um papel de fada... 

Às oito horas lá estava à porta do teatro o oficial de cabeleireiro. Era cedo e ele já tinha na algibeira o seu bilhete de galeria. Foi o primeiro a subir, e sentou -se num bom lugar, à frente. O gás muito amortecido, os camarotes e a plateia vazios davam um aspecto taciturno ao teatro. Ah! no tempo da filha não fora nunca a um espetáculo; a pequena morrera sem ter visto isso... E sentia remorsos, o Mendonça, como se ele tivesse ido agora com o propósito de se divertir! E lá, na galeria, sozinho, limpava as lágrimas, que lhe corriam em fio, embebendo-se nas suas barbas brancas. 

Principiava a aparecer gente, em pontos desgarrados da sala, até que uma onda grossa veio enchê-la quase de repente; o gás abriu em grandes leques a sua luz forte e a orquestra rompeu num tango alegre, vibrando no ar uns estalidos de castanholas e os sons metálicos dos pistons. 

Erguido o pano, o velho Mendonça abriu muito os olhos, debruçando -se avidamente. Agitava-se em cena um bando de coristas, pintadas e quase nuas, esganiçando-se num coro alegre; depois, vinham as damas principais, os atores; e a plateia ria, e os aplausos ecoavam sem que o Mendonça tomasse parte em nada. Todo o primeiro ato rolou indiferentemente para ele. Durante o intervalo não se levantou; temia perder o lugar, e não ver depois bem os cabelos da filha; mas no segundo ato não entrou a fada, nem tampouco no terceiro! Mendonça sentia-se fatigado e desiludido ao começar o quarto e último ato, em que os quadros se sucediam animados e com brilhantes cenários. 

Ia ele quase em meio quando, de entre umas nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas, apareceu, em maillot  e cetim branco, com diadema, varinha de condão e o manto de cabelos loiros espalhado nas costas, a fada protetora da desventurada ingênua. 

Era ela! Mendonça levantou-se, pôs toda a atenção naquela grande cabeleira solta, sedosa, fulgurante, resplendendo, numa prodigiosa magnificência, centelhas de ouro, refrangível, ondeante e vivo! 

Tantas vezes vira a sua Angelina coberta por aquelas madeixas longas! 

E à luz da ribalta, os virginais cabelos da filha pareciam-lhe mais formosos e mais ofuscadores ainda! Não via mais nada; nem o corpo esbelto da atriz, nem as transfigurações que ela ia produzindo com a sua magia; todo o seu espetáculo era aquela trança desatada, que lhe mandava, da falsidade do palco, num perfume de saudades, uma piedosa ilusão da vida! 

Sim! revivia um pouco a sua adorada morta, e ele batia as palmas, chorava como um doido e, em um delírio frenético, pedia bis, em altos gritos, vendo sumir-se a Fada entre nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas. 

Mandaram-no calar-se; ele continuou sempre, até que a polícia interveio. O velho Mendonça foi tirado à força do teatro; alguns espectadores riram; e lá dentro, a atriz, muito orgulhosa, convenceu-se de que realmente fizera sensação.

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